Privataria carcerária (como em Manaus) recria escravidão no Brasil

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Cenário do maior massacre no sistema prisional brasileiro desde o Carandiru, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus (AM), mantinha presos em situação de superlotação e “sofrimento psíquico”, aponta relatório da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) divulgado pelo site Huffpost Brasil.

O presídio tinha 1.147 detentos, sendo que a capacidade era de 450, uma superlotação de 254%, de acordo com o documento enviado PELA SDH ao Ministério Público Federal em janeiro de 2016, após visita em 9 de dezembro de 2015.

A unidade era composta de quatro pavilhões com 110 celas coletivas e 25 pessoas por cela, em média. No corredor destinado a presos com doenças infecciosas, “havia duas pessoas que pareciam estar em sofrimento psíquico”, segundo o relatório.

Esse corredor não tinha qualquer espaço para lazer ou banho de sol. Era bastante escuro, úmido e sujo. Foi possível notar muito lixo disperso no chão e escutamos relatos de que, apesar de solicitarem, a direção não disponibilizava vassouras, pás de lixo ou qualquer outro tipo de material de limpeza para os presos“, diz o documento oficial.

Inaugurado em 1999, o Compaj é administrado pela empresa Umanizzare, em um sistema de cogestão, desde 2014. A unidade é destinada apenas a presos em regime fechado. Neste modelo, o presídio é construído com verba pública e dirigido por agentes públicos, mas os serviços como vigilância e escolta interna são de responsabilidade da empresa.

Na visita, apenas 153 funcionários estavam trabalhando, enquanto 250 estão previstos no contrato firmado pela Umanizzare, de acordo com a SDH. O déficit é de cerca de 40%.

O relatório aponta deficiências em quatro penitenciárias do Amazonas na formação e na remuneração da mão de obra, em torno de R$ 1.700, além de más condições de trabalho. “Há uma alta rotatividade de funcionários pelas precárias condições de trabalho, o que favorece a ocorrência de tortura e maus tratos”, diz o texto. Foram constatadas ainda falhas no atendimento de saúde.

A SDH ressaltou ainda a atuação de facções criminosas nas unidades prisionais masculinas do estado, sobretudo a Família do Norte (FDN) e o Primeiro Comando da Capital (PCC) – ambas envolvidas no massacre, “o que gera um contexto de fortes disputas e tensionamentos entre grupos no sistema penitenciário estadual”. Também foram detectadas irregularidades na atuação de forças especiais para conter rebeliões.

Foram relatados espancamentos e abusos sexuais de pessoas LGBT que desrespeitem as regras estipuladas pelas facções, além de indicativos de violência policial. Durante as visitas, alguns detentos estavam com cabeças enroladas em bandagens, graves feridas nas pernas e marcas de espancamento pelo corpo.

O estado do Amazonas conta com 7.455 presos, uma taxa de cerca de 192 presos para cada 100 mil habitantes, de acordo com dados mais recentes do Infopen. Deste total, 57% estão em situação provisória.

Na avaliação da SDH, foram constatadas no estado situações de violações de leis nacionais e de convenções da Organização das Nações Unidas (ONU). O órgão recomendou a elaboração de um plano de redução da população carcerária, investigação de casos de tortura, realização de um concurso para contratação de agentes penitenciários e cursos de formação para os funcionários.

De acordo com Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, tortura é definida como qualquer ato cometido por agentes públicos ou atores na função pública pelo qual se inflija intencionalmente a uma pessoa dores ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, a fim de obter informação, castigar, intimidar ou coagir.

A Lei 9.455/1997, por sua vez, considera tortura constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando sofrimento psíquico ou mental a fim de obter informação, provação ação ou omissão de natureza criminosa ou em razão de discriminação.

O site da empresa para a qual a gestão do presídio foi transferida pelo governo do Amazonas, porém, conta história bem diferente sobre o “Complexo Prisional Anísio Jobim”

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Segundo a Umanizzare, ela administra 8 presídios. Um deles é o que contém as histórias de terror vistas nos últimos dias, como, por exemplo, a de que cerca de metade dos presos mortos na recente rebelião haviam sido de-ca-pi-ta-dos.

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Eis a interpretação que essa empresa faz do trabalho que realiza:

“Umanizzare nasceu como resposta às inquietudes frente às dificuldades do sistema penitenciário brasileiro e apresenta resultados concretos na transformação do indivíduo preso.

Seus princípios estão alicerçados no exercício da responsabilidade social no que tange a qualquer política favorável a Segurança Nacional e a redução de reincidência criminal.

Temos como premissa a aplicabilidade dos preceitos elencados na Lei de Execução Penal, em consonância com a garantia dos Direitos Humanos, ressaltados nas Regras Mínimas para Tratamento do Preso e recomendados pela Organização das Nações Unidas [Genebra, 1955].”

A home page do site da Umanizzare mostra links para matérias feitas por ela, com cenas de detentos assistindo aulas ou participando de eventos, mas não mostra o principal.

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As famílias dos detentos mortos ou mutilados certamente discordam da propaganda da empresa.

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O principal que uma empresa que atua em gestão carcerária deveria mostrar seriam as condições de encarceramento, mas, nesse site, não é possível encontrar imagens do cárcere propriamente dito, por razões óbvias, explicadas pelo relato do que foi encontrado e relatado por inspetores.

A pergunta que não quer calar, portanto, é: o que significa a “privatização” do sistema carcerário de um país?

Em janeiro de 2013, assistimos ao anúncio da inauguração da “primeira penitenciária privada do país”, em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Porém, prisões “terceirizadas” já existiam em pelo menos outras 22 localidades.

A diferença é que a de Ribeirão das Neves era uma PPP (parceria público-privada) desde sua licitação e projeto, enquanto as outras eram unidades públicas que, em algum momento, passaram para as mãos de uma administração privada.

Na prática, o modelo de Ribeirão das Neves criou penitenciárias privadas de fato; nos outros casos, a gestão ou determinados serviços são terceirizados, como a saúde dos presos e a alimentação, ou a segurança e o trato com a população carcerária.

Esse sistema está proliferando pelo país. Existem no mundo aproximadamente 200 presídios privados, sendo metade deles nos Estados Unidos. O modelo começou a ser implantado naquele país ainda nos anos 1980, no governo Ronald Reagan, seguindo a lógica de aumentar o encarceramento e reduzir os custos, e hoje atende a 7% da população carcerária do país.

O modelo também é bastante difundido na Inglaterra – lá implantado por Margareth Thatcher – e foi fonte de inspiração da PPP de Minas, segundo o então governador do estado, Antônio Anastasia. Em Ribeirão das Neves o contrato da PPP foi assinado em 2009, na gestão do então governador Aécio Neves.

O slogan do complexo penitenciário de Ribeirão das Neves é “menor custo e maior eficiência” (?!)

Especialistas alertam, porém, que as prisões privadas americanas fracassaram e não deveriam ser adotadas no Brasil como vem acontecendo, pois esse modelo pode agravar uma situação carcerária que já figura como uma das piores do mundo.

Busca exclusiva por lucro das instituições privadas pode recriar inclusive uma desgraça que não existe no Brasil há mais de século, segundo especialistas.

Enquanto uns conseguem lucro com a venda de carros, imóveis ou hambúrgueres, outros apostam em uma atividade econômica polêmica: a comercialização de prisões.

Vender penitenciárias é assumidamente o negócio da CCA (Corrections Corporation of America), que em 2013 completou 30 anos como pioneira nas prisões privadas norte-americanas.

O balanço desse tipo de gestão, no entanto, é negativo. Para ONGs e especialistas, o modelo norte-americano fracassou e não deve ser adotado por outros países.

A proposta da CCA era animadora: construir e operar penitenciárias estaduais e federais com a mesma qualidade das públicas, mas com um custo menor.

Os Estados e o governo federal, assim, poderiam contratar uma empresa que ficaria responsável por manter os detentos — fornecer alimentação, higiene, cuidados médicos e transporte — e assegurar que eles cumpram a pena e sejam reintegrados à sociedade.

O negócio das prisões privadas se mostrou lucrativo para todas as empresas do ramo: entre 1999 e 2010, o número de prisioneiros mantidos nas instituições particulares cresceu 80% no país, enquanto a população carcerária em geral cresceu apenas 18%.

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Nesse período de 12 anos, o governo federal norte-americano investiu mais no modelo do que os governos estaduais: enquanto o número de detentos federais nas prisões privadas saltou de 3.828 para 33.830 (aumento de 784%), a quantidade de presos estaduais passou de 67.380 para 94.365 (crescimento de 40%).

Os dados são do relatório Too Good to Be True (Muito Bom Para Ser Verdade, em tradução livre), da ONG americana Sentencing Project. Segundo o estudo, as prisões privadas mantinham 128.195 presos em 2010, o equivalente a 8% do total de 1,6 milhão da população carcerária dos EUA, a maior do mundo.

Lotação mínima?

O êxito em números, porém, contrasta com as críticas contra o modelo: custos abusivos, alto encarceramento de imigrantes, fuga de detentos, violência no cumprimento da pena, reincidência dos criminosos e até mesmo financiamento de campanha política (para que as empresas conquistem os contratos estaduais ou federais) são alguns dos problemas.

Os “poréns” das prisões privadas foram reunidos pelo Sentencing Project a partir de um relatório da ONG Grassroots Leadership, de um estudo da ONG In the Public Interest e por auditorias e documentos policiais e judiciais publicados pelo jornal The Huffington Post.

Para o professor de Direito Penal da PUC-SP e pesquisador de segurança pública Cláudio José Langroiva Pereira, o modelo norte-americano de sistema prisional privatizado não pode ser utilizado no Brasil, onde se discute esse modelo como alternativa às superlotadas cadeias públicas.

Por essa e por outras, em agosto, depois de uma análise detalhada sobre condições de segurança e custos, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos anunciou que deixaria de usar prisões privadas para abrigar presos sob custódia federal, em uma decisão que encerra décadas de parceria e, segundo analistas, sinaliza uma mudança histórica de postura do governo americano.

“As prisões privadas tiveram papel importante durante um período difícil, mas o tempo mostrou que têm desempenho inferior se comparadas às nossas instalações (administradas pelo governo)”, disse a subsecretária de Justiça, Sally Yates, em memorando.

“Não oferecem o mesmo nível de serviços correcionais, programas e recursos, não apresentam redução significativa de custos e não mantêm o mesmo nível de segurança e proteção.”

O pior de tudo isso, porém, ficou para o final. São duas más notícias.

Uma é sobre a repercussão mundial da tragédia em Manaus, que, mais uma vez, levantou todo um debate sobre a questão carcerária no Brasil, inclusive sobre execuções sumárias no país, ou seja, assassinatos cometidos pela polícia contra supostos criminosos que detém, ou melhor, que mata primeiro e pergunta depois.

A Anistia Internacional divulgou nota cobrando a imediata investigação do massacre e criticando a superlotação do Compaj. Já a Organização das Nações Unidas (ONU) pediu que as autoridades do Amazonas investiguem de forma “imparcial e imediata” a morte de 56 detentos.

Por incrível que pareça, a forma bárbara como funcionam as prisões no Brasil ajuda a levantar dúvidas sobre o país pois reflete uma situação política explosiva que se configura em sociedades que apostam na barbárie para resolver as coisas – no Brasil, as classes média e alta defendem prisões desumanas, execuções sumárias e tortura contra pessoas pobres acusadas de crimes, sejam culpadas ou não, pois esses setores da sociedade brasileira dispensam o devido processo legal para apurar culpa, preferindo atirar primeiro e perguntar depois.

Mas a questão mais dramática que a privataria carcerária pode materializar é que os presos em instituições privadas trabalham para indústrias, das quais recebem salários que são uma fração do salário mínimo, configurando situação de escravidão e um estímulo ao encarceramento em massa e indiscriminado.

Não seria difícil as empresas de “gestão carcerária” conseguirem essa mão-de-obra barata para empresários inescrupulosos. Basta um acordão com secretarias de segurança e comandos das polícias para que a “pobraiada” seja encarcerada em série, já que pobre, quando vai preso, fica preso mesmo sendo inocente porque não pode pagar advogado.

Na prática, o que especialistas temem é que a continuidade da privataria carcerária estimule uma indústria do encarceramento. Essa, aliás, foi uma das causas que levou os Estados Unidos a abandonarem um modelo que o Brasil está adotando de forma preocupantemente crescente.

Em um mundo crescentemente injusto, no qual o discurso conservador prega agravar a pobreza com medidas “amargas” e “impopulares”, a “solução” para empresas não terem que ficar gastando com “direitos” que “encarecem” o trabalhador seria usarem a mão-de-obra escrava que a privataria carcerária promete prover aos montes.

Não nos faltava mais nada, não é mesmo?