Como funciona a democracia

Crônica

Sempre digo que o sucesso do governo Lula se deveu, acima de tudo, ao nível – muitas vezes abusivo – de cobranças que recebeu. O operário de baixa instrução formal não poderia errar, como ele mesmo disse reiteradas vezes. E, não lhe sendo permitido errar, teve que se superar. Não para não errar, mas para acertar muito mais do que errou, quando não errar fosse impossível.

Na primeira semana do primeiro governo Lula, em 2003, o Brasil amargava inflação de dois dígitos, estava sem reservas internacionais próprias (o que tinha fora emprestado pelos EUA, pelo FMI e pelo Clube de Paris), sofria fuga de capitais havia quatro anos (que se intensificou no último ano do governo FHC), o desemprego vinha em alta (também na casa dos dois dígitos) desde 1999 e tinha deixado de se tornar a oitava para se tornar a 14ª economia do planeta (veio perdendo posições de 1994 a 2002).

A mídia, naquela primeira semana, começou o ataque incessante que promoveria contra ele durante os oito anos seguintes. No mês de janeiro de 2003, quando Lula mal assumira a presidência, escrevi uma carta furiosa ao Estadão protestando contra editorial seu que afirmava que o culpado pela situação calamitosa a que chegava o país naquele ano era o presidente que acabara de tomar posse, pois seu discurso pretérito dera a entender “aos mercados” que ele poderia romper contratos etc.

Não tenho como procurar o editorial, a menos que o jornal me dê acesso aos seus arquivos. Só posso dizer, para quem quiser acreditar, que me lembro claramente de que escrevi a carta em questão, que jamais foi publicada apesar de que este blogueiro, até então, tinha bastante espaço no Estadão, em sua seção de cartas de leitores.

Em 2000, por exemplo, durante a eleição de Marta Suplicy, para não deixar Maluf afundar ainda mais São Paulo o Estadão e todo o resto da grande imprensa paulista finalmente permitiram espaço condizente a alguém favorável ao PT ou à sua candidata a enfrentar o terremoto Maluf, que ameaçava terminar a destruição da capital paulista que começou em 1993, deu continuidade em 1997 e ameaçava postergar no novo século.

Durante a campanha eleitoral que disputaram Marta e Maluf em 2000 – uma disputa renhida que foi vencida só com a união do PSDB com o PT e com o apoio da mídia, pois a parcela ultraconservadora dos paulistanos, mesmo decrescente, ainda era muito ampla –, conseguira o feito inédito de emplacar duas, até três cartas por semana no Fórum dos Leitores, cuja responsável se chamava – e ainda se chama, claro – Anabela Rebelato, mulher de alta cultura, de meia idade e que se comunicava por e-mail com os leitores mais publicados.

Essa foi a única vez em que vi o Estadão dar moleza a um petista.

Já o fracasso do governo Fernando Henrique Cardoso – que fracassou porque entregou o país mergulhado em uma crise sem precedentes que começou nas primeiras semanas de seu segundo mandato, devido à manutenção do câmbio fixo entre 1994 e 1998 – se deveu ao quase irrisório nível de cobrança que recebeu da imprensa.

O Estadão, por exemplo, não aceitou nenhuma das cartas que escrevi sobre o escândalo da compra de votos para a reeleição de FHC, até porque não noticiou quase nada sobre um escândalo que, faça-se justiça, a Folha de São Paulo tornou visível – quando já não podia mais ser ocultado, pois muitos já sabiam o que estava acontecendo. Ainda assim, o Estadão e o resto da mídia se negavam a cobrir o escândalo tucano, o que fez a Folha chegar a ficar isolada nas denúncias.

A mesma coisa aconteceu na CPI da Corrupção, que se tentou ao fim do mandato FHC devido ao escândalo das escutas no BNDES e muito mais, tudo que o engavetador-geral da República, Geraldo Brindeiro, negava-se a permitir que se tornasse o que se tornaria o inquérito sobre o escândalo do mensalão do PT, que só existe porque os procuradores-gerais da República indicados por Lula, à diferença de Brindero, foram pessoas corretas.

O fato é que só a Folha deu algum espaço àquele escândalo, ainda que não tenha sido nem próximo do que deu ao escândalo do mensalão apesar de que os crimes da era FHC eram mais escancarados e fáceis de provar. A CPI da Corrupção foi enterrada por Estadão, Globo, Veja etc. porque, se tivesse ocorrido, muito tucano estaria hoje em cana. Havia muita prova. E como a PGR se omitiu, ficou tudo por isso mesmo.

A questão central do texto, no entanto, não é tudo que você acaba de ler. Apesar da longuíssima digressão – necessária para se entender o contexto desta reflexão –, o regime democrático é o tema que pretendo discutir.

A democracia funciona através de um sistema de pesos e contrapesos que interessa ao conjunto da sociedade independentemente de partidos, corporações ou ideologia. Nenhum governo pode funcionar sem fiscalização. Essa é uma premissa que garante à sociedade a transparência do uso dos recursos que ela provê ao Estado através de seus impostos, que não são nada baratos.

A todo cidadão, portanto, interessa a fiscalização do uso dos recursos públicos e do poder do Estado em si. E essa fiscalização se viabiliza, nas democracias, através de duas instituições, a imprensa e a oposição.

Obviamente que por fiscalização não se entende guerra como a que PSDB, DEM, PPS, Folha, Veja, Globo, Estadão e companhia limitada promoveram contra o governo Lula entre 2003 e 2010. Mas uma fiscalização responsável, serena, discreta, constante e minuciosa, que só pode se transformar em grande assunto diante de situações de extrema gravidade e com vastidão de provas. Até esse momento, do surgimento de provas concretas, a fiscalização deve ser exercida e os possíveis erros investigados, mas com bom senso na divulgação de acusações.

As acusações a um presidente da República como de que praticou assassinato, perversão sexual, alcoolismo ou roubo, por exemplo, não podem se tornar rotina sem a existência de provas muito fortes, que, existindo, certamente provocariam a deposição daquele chefe do Executivo federal. Não existindo tais provas, não se pode travar campanha como a que mídia e oposição travaram contra Lula durante seus oito anos de governo, desde o primeiro mês.

O que se conclui deste texto? Que ao cidadão comum como este blogueiro, aquele cidadão desvinculado de partidos e corporações que só pensa no bem-estar social de todos e no desenvolvimento do país, não interessa fiscalização exagerada ou branda do governo que elegeu, mas fiscalização justa, minuciosa, responsável e constante, pois é assim que funciona a democracia. Era isso.