Uma noite com os invisíveis

Crônica

Quando recebi convite de ativistas pela democratização da comunicação de Juiz de Fora (MG) para ir até lá palestrar em evento sobre “O papel da mídia na sociedade”, pensei que aquele seria apenas mais um dos muitos seminários dessa natureza dos quais venho participando há anos por todo país. Mal sabia que seria muito mais do que isso.

Sob oferta de ter passagem aérea e hospedagem franqueadas se aceitasse participar de evento que ocorreu na última quinta-feira, 24 de novembro, concordei em doar à luta pela democratização da comunicação dois dias úteis que deveria dedicar ao meu trabalho profissional e remunerado.

A visão de que aquele seria apenas mais um dos tantos fóruns dessa natureza dos quais venho participando, porém, desfez-se quando, após concordar em participar, recebi e-mail contendo link para o blog de um dos organizadores do evento juiz-forano, o blogueiro Vinícius Moraes. A chamada, que reproduzo logo abaixo, revelou-se surpreendente.

Como o leitor pôde perceber, o que me surpreendeu foi que, à diferença de todos os fóruns pela democratização da comunicação dos quais venho participando há anos apenas como um entre vários outros palestrantes, aquele evento fora elaborado exclusivamente para me receber.

Apesar de assaltado pela curiosidade, optei por esperar até o dia da palestra para descobrir por que ONGs, sindicatos e ativistas da comunidade juiz-forana achavam tão importante me ouvir.

E assim foi. Atravessei a caótica São Paulo para ir ao aeroporto de Guarulhos, onde ficaria mofando por mais de seis horas antes de embarcar para juiz de Fora, pois o vôo se atrasou, fazendo-me chegar à cidade mineira apenas uma hora antes do início de seminário que só começaria com a minha presença.

No desembarque, logo fui reconhecido pela jovem professora Anete Negreiros, pelo advogado Guilherme Leão e pela responsável por envolver a comunidade juiz-forana no projeto de ouvir este blogueiro: Adenilde Bispo, figura humana que me encantaria e emocionaria como poucas vezes ocorreu desde que me tornei blogueiro e ativista político.

Adenilde Petrina Bispo é líder comunitária do humilde bairro Santa Cândida, em Juiz de Fora. Professora de história formada em Filosofia pela UFJF, luta pela democratização dos meios de comunicação, contra a desigualdade e o racismo em uma cidade em que sua expressiva população negra é marginalizada ao ponto de, como sói ocorrer com as comunidades negras neste país, ser praticamente invisível. Além de tudo isso, Adenilde também fundou a extinta rádio comunitária Mega FM, sobre a qual discorrerei mais à frente.

Na recepção no aeroporto, fui efusivamente cumprimentado por Anete e Guilherme. Adenilde, no entanto, cumprimentou-me com certa timidez e poucas palavras. O olhar que me dirigia, porém, era muito mais eloqüente e continha um brilho do qual só descobriria a razão mais adiante, quando seria informado de que fora ela a mentora intelectual do projeto de me levarem a Juiz de Fora para falar de meu trabalho como blogueiro e ativista pela democratização da comunicação.

Antes de entrarmos no carro do advogado Guilherme para que me levassem ao hotel em que deixaria as minhas coisas antes de seguir para o evento, Adenilde estendeu mãos que seguravam dois pequenos embrulhos para presente em que se lia “Para Eduardo”, em um, e “Para Victoria”, em outro.

Para quem não sabe, Victoria é minha quarta filha. Tem 13 anos e é “especial”, ou seja, sofre de paralisia cerebral. Este blog foi palco do desespero deste pai quando, aos 11 anos, sua doença se agravou e a fez passar o ano seguinte mais internada em hospital do que em casa, tendo ficado três meses ininterruptos em uma UTI.

Um dos embrulhos continha uma caixinha de madeira com tampa de plástico transparente que deixava ver pedras brasileiras semipreciosas. Uma etiqueta dizia que aquele era um amuleto da sorte. Aquele era o meu presente. O de Victoria era a miniatura de um baú, que cabia na palma da mão, contendo duas esferas coloridas com campainhas dentro.

Naquele momento, percebi que Adenilde e os outros me conheciam melhor do que supunha. Logo fiquei sabendo que ela acompanha há anos meu trabalho como blogueiro e ativista junto com a sua comunidade e que essas pessoas sentem-se representadas por mim, sobretudo pelo combate que dou ao racismo e à desigualdade racial na mídia.

Com efeito, o evento convocado por Adenilde contou com o apoio de entidades como o Grupo negro Harmadilha do Gueto da Comunidade de Santa Cândida, que se dedica ao Hip-Hop, do Centro de Referência da Cultura Negra (Cerne) e do Movimento Negro Unificado, além de apoio logístico do PT de Juiz de Fora, de sindicatos ligados à CUT (STIM/JF e SINTRAF/JF), do Instituto Cultura do Samba e do blog de Vinícius Moraes.

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Quando cheguei ao auditório do Sindicato dos Bancários de Juiz de Fora, pelo menos cinquenta pessoas me esperavam. Sentei-me na plateia e o blogueiro Vinícius iniciou a solenidade anunciando a apresentação de um mestre-sala e de uma porta-bandeira da comunidade de Santa Cândida. Em seguida, convocou-me para dividir a mesa com Adenilde, que faria uma curta apresentação e me passaria a palavra.

Discorri sobre temas recorrentes nesses fóruns sobre democratização da comunicação, sobre marco regulatório, sobre concentração de propriedade de meios, mas dei espaço especial à invisibilidade do negro na mídia, sobretudo em novelas e nessa nossa publicidade que induz à crença de que vivemos em um país nórdico, pois a maioria dos brasileiros, que o IBGE diz ser composta por afrodescendentes, quase não aparece nas peças publicitárias que fazem no Brasil.

Durante essa exposição, diante daquela platéia, fui tomado pela emoção mais de uma vez. A voz embargou. Enquanto palestrava, refletia que aquela estava sendo a maior recompensa que recebi até hoje pelo meu trabalho voluntário neste blog, pois aqueles que precisam tanto de apoio sentem-se representados pelo que faço e digo, segundo disseram. Foi muita emoção para este coração. Que recompensa maior eu poderia obter?

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Já a história de Adenilde, sua luta, seus revezes, sua coragem, sua doação, os obstáculos que enfrentou e enfrenta, tudo isso me encantou e me fez sentir pequeno pelo infinitamente menos importante trabalho voluntário que faço.

Todavia, por razões que passo a explicar, o Estado brasileiro e a política que se faz neste país causaram-me profunda indignação pela covardia que tenta manter invisíveis aquela cidadã e sua comunidade carente. Além de o Estado não cumprir com a sua obrigação, ainda investe contra obras vitais para aquela gente carente como era a Mega FM, que a Anatel fechou.

Gestão coletiva, programação diversificada, portas e microfones abertos à participação fizeram da Mega FM uma rádio comunitária autêntica. O termo define uma emissora feita pela e para a comunidade de Santa Cândida, de Juiz de Fora, em Minas Gerais, onde atuou de 1997 a 2005, quando, sob manu militari da Polícia Federal, a Anatel confiscou os equipamentos da rádio e pôs fim às suas atividades.

A luta de Adenilde naquela comunidade tem um objetivo básico: afastar a juventude do tráfico, sobretudo de crack, que alicia garotos e garotas negros e carentes para convertê-los em peões da atividade criminosa, o que acaba exterminando vidas que mal começaram. Nesse contexto, as atividades culturais que Adenilde promove, como no Hip-Hop, valiam-se da rádio comunitária para disputar os jovens com os traficantes.

Juiz de Fora tem hoje três rádios comunitárias autorizadas pela Anatel. Uma toca música o dia inteiro, a outra pertence a um pastor evangélico e a última pertence a um vereador tucano que a usa para fazer proselitismo político. O Estado brasileiro considera essas atividades mais úteis do que as da rádio de Adenilde.

Eles não têm voz nem vez na mídia. São invisíveis tanto quanto denuncio aqui há anos. Com políticas públicas como as de cotas para negros que os negros da comunidade defendem tanto quanto este blog, a população de Santa Cândida começa a ter esperança em que um dia aquela violenta comunidade possa dizer não ao tráfico, apesar de a direita e seu poder sobre o Estado atrapalharem.

Eles são invisíveis na mídia, são negros, são discriminados, são amordaçados para que não gritem a situação que ainda os escraviza mais de um século após a Casa Grande colocá-los na rua sem passado, sem futuro, sem meio de sobreviver.

Em pleno século XXI, os negros ainda ganham menos, morrem mais de causas violentas e padecem de tudo mais que se sabe. E isso, sobretudo, porque brancos ricos que detêm o poder de Estado investem contra eles para garantir que continuem invisíveis. Rogo para que a noite que passei com os invisíveis e o relato que faço aqui, de algum modo contribuam para mudar isso.