Situação na Cracolândia saiu de controle a partir de 2005

Reportagem

Pesquisa efetuada pelo blog nos arquivos do jornal Folha de São Paulo revela que a atual estratégia da polícia de São Paulo para a região da cidade conhecida como Cracolândia foi usada em 2000. Já naquela época, a tática de dispersão dos usuários de crack provocou o mesmo problema de sua “pulverização” pela cidade.

O arquivo que o jornal mantém sobre o assunto – e que pode ser acessado pela internet – também mostra que a situação fugiu ao controle do Estado a partir de 2005, primeiro ano da gestão de José Serra na prefeitura  da capital paulista.

O número de matérias que o jornal publicou sobre a Cracolândia desde 2000 mostra quando o problema começou a adquirir a proporção que se vê hoje. Busca da palavra “Cracolândia” no arquivo apresenta 559 resultados, sendo 143 matérias no período que vai de 2000 a 2005 (quase seis anos) e 416 matérias entre 2005 e hoje (quase sete anos).

O número de matérias sobre a Cracolândia aumentou quase 300% a partir de 2005 porque foi a partir de então que o problema se agravou até chegar ao ponto em que está hoje. E o teor dessas matérias, como se verá a seguir, permite inferir que a polícia paulista – e, obviamente, quem manda nela, ou seja, o governo do Estado – e a prefeitura são os grandes responsáveis pelo problema.

O noticiário sobre a Cracolândia acessível nos arquivos da Folha começa em 2000, em plena campanha eleitoral à prefeitura de São Paulo, quando Paulo Maluf e Marta Suplicy disputavam a sucessão de Celso Pitta.

Em 1º de agosto daquele ano, Maluf anunciou que levaria à Cracolândia o ex-comissário de polícia de Nova York Willian Bratton, que, segundo a assessoria do candidato, trabalhara no programa Tolerância Zero, que reduzira a criminalidade na cidade norte-americana, e de quem o candidato pretendia buscar “consultoria” para combater o problema.

Ocorreu, então, um fato um tanto quanto cômico. O medo da violência levou o candidato Maluf a desistir de apresentar a Cracolândia ao ex-comissário de Segurança de Nova York, que viera ao Brasil para isso, e a restringir a programação com ele a “eventos mais seguros”.

Um mês depois, ainda durante a campanha eleitoral em que Marta derrotaria Maluf e se tornaria prefeita de São Paulo, o governador Mario Covas desencadearia uma operação policial na Cracolândia que pretendia ser uma resposta às críticas do adversário de seu candidato, o então vice-governador Geraldo Alckmin, que substituiria Covas no ano seguinte, quando seu câncer se agravaria.

A matéria sobre a primeira “operação sufoco”, levada a cabo há quase 12 anos causa um déjà vu. Se tirarmos datas, nomes das autoridades e dos órgãos, parecerá que foi escrita hoje e que se refere à atual operação do governo do Estado que está sendo levada a cabo na Cracolândia.

Leia e julgue por si mesmo.

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FOLHA DE SÃO PAULO

03/09/2000

Repressão policial pulveriza a cracolândia

KARLA MONTEIRO

Na esquina escura da rua dos Protestantes com a rua dos Gusmões, centro de São Paulo, dois garotos conversam apressadamente, olhando para os lados. Um deles tira do bolso um pequeno embrulho em papel laminado e entrega ao outro. Feita a transação, o mais velho da dupla nem pestaneja: corre.

“A gente não pode mais dar bobeira. Os pauladas (policiais à paisana) estão por aí. Na semana passada, quebraram meus dentes”, diz o mais novo, mostrando o sorriso desfalcado enquanto caminha rapidamente na direção contrária à do companheiro.

A cena aconteceu na cracolândia, região onde comércio e consumo de crack eram práticas livres desde o início dos anos 90, quando a droga invadiu São Paulo. Ou, pelo menos, práticas toleradas pelas autoridades.

Nos últimos meses, o cenário mudou. Desde setembro do ano passado, o Denarc (Departamento de Narcóticos) vem promovendo repressão ostensiva no local a fim de “erradicar” a cracolândia, o que forçou a dispersão dos viciados e traficantes para outras regiões da cidade.

O resultado da investida do Denarc já pode ser medido em números: 38 hotéis e pensões usados como pontos de tráfico e de uso de crack foram fechados (e depois reabertos por decisões judiciais), 19 foragidos da Justiça voltaram para a cadeia e 176 suspeitos de tráfico, entre eles 12 menores, foram pegos em flagrante. A polícia ainda apreendeu 15 quilos de cocaína, 1.116 pedras de crack e 191 gramas de maconha.

“A ordem do secretário (estadual da Segurança Pública, Marco Vinicio Petrelluzzi) foi erradicar a cracolândia. Era uma vergonha ter uma Amsterdã ao lado do prédio do Denarc”, explica o delegado Ubiracy Pires da Silva, diretor da Divisão de Investigação.

O prédio está incrustado no ex-território dos usuários de crack. Segundo ele, policiais à paisana mantêm vigília 24 horas na área limitada pelas avenidas Rio Branco, Duque de Caxias, Cásper Líbero, Ipiranga e rua Mauá.

O departamento de repressão ao uso de drogas está mantendo também a rotina de uma batida policial a cada 15 dias, e rondas policiais permanentes. Quando a repressão era mais leve, viciados sentavam-se nas calçadas para partilhar cachimbos com a pedra de crack -droga barata que, segundo especialistas, vicia quase imediatamente.

“A barra pesou. Agora a gente vem aqui, compra a pedra e vai fumar escondido em outro lugar”, afirmou um usuário, que disse ter 16 anos. A reportagem da Folha acompanhou uma ronda na noite de segunda-feira (29). As ruas imundas, malcheirosas e mal iluminadas, antes entulhadas de viciados, estavam limpas. É cada vez mais difícil encontrar um dependente com cachimbo em punho perambulando pela região.

Não existem pesquisas que quantifiquem o número de dependentes que circulavam pela cracolândia. De acordo com o Denarc, 20% dos usuários seriam menores. O SOS Criança estima que cerca de 2.000 crianças e adolescentes morem ou passem o dia no centro da cidade. Deste total, 70% usam ou já usaram crack. Isso corresponde a aproximadamente 1.400 crianças e adolescentes viciados só na região central.

Com a ação do Denarc, 15 menores em média são encaminhados diariamente ao SOS, que tem capacidade de abrigar apenas 400. “Mais de 50% desses adolescentes voltam para a rua”, diz Alda Pizzini Sanchez, coordenadora do projeto Farol Não É Casa, mantido pela entidade.

O delegado reconhece que a repressão na cracolândia tem efeito pulverizador e não soluciona o problema dos viciados. Os dependentes só estão migrando para áreas periféricas do centro e bairros de classe média. Não formam mais grandes aglomerações, mas continuam consumindo crack.

Em pequenos grupos, eles espalham-se pelo Brás, Baixada do Glicério, vale do Anhangabaú, praça da República, praça da Sé, alameda Nothmann e ruas adjacentes. “Vamos começar uma investigação para saber se os usuários estão se concentrando em outro lugar”, informa.

Nas imediações do Ceagesp, região conhecida como “nova cracolândia”, os viciados também desapareceram. Segundo um feirante que preferiu não se identificar, os viciados sumiram desde a retirada, de lá, da favela conhecida como Portão Seis. “A polícia andou dando umas batidas por aqui e a meninada caiu fora. Fica um ou outro por aí ainda.”

Em São Miguel Paulista, na zona leste, outro ponto de concentração de usuários, uma obra na linha do trem expulsou os que ficavam no muro que cerca o local. “Está todo mundo por aí, pulando de mocó em mocó. Quando a polícia for embora, todo mundo volta”, comenta R.S.S., 22, usuária de crack há seis anos.

Segundo ela, está mais difícil conseguir a pedra, mas os “nóias”, como se autodenominam os dependentes, sabem onde encontrar a droga. “A boca do lixo não acabou. Só está mais sossegada. Eu não saio daqui. É a minha casa. Vim para cá com 8 anos”, diz, escondendo entre as mãos um cachimbo e um isqueiro.

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Como o problema, à época, era infinitamente menor do que hoje, quatro meses após Marta assumir a prefeitura parecia que a região do Parque da Luz e entorno passariam a viver novos tempos.

Em 29 de abril de 2001, matéria do mesmo jornal dava conta de ações da prefeitura que vinham revitalizando o centro de São Paulo após uma ação do governo do Estado que, se não funcionara completamente, devido a um problema menos grave e à ação integrada entre a administração municipal e Estadual estavam devolvendo o bairro à população.

Este trecho da matéria ilustra bem isso:

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“(…) Depois dos viciados da Cracolândia, chegou a vez das “meninas” do quase bicentenário parque da Luz, o ponto de prostituição mais antigo da cidade. O parque vem passando por sucessivas mudanças desde o ano passado. As touceiras (moitas) que davam aspecto de mata fechada foram remanejadas, tornando-o mais limpo. Para completar, foi implantado no local um circuito fechado de TV.

A segurança atraiu outras iniciativas, como a da vizinha Pinacoteca do Estado, que abriu as portas dos fundos ao parque e distribuiu diversas esculturas importantes em seus canteiros. Ao mesmo tempo, a população começou a redescobrir o espaço, repleto de peças históricas, como o ponto do bonde, a casa de chá, o coreto, e o casarão da administração, construído em 1901 (…)”

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No fim de 2001, começou a ficar clara a razão de a região da Cracolândia ter chegado ao ponto que chegara no ano anterior, o que obrigara o governo do Estado a realizar operação análoga à que está em curso hoje. Matéria da mesma Folha mostrou que policiais integravam a rede que explorava o tráfico de drogas na região.

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FOLHA DE SÃO PAULO

13/12/2001

Policiais são flagrados com traficantes

O Ministério Público flagrou cinco policiais do Denarc em situações suspeitas na cracolândia, região no centro de São Paulo conhecida por concentrar dependentes e traficantes de crack.

Durante 20 dias, os promotores gravaram imagens de integrantes do Denarc (Departamento de Investigações sobre Narcóticos) na região. O material foi veiculado ontem à noite no “Jornal Nacional”, da Rede Globo.

O tráfico na cracolândia, segundo o Ministério Público, é dominado atualmente por dois grupos do Denarc, um liderado por Hélio Carlo Barba e outro pelo investigador José Carlos de Castilho.

Nas imagens, aparece Barba com outro policial, identificado apenas como Henrique, abordando um casal. O investigador Alessandro Ramos da Silva seria o terceiro integrante do grupo.

Em outra imagem, um homem algemado sai do carro da polícia, parado na cracolândia, é solto por Castilho, de quem recebe ainda um aperto de mãos.

Cena parecida se repete com outros dois criminosos. Castilho e o investigador Mauro César Bartolomeu soltam os homens e, depois, os cumprimentam. Um deles foi identificado na reportagem como Adilson Francisco Rocha, indiciado por tentativa de homicídio, tráfico de droga, formação de quadrilha e roubo.

Segundo depoimento de um ex-integrante do grupo de Castilho, para atuar na cracolândia é necessário pagar taxa de R$ 200, por semana, aos policiais, que cobram ainda entre R$ 1.200 e R$ 5.000 para libertar criminosos.

Segundo esse ex-integrante, o grupo de Barba vende crack embalado em plástico verde. O grupo de Castilho, em plástico branco.

Ontem à tarde, os promotores que fizeram as gravações -membros do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado)- pediram a prisão temporária dos policiais identificados a partir das imagens.

À noite, após a veiculação da reportagem do “Jornal Nacional”, eles não deram entrevistas aos outros órgãos de imprensa.

Corregedoria

Segundo a Secretaria da Segurança Pública, as gravações foram mostradas ontem ao corregedor da Polícia Civil, Rui Estanislau Silveira Mello, pouco antes do pedido de prisão. O corregedor, que já investigava os policiais, segundo a secretaria, determinou que fossem imediatamente afastados.

O delegado Marco Antonio Ribeiro de Campos, que dirige o Denarc, disse ao “Jornal Nacional” que está “envergonhado”.

Os cinco policiais -todos investigadores, segundo a secretaria- devem ser acusados por tráfico de drogas, abuso de poder, extorsão e formação de quadrilha.

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Parece piada, um déjà vu macabro. O mesmo Geraldo Alckmin que anda elogiando a desastrada operação na região que seu governo destruiu, há mais de uma década já usava do seu bom e velho “embromation” ao negar a responsabilidade das desastrosas administrações tucanas que degradaram São Paulo ao ponto que se vê atualmente.

Matéria da Folha do dia seguinte à que mostrava o escândalo na polícia paulista informava que o governador “negava” a corrupção na polícia que comandava e que, tragicamente, continua comandando até hoje graças à mesma Folha e a outros veículos da imprensa paulista.

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FOLHA DE SÃO PAULO

14/12/2001

Alckmin nega existência de “banda podre” na polícia de SP

Mesmo dizendo sentir-se envergonhado por conta das denúncias envolvendo cinco investigadores do Denarc, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) negou ontem a existência de uma “banda podre” na polícia de São Paulo.

“Não tem “banda podre” em São Paulo. Essa expressão foi lá no Rio de Janeiro. Se tiver policial corrupto aqui, vai para a rua e para a cadeia”, afirmou.

Para ele, trata-se de um caso isolado. “Infelizmente, alguém erra, e não há nenhuma conivência com isso. Ao ser comprovado, é cadeia”, disse. Ele afirmou ainda que existe “gente séria” na polícia.

O secretário estadual da Segurança Pública, Marco Vinicio Petrelluzzi, também disse que estava decepcionado. Segundo ele, a secretaria está tomando medidas para identificar policiais envolvidos com o crime. “Essa é uma luta permanente. Eu acabo de dizer aqui que não é um sistema perfeito, não há nada que não possa ser melhorado ou aprimorado.”

O secretário afirmou ainda que, neste ano, quase 300 policiais “que praticaram atos mais ou menos graves” do que os da cracolândia foram afastados.

Segundo Petrelluzzi, a divulgação do caso mostra que o controle da polícia é eficaz. “A polícia é a instituição mais vigiada deste país, pelo menos a de São Paulo.”

Pela manhã, Alckmin disse que esperava que os cinco policiais fossem presos ainda ontem. “Se a Justiça conceder, serão imediatamente presos.”

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O escândalo de corrupção na polícia paulista não deu em nada. A oposição petista ao governo do Estado pediu uma CPI, mas, como vêm fazendo desde 1994, o governo tucano do Estado, com a maioria parlamentar que a desorientada população paulista lhe deu, engavetaria mais uma investigação.

Em 2002, mais escândalos abalariam a cúpula do Denarc, que deveria combater a Cracolândia. Era o terceiro escândalo em menos de seis meses. A prisão em flagrante do policial Francisco Marcondes Romeiro Neto por tráfico internacional de drogas provocou a queda do delegado divisionário Ubiracyr Pires da Silva, segundo homem na hierarquia do Denarc na área de repressão ao tráfico.

Nada abalava a corrupção policial que ia erigindo, em São Paulo, a situação que se vê hoje. O governo do Estado não permitia maiores investigações e a imprensa dava uma ou outra notinha, mas não pressionava. Dessa maneira, a cidade foi sendo tomada pelo tráfico.

Todavia, ao passo que o governo do Estado se ocupava de esconder o que acontecia na polícia, a prefeitura, com Marta à frente, fazia a sua parte e o centro de São Paulo começava a mudar. As ações sociais estavam funcionando, pouco se ouvia falar na Cracolândia, o arquivo da Folha mostra que o noticiário sobre o assunto era escasso.

Matéria do insuspeito colunista Gilberto Dimenstein publicada pela Folha ao fim do segundo ano da gestão Marta Suplicy comprova que se a prefeitura não tivesse sido entregue pela população zumbi de São Paulo a José Serra e depois a Gilberto Kassab, a situação não teria se agravado e talvez hoje a Cracolândia nem existisse.

Veja:

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FOLHA DE SÃO PAULO

01/12/2002

São Paulo vai ser refundada

GILBERTO DIMENSTEIN

Quase ninguém acredita -e, por muito tempo, não vai acreditar-, mas um dos principais laboratórios de recuperação social no Brasil está num dos mais visíveis focos de decadência do país: o centro da cidade de São Paulo.

Não se acredita porque, em primeiro lugar, uma das modas nacionais é afirmar que o país está metido em uma pasmaceira social e que nada acontece. Pouco se conhece das articulações comunitárias e das políticas públicas inovadoras.

Em segundo lugar, os moradores de São Paulo acham, no geral, que a cidade não tem mais jeito e está condenada à degradação.

Pela primeira vez, São Paulo está alterando a forma como se expandiu desde seu nascimento, em 1554, quando se limitava a uma escola de jesuítas que ensinava indígenas no topo de uma colina.

(…)

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As ações sociais e urbanísticas da prefeitura estavam revolucionando a cidade, mas a imprensa tucana dava duro combate a Marta ao criticar tudo e reconhecer nada. A matéria de Dimenstein foi uma das raras exceções.

As matérias sobre a Cracolândia iam escasseando, o problema estava sob controle, ainda que existisse. Havia, sim, um ou outro usuário na rua, mas não havia o consumo e tráfico ostensivo da droga que se fez hoje. A partir de meados de 2005, porém, o noticiário sobre a Cracolândia foi aumentando em progressão geométrica.

Ao fim da gestão Serra, em 2006, quando o tucano rompeu o compromisso que assumira com a população (por escrito) de permanecer à frente da prefeitura até o fim de seu mandato por pretender se candidatar ao governo do Estado, já não era possível ao cidadão atravessar a Cracolândia sem correr risco de vida.

Os arquivos dos jornais, com a história cotidiana que contam, são verdadeiras minas de ouro em termos de conteúdo capaz de mostrar como o povo de São Paulo cavou com as próprias mãos a situação de penúria em que mergulhou seu Estado e, sobretudo, a capital paulista. E o pior é que esse povo não melhorou nada, desde então.