A história será a prisão perpétua dos criminosos da ditadura

Crônica

Em 31 de março de 1964 teve início um dos períodos mais infames da história da humanidade. Eu tinha cinco anos. Meu pai abandonara a minha mãe havia pouco tempo e por isso eu e ela fomos viver com seus pais. Como o meu avô estivesse definhando devido a um câncer nos pulmões a família optou por uma prática comum à época, em São Paulo: residir em hotel.

Vivíamos no elegante hotel Danúbio, na avenida Brigadeiro Luiz Antonio, com suas termas que atraíam a nata da elite paulistana. Lembro-me de mãe e avó acendendo velas e rezando naquela tarde que ficou cravada em minha memória. Lembro-me de que estavam assustadas. Lembro-me do som dos tiros do lado de fora e de como a tensão delas me aterrorizou.

Lembro-me de como a minha família, que repudiava o golpe, só falava do assunto em privado. E de como, mesmo estando dentro de casa, só conversava aos sussurros. Pequeno como era, durante ainda alguns anos acreditei que “os generais” – como mamãe chamava a ditadura – poderiam ver o que eu fazia até quando estivesse no banheiro.

Alguns poucos anos depois, a minha família foi expulsa de um restaurante porque,  por minha mãe ter me negado uma sobremesa ou um refrigerante – não me lembro bem –, como bom moleque pirracento comecei a repetir, uma vez após outra – e em alto e bom som –, a palavra proibida: “comunista”.

Oito anos depois, em 1972, ainda residindo no mesmo hotel e agora adolescente, fizera amizade com Daniel,  que residia na rua Major Diogo.  Tinha quatro anos a mais do que eu e se tornara companheiro de pedaladas pela cidade. Nossas bicicletas se encontraram uma vez e não se separaram mais…

Até que fossem separadas.

Daniel era negro. Vivia em um cortiço com a família. Quando nossas bicicletas se encontravam ali na rua Martiniano de Carvalho e saíamos pedalando pela cidade, ele sempre me falava de um movimento em que se engajara para “lutar contra a repressão”, a qual, apesar de então estar diminuindo, ainda era intensa.

Uma vez, fui com Daniel ao colégio Equipe participar de um encontro de conspiradores contra a ditadura. Ouvi falarem em tortura, em mortes. Fiquei apavorado. Era um adolescente. Tinha 13 anos. Tive muito medo. Contei para a minha família, que ficou furiosa com o convite que recebi e me proibiu de ver meu amigo.

Por algum tempo, obedeci. Depois acabei me revoltando com a proibição. Fui procurá-lo, mas sua família havia se mudado e o próprio Daniel nunca mais fora visto. O dono da adega na rua Humaitá, onde Daniel sempre tomava “um goró” antes de sairmos pedalando, disse-me, aos sussurros, que “os homens” o tinham levado…

Era, então, 1973. Agora, tinha 14 anos. Não entendia, ainda, o por que de tudo aquilo. Como era hábito da família ler o Estadão, que assinávamos, comecei a buscar nas páginas do jornal alguma informação mais inteligível sobre por que acontecia tudo aquilo no país. Todavia, nada encontrava. O fato é que o Brasil que aparecia no jornal era um país de mentira.

Nunca mais parei de ler jornal. Percebi, tão jovem, que é preciso estar informado, ainda que mal informado, porque da informação distorcida pode partir a busca da verdade. E  nunca parei de me sentir culpado por ter me omitido, mesmo sendo um mero adolescente à época em que tantos deram as suas vidas pela democracia.

Chegou 1989, ano da verdadeira redemocratização, com a primeira eleição direta para presidente desde o início dos anos 1960. Haviam se passado quase 30 anos desde que este país pudera votar. Finalmente havíamos nos libertado do jugo daqueles vermes que colocaram o país de joelhos.

Vi os mesmos jornais e televisões que jogaram o país na ditadura agora tentando manipulá-lo por outros meios. Quando Collor surgiu e aqueles veículos começaram a bombardear Lula, logo percebi que estavam ajudando a dar outro golpe no país.

Todavia, estava empenhado em sustentar mulher e três filhos. Com dificuldade, porque aqueles foram anos terríveis para o Brasil. Assisti à farsa montada pela Globo e companhia e que redundou na eleição de alguém cuja palavra picareta eu podia ler na testa, quando ele aparecia na tevê.

Durante a campanha eleitoral de 1989, comecei a discutir política no trabalho. Entretanto, logo recebi recado da gerência da empresa de que esta não aceitava “agitação política” e que não tolerava empregados “petistas”. Vejam só. Como precisasse do emprego, calei-me de novo.

Mas, desta feita, foi por pouco tempo. Logo percebi que precisava ser livre e ousei dar um passo: pedi demissão e fui trabalhar por conta própria. Uma coisa levou a outra. Ganhei até mais dinheiro do que quando era empregado e acabei fundando o meu próprio negócio, com mais dois sócios, em 1991.

Livre, comecei a escrever ao jornal que me introduziu nas grandes questões de interesse público. E o que me surpreendeu foi que começou a publicar algumas de minhas cartas de leitor. Mas percebi, também, que o Estadão só me publicava quando não batia muito de frente com as suas idéias reacionárias de ex-mural de recados da ditadura.

Quando a internet chegou ao Brasil, em meados da década de 1990, e o Estadão começou a publicar os endereços de e-mail dos leitores, tive a ideia de ir formando uma lista com esses endereços, aos quais escrevia textos contrariando a linha editorial do jornal ultraconservador. Minha lista de emails chegou a ter mais de mil pessoas.

Em 2005, tive a idéia de criar este blog. Dois anos depois, com leitores desta página fundei o Movimento dos Sem Mídia. Mais dois anos e o jornal Folha de São Paulo esbofeteia o país publicando um editorial que afirmou que a ditadura militar brasileira não teria sido uma ditadura, mas uma ditabranda.

Chegara a hora de fazer o que não fizera na juventude. Agora quarentão, resgataria aquele menino de treze anos assustado com o regime dos generais.

Através do blog, convoquei o primeiro ato de protesto do pós-redemocratização das vítimas da ditadura contra um dos jornais que ajudaram a jogar o país nela. Em 7 de março daquele ano, através de convocação deste blog, pelo menos meio milhar de cidadãos se reuniu diante do jornal Folha de São Paulo para protestar contra aquele editorial indigno.

O ato foi tão forte, tão significativo, com presença maciça de movimentos sociais, da UNE, da CUT, do Fórum de Presos Políticos, do Tortura Nunca Mais etc., que, no dia seguinte, a Folha reconheceu, em nota, o equívoco de seu editorial.

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Folha de São Paulo

8 de março de 2009

Manifestação contra Folha reúne 300 pessoas em frente ao jornal

Militantes fazem desagravo a professores, que não comparecem a evento

DA REPORTAGEM LOCAL

Cerca de 300 pessoas participaram ontem pela manhã de manifestação contra a Folha em frente à sede do jornal, na região central de São Paulo.

O ato público tinha o duplo objetivo de protestar contra editorial publicado pelo jornal no dia 17 de fevereiro, que usou a expressão “ditabranda” para caracterizar o regime militar brasileiro (1964-1985), e prestar solidariedade aos professores Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato. Nenhum dos dois estava presente.

A Folha publicou no “Painel do Leitor” 21 cartas sobre o assunto, 18 delas críticas aos termos do editorial, entre as quais as assinadas por Benevides e Comparato. Segundo escreveu este último, o autor do editorial e o diretor de Redação que o aprovou “deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro”.

Em resposta, o jornal classificou a indignação dos professores de “cínica e mentirosa”, argumentando que, sendo figuras públicas, não manifestavam o mesmo repúdio a ditaduras de esquerda, como a cubana.

Desde então, além de cartas, o jornal vem publicando artigos a respeito da polêmica, alguns dos quais com críticas ou reparos à própria Folha.

O protesto de ontem foi organizado pelo Movimento dos Sem-Mídia, idealizado pelo blogueiro Eduardo Guimarães. O público era composto na sua maioria por familiares de vítimas da ditadura, estudantes e sindicalistas ligados à CUT.

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Folha avalia que errou, mas reitera críticas

DA REDAÇÃO

O diretor de Redação da Folha, Otavio Frias Filho, divulgou ontem as seguintes declarações:

“O uso da expressão “ditabranda” em editorial de 17 de fevereiro passado foi um erro. O termo tem uma conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto. Todas as ditaduras são igualmente abomináveis.

Do ponto de vista histórico, porém, é um fato que a ditadura militar brasileira, com toda a sua truculência, foi menos repressiva que as congêneres argentina, uruguaia e chilena -ou que a ditadura cubana, de esquerda.

A nota publicada juntamente com as mensagens dos professores Comparato e Benevides na edição de 20 de fevereiro reagiu com rispidez a uma imprecação ríspida: que os responsáveis pelo editorial fossem forçados, “de joelhos”, a uma autocrítica em praça pública.

Para se arvorar em tutores do comportamento democrático alheio, falta a esses democratas de fachada mostrar que repudiam, com o mesmo furor inquisitorial, os métodos das ditaduras de esquerda com as quais simpatizam.”

Otavio Frias Filho

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Quando assisti ao vídeo dos jovens que, em São Paulo e no Rio de Janeiro, durante esta semana foram apupar os velhacos torturadores que foram comemorar os próprios crimes nos clubes militares, senti que ao ter criado este blog, o Movimento dos Sem Mídia e ao ter convocado o ato contra a Ditabranda, de alguma forma me redimi de minha omissão pretérita.

Será aplicada à ditadura e aos seus integrantes vivos e mortos uma pena da qual jamais conseguirão se evadir. Com o empenho tardio de pessoas como eu, com a Comissão da Verdade e, acima de tudo, com a disposição desses jovens valentes que o vídeo acima mostra, a história será a prisão na qual os criminosos da ditadura cumprirão pena para sempre.