Brasil descumpre ordem de Corte Internacional sobre crimes da ditadura

Reportagem

Na sessão de primeiro de abril de 2014, no dia em que o golpe de 1964 cumpriu 50 anos, em plena Câmara Federal o deputado pelo PP fluminense Jair Bolsonaro subiu à Tribuna do Plenário daquela Casa para elogiar a ditadura militar.  Os presentes lhe deram as costas enquanto discursava, e a sessão foi encerrada.

Por outro lado, pesquisa do instituto Datafolha publicada no dia 31 de março último afirma que a maioria dos brasileiros (54%) acredita que tanto os que enfrentaram a ditadura quanto os agentes dela que os torturaram e assassinaram devem ser igualmente julgados pelo que “os dois lados” fizeram.

Os grandes órgãos de imprensa que se envolveram na deposição inconstitucional – portanto ilegal – do então presidente Jango Goulart em 1964, por ocasião do cinquentenário do golpe trataram de equiparar os que resistiram à ditadura aos que a implantaram.

Esses grandes órgãos de imprensa e até a Suprema Corte de Justiça do país deliberaram pelos méritos da lei 6683/79, a chamada Lei da Anistia, de modo que tanto o regime de 64 quanto aqueles que reprimiu passaram a gozar de um suposto “perdão para os dois lados”.

Essa situação absurda só tem sido possível devido ao Brasil estar indo de encontro a todas as convenções jurídicas internacionais que examinaram o que se passou por aqui entre 1964 e 1985.

Esse entendimento jurídico-midiático que predomina no Brasil, porém, vem sendo considerado uma aberração pelos fóruns internacionais.

Tudo começou em maio de 2010. A sul-africana Navi Pillay, comissária da Organização das Nações Unidas, condenou o desfecho do julgamento da Lei da Anistia no STF – a Corte deliberou pela constitucionalidade e pela validade daquela lei.

O jornal O Estado de S.Paulo, à época, publicou a reação da comissária que considerou a decisão “muito ruim”. A ONU, pois, recomendou que o Brasil adotasse o exemplo da Argentina, que vem julgando e punindo torturadores do regime militar.

No Comitê contra a Tortura da ONU então instalado, peritos independentes também não pouparam críticas à decisão do STF.  O comitê era formado por juristas de reconhecimento internacional.

“Isso é incrível e uma afronta. Leis de anistia foram tradicionalmente formuladas por aqueles que cometeram crimes, seja qual for o lado. É um “auto perdão” [sic] que o século 21 não pode mais aceitar”, afirmou, à época, o jurista espanhol Fernando Mariño Menendez.

“O Brasil está ficando isolado. Parece que, como na Espanha, as forças que rejeitam olhar para o passado estão prevalecendo.Há um consenso entre os órgãos da ONU de que não se deve apoiar ou mesmo proteger leis de anistia. Com a decisão tomada pelo Supremo, o País está indo na direção contrária à tendência latino-americana de julgar seus torturadores e o consenso na ONU de lutar contra a impunidade”, afirmou o perito contra a tortura da ONU, o equatoriano Luis Gallegos Chiriboga.

Ele ressaltara, ainda, que não existe a figura jurídica de “prescrição” para os crimes de tortura. “Sociedades que decidem manter essas leis de anistia, seja o Brasil ou a Espanha, estão deixando torturadores imunes à justiça de que tanto se necessita para superar traumas passados.”

Outro perito do Comitê contra a Tortura, o senegalês Abdoulaye Gaye, na mesma decisão também mostrou indignação. “Não há justificativa para manter uma lei de anistia. Se uma Justiça decide mantê-la, isso é um sinal de que não quer lidar com o problema da impunidade.”

Na ONU de então já crescia a pressão para que leis de anistia fossem abolidas em todo o mundo. A entidade recomendara à Espanha que julgasse finalmente os crimes cometidos na Guerra Civil.

Sobre o Brasil, o tema da anistia está na agenda da ONU há mais de uma década.

Em2001, um comitê da entidade sugeriu pela primeira vez ao governo brasileiro que reavaliasse a Lei de Anistia. Em2004, outro comitê das Nações Unidas voltou a levantar o assunto em uma reunião privada com o governo. A sugestão foi de que a lei fosse abolida.

O Comitê contra a Tortura da ONU ainda recomendou, em seu último relatório no início de 2008, que o Brasil lidasse com seu passado e abolisse a lei.

Por conta do exposto, em dezembro de 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil a fazer a investigação penal da operação empreendida pelo Exército brasileiro entre 1972 e 1975 para erradicar a Guerrilha do Araguaia.

A sentença da Corte à qual o Brasil se submeteu através do Pacto de San José da Costa Rica foi a de que o estado brasileiro deve esclarecer, determinar responsabilidades penais e aplicar as sanções previstas em lei pela “detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região” envolvidas na guerrilha, no período da ditadura militar.

Abaixo, o termo de adesão do Brasil ao Pacto de San José

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DECRETO N° 678, DE 6 DE NOVEMBRO DE 1992

Promulga a Convenção Americana sobre Direitos

Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969.

O VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no exercício do cargo de PRESIDENTE DA

REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VIII, da Constituição, e

Considerando que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da  Costa Rica), adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa  Rica, em 22 de novembro de 1969, entrou em vigor internacional em 18 de julho de 1978, na forma  do segundo parágrafo de seu art. 74;

Considerando que o Governo brasileiro depositou a carta de adesão a essa convenção em 25 de setembro de 1992; Considerando que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) entrou em vigor, para o Brasil, em 25 de setembro de 1992 , de conformidade com o disposto no segundo parágrafo de seu art. 74;

DECRETA:

Art. 1° A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém.

Art. 2° Ao depositar a carta de adesão a esse ato internacional, em 25 de setembro de 1992, o Governo brasileiro fez a seguinte declaração interpretativa: “O Governo do Brasil entende que os arts. 43 e 48, alínea “d”, não incluem o direito automático de visitas e inspeções in loco da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as quais dependerão da anuência expressa do Estado”.

Art. 3° O presente Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 6 de novembro de 1992; 171° da Independência e 104° da República.

ITAMAR FRANCO

Fernando Henrique Cardoso

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Diante desses fatos, a Comissão Estadual da Verdade de São Paulo lançou, no ano passado, uma publicação que analisa a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que determina a investigação e punição da atuação do regime militar durante a Guerrilha do Araguaia.

A sentença da Corte Interamericana, divulgada em 14 de dezembro de 2010, condenou o Estado brasileiro a investigar os fatos, julgar e, se forem apontados culpados, punir os responsáveis.

A corte também condenou o país a determinar o paradeiro das vítimas da ditadura.

Essa decisão abriu a porta para investigação de todos os excessos do regime vigente entre 1964 e 2985.

Para o procurador da República Marlon Alberto Weichert, a decisão da corte invalida a Lei de Anistia. Diz ele: “O direito internacional dos direitos humanos entende que não é possível haver anistia a graves violações dos direitos humanos”.

Segundo Weichert, o Ministério Público Federal é dos poucos órgãos no país que têm tentado cumprir a decisão da Corte Interamericana.

Entretanto, desde a sentença, de acordo com Weichert, perto de 200 investigações criminais referentes ao período da ditadura militar foram abertas no país. Desse total, seis já viraram denúncias.

Em um momento em que a sociedade brasileira se vê tão confusa diante da troca de acusações sobre o que aconteceu durante a ditadura militar, só há um fato certo: o Brasil é hoje o único país da América Latina que se recusa a cumprir o que firmou no Pacto de San José da Costa Rica.

Só isso já dá uma ideia de quão poderosas ainda são as forças que ludibriam a sociedade para que acredite que haveria alguma verdade nessa história sobre “investigar os dois lados”.

Não há dois lados a investigar coisa alguma. Os que se levantaram contra o regime foram encarcerados, torturados e até assassinados. Só quem não foi submetido à lei – e aos excessos que perverteram a lei – foram os agentes da ditadura que cometeram tais crimes.

Não há que falar, portanto, em julgar “dois lados” se só um ficou impune, o lado dos militares.

Ainda assim, a aberração jurídico-institucional se mantém. Mesmo na Comissão da Verdade ainda há quem defenda que a Lei da Anistia se sobrepõe à decisão do Pacto de San José da Costa Rica.

Seja como for, cedo ou tarde o Brasil terá que dar uma satisfação à comunidade internacional sobre por que descumpre acordos que firma.

Todo o exposto serve para desnudar a imensa farsa que está sendo disparada contra a nação. Os brasileiros estão sendo enganados pela falsa ideia de que se pode equiparar os torturadores às suas vítimas. Essa, porém, é só mais uma aberração jurídica brasileira. Entre tantas outras.

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Com informações de Conjur, UOL, EBC