Por que Lula divulgou a sentença condenatória de Moro

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Nesta semana, o site de Lula divulgou a íntegra da sentença condenatória de Sergio Moro contra o ex-presidente, emitida em julho do ano passado. Nesta quarta-feira no site do jornal O Estado de São Paulo, a defesa de Lula deixa a ver a razão da divulgação daquela sentença.

Leia, a seguir, comentário do defensor Cristiano Zanin Martins no “blog” do jornalista Fausto Macedo.

O Estado de São Paulo

Lula deve ser julgado de acordo com a lei e com isonomia

Cristiano Zanin Martins*

10 Janeiro 2018 | 05h00

A reforma da sentença que condenou o ex-presidente Lula no chamado caso do “tríplex” pelos crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro é o único resultado compatível com a lei e com a prova da inocência que fizemos nessa ação penal.

A partir de uma análise de diversos acórdãos proferidos pelo TRF4 — não apenas no âmbito da Operação Lava Jato — é possível verificar que aquela Corte reconheceu a prática do crime de corrupção passiva, tal como previsto no artigo 317 do Código Penal, apenas quando configurada a venda de ato de ofício pelo servidor público mediante o pagamento de vantagem indevida. Aliás, clássicas lições do Direito Penal sempre explicaram o crime de corrupção passiva como “mercancia do ato de ofício”.

É verdade, como consta em alguns precedentes, que não se exige para a configuração do crime “que ato de ofício tenha efetivamente sido praticado, omitido ou retardado pelo servidor” (Apelação Criminal nº 5083360-51.2014.4.04.7000/PR, Relator para voto Desembargador Federal Leandro Paulsen), mas a relação, ainda que potencial, entre a conduta do funcionário público envolvido (e dos poderes a ele inerentes) e a vantagem indevida é apontada como fundamental em diversos julgados para o reconhecimento do crime de corrupção.

Lula, no entanto, foi condenado pelo crime de corrupção pela prática de “atos de ofício indeterminados” e situados no tempo em que ele não era Presidente da República, ou seja, não era agente público. De fato, não há na sentença qualquer indicação, ainda que potencial, de atos praticados por Lula no período de em que ele exerceu o cargo de Presidente da República (2003/2010) para beneficiar a Construtora OAS ou consórcios dos quais ela tenha participado.

A propósito, a acusação faz referência a três contratos específicos firmados entre a Petrobras e consórcios integrados pela Construtora OAS (em participações que vão de 20 a 50%). Ainda que possa ter havido pagamento de vantagens indevidas a agentes da petrolífera ou, ainda, a agentes políticos para viabilizar tais contratações, nada nessa ação penal permite afirmar que Lula tinha conhecimento dessas iniciativas e muito menos que ele tenha, de qualquer forma, praticado ou deixado de praticar qualquer ato para que tais contratações tenham sido realizadas.

Ao contrário. Dentre as 73 testemunhas ouvidas no curso da ação penal estão ex-integrantes do alto escalão do Governo Lula, como o ex-ministro Jorge Hage, que demonstraram diversas iniciativas realizadas por orientação ou com a concordância do ex-presidente com vistas ao combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, inclusive no âmbito da Petrobras. Também prestaram depoimento pessoas que integraram a cúpula da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e órgãos de controle. E todas reconheceram que jamais tiveram conhecimento da prática de um esquema de corrupção sistêmico no âmbito da Petrobras entre 2002 e 2010. Um dos ex-diretores gerais da ABIN – órgão de inteligência que tem a função de assessorar o Presidente da República sobre assuntos de interesse do País — também reconheceu que a agência não identificou a existência de esquema de corrupção na petrolífera naquele período e, por conseguinte, jamais levou a Lula qualquer informação sobre o tema.

Empresas internacionais que realizaram auditoria na Petrobras informaram no processo que jamais identificaram qualquer ato ilícito praticado por Lula no âmbito da Petrobras. É oportuno, neste ponto, esclarecer que a Petrobras é uma empresa de economia mista e sua administração se dá, pelo menos desde 2003 — ou seja, a partir do Governo Lula —, nos moldes da Lei das Sociedades Anônimas. Quem elege e demite os diretores da empresa, portanto, são os membros do Conselho de Administração, que, por seu turno, são eleitos pelos acionistas. Segundo provas coletadas durante a ação penal, os ex-diretores da petrolífera envolvidos em práticas criminosas foram eleitos por unanimidade, ou seja, com os votos dos conselheiros eleitos pela União Federal e também com os votos dos acionistas minoritários. À época não apresentavam qualquer mácula, eram funcionários de carreira e tinham currículos compatíveis com o cargo.

Diante desse cenário, é impossível, sob a perspectiva técnico-jurídica, cogitar-se da prática de corrupção passiva, pois não houve demonstração de qualquer conduta de Lula relacionada ao cargo de Presidente da República e com os poderes a ele inerentes para viabilizar contratos entre a OAS e a Petrobras.

Por outro lado — e reforçando a inexistência do crime —, a própria sentença condenatória afastou a possibilidade de Lula ser o proprietário do “tríplex” na forma da legislação cível que disciplina a matéria. Segundo o juiz de primeiro grau, o imóvel teria sido “atribuído” ao ex-presidente, situação não só incompatível com a própria denúncia — que faz referência à propriedade —, mas também sem qualquer significado à luz da legislação brasileira.

Na verdade, a decisão de primeiro grau transformou Lula e D. Marisa em uma só pessoa e criminalizou uma relação jurídica lícita mantida entre esta última e a cooperativa BANCOOP, relativa à aquisição de uma cota que, após o pagamento de dezenas de parcelas, poderia dar à ex-primeira-dama a possibilidade de adquirir a propriedade de um apartamento de cerca de 80m2 no município do Guarujá. O desfecho previsto, como foi elucidado, somente não ocorreu porque em 2009 a BANCOOP transferiu o empreendimento à Construtora OAS em procedimento acompanhado pelo Ministério Público de São Paulo e autorizado pelo Poder Judiciário do mesmo Estado. A partir deste momento, o empreendimento deixou o modelo de cooperativa e passou a ter o modelo tradicional de incorporação para aqueles que decidiram firmar novo contrato com a Construtora OAS — o que não foi o caso de D. Marisa e de outros cooperados.

D. Marisa fez pagamentos à Bancoop e tinha um crédito. Leo Pinheiro tentou convencer a família a comprar um apartamento da Construtora OAS no mesmo empreendimento anteriormente relacionado à cota da Bancoop entre o final de 2013 e 2014, mas a compra foi rejeitada. Lula e sua família jamais receberam as chaves do apartamento ou passaram um dia ou uma noite no imóvel, como foi atestado por funcionários da OAS que cuidavam do assunto.

Ou seja, além de não haver beneficiado a Construtora OAS nos contratos com a Petrobras indicados na denúncia, Lula e seus familiares não solicitaram e tampouco receberam qualquer vantagem indevida da empresa ou de suas afiliadas.

Toda essa realidade, compatível com o arcabouço probatório coletado ao longo da ação, foi desprezada pela sentença condenatória, que preferiu acolher a fantasiosa e oportunista versão contada Leo Pinheiro em seu interrogatório. Por inúmeros motivos, no entanto, o depoimento do empresário não poderia receber qualquer valor probatório, muito menos ser a espinha dorsal da condenação imposta a Lula. Primeiro, porque o depoimento foi prestado na condição de corréu, e, portanto, sem o compromisso de dizer a verdade. Segundo, porque o próprio executivo reconhecera à época que estava em negociações de um acordo de delação premiada objetivando benefícios, notadamente o de sair da prisão e preservar ao menos em parte seu patrimônio. Terceiro, porque o depoimento não foi acompanhado de qualquer prova, tanto é que até hoje a delação premiada não foi homologada por esse motivo. Quarto, porque Leo Pinheiro construiu uma fantasiosa trama que tem como personagem central o Sr. João Vaccari Neto, que jamais foi ouvido na ação — sequer houve pedido do Ministério Público Federal para essa finalidade. Quinto, porque segundo a — fantasiosa — versão do próprio Leo Pinheiro, a primeira conversa com Lula sobre uma visita ao apartamento tríplex teria ocorrido no final de 2013, quando este último não tinha qualquer função pública. Sexto, porque segundo Pinheiro, o acerto relativo ao tríplex e a reforma realizada no apartamento teria ocorrido em 2014, com o Sr. João Vaccari Neto, mas não há qualquer elemento, senão a palavra do dirigente da OAS, a indicar que a transação tenha sido efetivada ou, ainda, que Lula pudesse ter autorizado o tesoureiro a realizar qualquer negociação em seu nome. Sétimo, porque Paulo Okamoto, também mencionado durante a narrativa de Leo Pinheiro, negou a ocorrência dos fatos que lhe foram atribuídos.

Salta aos olhos que não houve corrupção passiva, tampouco lavagem de dinheiro. O apartamento continua em nome da Construtora da OAS perante o Cartório de Registro de Imóveis, o que assegura a propriedade à empreiteira. Além disso, como comprovado na ação, a mesma Construtora OAS realizou operações financeiras com fundos geridos com a Caixa Econômica Federal e deu em garantia a hipoteca de diversos imóveis, dentre eles o “tríplex” — agindo com as faculdades inerentes à condição de proprietária do imóvel. Não bastasse, em 2011 cedeu na mesma operação 100% dos recebíveis do apartamento a esse mesmo fundo, de forma que a construtora somente poderia transferir a propriedade do imóvel a terceiros se houvesse o pagamento do valor correspondente em uma conta específica da Caixa Econômica Federal, o que jamais ocorreu.

Esses são os fatos reais e comprovados na ação penal. A sentença condenatória, para desprezá-los, recorreu a diversos saltos lógicos. Provas foram substituídas por presunções sem nenhuma base. Diversos parágrafos da decisão contêm a expressão “é evidente” — sendo que a evidência está apenas na pré-disposição condenatória do julgador de primeiro grau, demonstrada deste o início das investigações.

O parágrafo 852 da sentença mostra que Lula foi condenado por uma premissa inverídica e incompatível com a lei civil: “o apartamento 164-A, tríplex, era de fato do ex-presidente”. E pior, por uma inaceitável presunção de culpa: como “não há no álibi do acusado Luiz Inácio Lula da Silva o apontamento de uma causa lícita para a concessão a ele de tais benefícios materiais pela OAS Empreendimentos, restando nos autos, como explicação única, somente o acerto de corrupção decorrente em parte dos contratos com a Petrobras”.

Quem deve fazer a prova da culpa é a acusação quanto a todos os elementos dos tipos penais que imputa. De acordo com o Direito, “não se permite que qualquer juízo de probabilidade converta-se em presunção de culpabilidade” (Apelação Criminal nº 5083360-51.2014.4.04.7000/PR, voto do Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto).

Um derradeiro fato reforça que a condenação de Lula não tem qualquer base jurídica. A tentativa de transformar o “tríplex” em um caso criminal iniciou com promotores do Ministério Público de São Paulo, que ofereceram denúncia contra Lula, D. Marisa e outras 12 pessoas. Em um primeiro momento, toda a acusação foi transferida para análise do juiz Sérgio Moro. Mas ele aceitou analisar a acusação apenas contra Lula e sua esposa, devolvendo o restante da ação para a Justiça Paulista, que, ao final, absolveu os 12 acusados. Apenas Lula foi condenado — D. Marisa não teve o mesmo destino porque faleceu durante a ação penal.

No Direito Penal os juízes ainda devem ser a boca da lei. Não podem inovar, muito menos aplicar a lei fora das hipóteses expressamente previstas, como forma de perseguição a um inimigo político (lawfare). Lula será julgado no dia 24 de janeiro. A academia e a história farão o julgamento definitivo do caso.

*CRISTIANO ZANIN MARTINS
Advogado de defesa do ex-presidente Lula

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