A grave ascensão do fascismo no Brasil

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O fascismo não é uma excepcionalidade. Está presente, quase sempre de forma silenciosa e ameaçadora, em nossas democracias, inclusive nas dos países mais desenvolvidos. Em meio a uma eleição decisiva para o destino do Brasil, são abordadas aqui algumas das razões que explicam a ascensão de Jair Messias Bolsonaro, um ex-militar racista, xenófobo, homofóbico e profundamente antidemocrático. Analisar como foi possível chegar a esta situação dramática é um imenso desafio político.

O Brasil decide nesta eleição seu futuro como nação

Não está em jogo uma eleição competitiva, republicana e aberta entre dois candidatos de campos ideológicos opostos. Está em jogo um modelo de sociedade, ou seja, um modelo de vida. Está em jogo também o futuro da América Latina, já que a emergência de Jair Messias Bolsonaro é muito mais que uma invenção brasileira, como o carnaval e a caipirinha. Brasil, esse gigante que resiste a ser interpretado até por quem supõe conhecê-lo em profundidade.

A eleição deste domingo atualiza uma aprendizagem que nunca deveríamos ter esquecido: ninguém é imune aos riscos da pandemia fascista. Simplesmente porque o fascismo e os fascistas sempre estiveram entre nós.

Subestimar o fascismo significa considerar que a democracia é um valor universal em nossas sociedades e que ninguém, em seu juízo perfeito, com exceção de um conjunto de marginais que desprezam sua institucionalidade, se atreveria a colocá-la em dúvida. O fascismo começa a ganhar sua batalha quando supomos que a democracia é capaz de defender a si mesma e que o questionamento de sua legitimidade está fora do universo de opções políticas das elites, das classes médias e dos setores populares.

O caso brasileiro é paradigmático porque estamos diante da possibilidade de que, pela primeira vez, no exercício pleno da soberania popular, possa chegar ao poder um ex-militar que há 27 anos é deputado fustigando a institucionalidade democrática, fazendo apologia à tortura e aos torturadores, das ditaduras e dos ditadores. Definitivamente, 30 anos após o fim de uma ditadura que durou 21 anos, o Brasil pode novamente consagrar um estado de exceção, autoritário e despótico, sustentado agora na legalidade democrática.

Nós democratas costumamos nos surpreender quando os não democratas alardeiam seu ódio à democracia, sem muitas vezes reconhecer que esse ódio pode estar aninhado em um descontentamento popular que pode não ser exposto publicamente com a mesma virulência narrativa exposta pelos inimigos da liberdade.

O relatório do Latinobarómetro do ano passado mostrou que, na América Latina, o reconhecimento público da democracia vem sofrendo uma lenta, mas persistente deterioração. O dado é por si só alarmante, já que estamos atravessando o mais longo ciclo democrático de nossa história como nações independentes. Um em cada quatro latino-americanos é indiferente à democracia e para ele daria na mesma viver em outro tipo de regime político.

No Brasil, a situação se apresentava de uma forma ainda mais dramática.

Boa parte do mundo observou com incredulidade como, em 2016, uma presidenta eleita por 52 milhões de pessoas era destituída através de uma farsa parlamentar e jurídica, sem que quase ninguém saísse às ruas para defendê-la. Nesse mesmo ano, somente 32% dos brasileiros dizia apoiar a democracia e confiar nela. No ano seguinte, somente 1% da população afirmava que o Brasil tinha uma democracia plena.

De acordo com a escala elaborada pelo Latinobarómetro, o Brasil era, em 2017, o país com o menor índice de desenvolvimento democrático: 4,4; abaixo da média regional: 5,5; e muito atrás do país com o maior desenvolvimento democrático da região, o Uruguai, com 6,9. Apenas 13% da população brasileira se mostrava satisfeita com a democracia e 97% afirmava que a democracia serve para que os poderosos governem em benefício próprio. Uma situação que se torna mais frágil quando se observa que, em um contexto de desconfiança em relação a tudo, 69% dos brasileiros confiam nas igrejas (não necessariamente na tradicional igreja católica e sim nas emergentes e poderosas igrejas neopentecostais), 50% no exército, 27% no poder judicial e somente 11% no Congresso, 8% no Governo e 7% nos partidos políticos.

As democracias, alertou recentemente Boaventura de Sousa Santos, podem morrer democraticamente.

Nesse contexto, que a esquerda e o progressismo brasileiros tenham pensado que o principal risco era o neoliberalismo e que uma alternativa autoritária, fascista, estava distante do país, não foi mais do que um imenso erro de cálculo.

Ainda que “a era do fascismo se encontre cada vez mais distante na história, sua retórica política parece estar permanentemente conosco”, já disse um dos maiores especialistas na matéria, o historiador e professor emérito na Universidade de Wisconsin-Madison, Stanley Payne.

O grande Umberto Eco expôs uma perspectiva semelhante em sua célebre conferência, Contra o Fascismo. Entendido como retórica de alcance universal, Eco sustenta que “pode-se brincar de fascismo de muitas formas e o nome do jogo não muda”. Dessa forma, “o termo ‘fascismo’ se adapta a tudo, porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos e sempre poderemos reconhecê-lo como fascista”. Eco enumera 14 características do “fascismo eterno”, ainda que somente algumas delas seriam necessárias para colocar em risco qualquer democracia republicana: o apego irredutível à tradição; o cansaço à modernidade; o culto à ação e o desprezo ao pensamento; o ódio a quem se opõe à “verdade”; a fobia à diversidade; o aproveitamento do sentimento de frustração das classes médias e dos setores populares com a política; a xenofobia; a consideração do inimigo como sendo, ao mesmo tempo, muito poderoso e muito fraco; a apologia da violência e da guerra; o elitismo; o heroísmo messiânico; o machismo e o culto ao patriarcado; a adoração do líder como único intérprete da vontade comum; a pobreza linguística, a sintaxe primária e o repúdio ao raciocínio complexo.

Jair Messias Bolsonaro, como já dissemos, não é a causa e sim a consequência do regime de exceção que se instalou no Brasil desde o golpe em Dilma Rousseff e a prisão arbitrária e sem provas do ex-presidente Lula. Sua força reside em que sua liderança se apoia em uma profunda crise de legitimidade da democracia, em uma sociedade marcada secularmente pelo racismo, o colonialismo, a tradição escravista, oligárquica e autoritária, cumprindo não só com uma e sim com todas as 14 dimensões do fascismo eterno enumerado por Umberto Eco.

Todos os liberais e neoliberais do país perceberam isso. Mesmo que já seja tarde demais.

No domingo, o Brasil decidirá se esse será o horizonte de seu futuro como nação.

Há a possibilidade de que isso possa ser evitado. A democracia não se alimenta apenas de bons resultados e sim também da confiança de que os seres humanos serão sempre capazes de sobrepor-se ao medo, ao ódio e à barbárie.

O dramático momento que vive o Brasil deve nos ajudar a reconhecer, entretanto, que o fascismo pode estar mais perto da gente do que talvez estejamos dispostos a aceitar. E que vencer o fascismo de cada dia deve ser sempre o imperativo ético e político que nos una para evitar que nossas democracias se degradem, se fragilizem e se transformem na careta desfigurada de uma liberdade que silenciosamente escorre de nossos corações e almas.

Do El País