Brasileiros não querem mais armas e estudos dizem que armas não resolvem

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Ainda que a ciência tenha como certa a correlação entre armas e violência criminal (aumenta um, aumenta o outro), esse debate tem ares de tiroteio. Ele deve se acirrar com a posse do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), que prometeu ampliar o acesso a armas para autodefesa —medida para a qual precisará do Congresso.

Atualmente, 55% dos brasileiros acham que as armas devem ser proibidas por representarem ameaça à vida dos outros, e 41% avaliam que possuir uma arma legalizada deve ser direito do cidadão que queira se defender.

Os dados são de pesquisa Datafolha de outubro deste ano. Em novembro de 2013, 68% achavam que as armas deveriam ser proibidas, e só 30% queriam armas liberadas.

De um lado deste debate está a hipótese da letalidade, em que o aumento de armas leva ao avanço dos conflitos com mortes, além da redução dos custos dos criminosos para obterem armas —porque preços no mercado paralelo caem ou porque fica mais fácil se apropriar de armas legais.

No extremo oposto, está a hipótese do uso defensivo de armas, segundo a qual a proliferação de armamentos diminuiria a incidência de crimes ao mudar o cálculo de risco de criminosos. Eles seriam desencorajados do enfrentamento diante da maior probabilidade de encontrarem resistência inesperada por parte da vítima.

Lei federal de 2003, o Estatuto do Desarmamento regula o acesso a armas e restringiu o porte e a posse em todo o país. Ainda assim, em média seis armas são vendidas por hora no mercado civil nacional. Neste ano, até 22 de agosto, haviam sido vendidas 34.731 armas no país.

Pelo Estatuto, para obter a posse é preciso ser maior de 25 anos, ter ocupação lícita e residência fixa, não ter sido condenado ou responder a inquérito ou processo criminal, comprovar capacidade técnica e psicológica e declarar a efetiva necessidade da arma. Já o porte é proibido, exceto para carreiras ligadas à segurança pública.

À dificuldade em ter dados sobre armas e natureza dos crimes somam-se questões interpretativas, filosóficas e de fundo emocional, em que o principal motor é o medo.

“O medo das pessoas de serem vítimas de violência alinhado à descrença de que as forças de segurança pública sejam capazes de prover proteção leva ao pensamento de autopreservação, em que o indivíduo acha que vai estar mais seguro com uma arma”, avalia Ivan Marques, diretor do Instituto Sou da Paz.

De acordo com o professor de saúde pública da Universidade Harvard (EUA) e diretor do Centro de Pesquisa em Controle de Ferimentos da mesma instituição, Dave Hemenway, todas as evidências apontam na direção de menos segurança com armas.

“Uma arma dentro de uma casa aumenta o risco de que seus moradores cometam suicídio ou se envolvam em um acidente fatal. Aumenta ainda o risco de mulheres e crianças serem assassinadas com a arma doméstica”, explica ele.

Segundo Hemenway, as pesquisas sugerem que os riscos e prejuízos de se ter uma arma em casa superam qualquer potencial benefício.

Para Fabrício Rebelo, pesquisador em segurança e ex-diretor do Movimento Viva Brasil, entidade defensora do acesso do cidadão a armas de fogo, “a grande questão neste debate é democrática”.

“Tivemos um referendo sobre comércio de armas em 2005, e a população fez a opção por manter a comercialização de armas. É preciso alinhar a legislação à vontade da população”, argumenta.

Centenas de estudos realizados pelo mundo, alguns poucos no Brasil, partiram de diferentes evidências e modelos de cálculo para chegarem a uma mesma conclusão: onde há mais armas, há mais mortes.

A resistência do campo pró-armas está em questionar essa relação de causalidade (em que um fator leva a outro) —sem que se apresentem dados e evidências do contrário.

“Argumentos teóricos abstratos vão existir dos dois lados”, pondera o economista Rodrigo Soares, professor da Universidade Columbia (EUA). “O que fica muito claro neste debate é que a posição do grupo que defende as armas é inteiramente ideológica, porque não tem ligação com fatos ou compromissos.”

Para ele, “para continuar no debate, esse campo tem que produzir evidência científica mais robusta para o Brasil”.

De acordo com o canadense Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé e especialista em segurança pública, apesar de todo o peso das evidências que apontam que mais armas geram mais mortes, muita gente acredita que armas podem deixar as pessoas mais seguras.

“É um debate semelhante ao do aquecimento global, em que 95% dos estudos indicam indução humana das mudanças climáticas e muita gente ainda duvida disso”, afirma.

“Um pequeno grupo de pesquisadores ativistas, muitos financiados pela NRA [Associação Nacional do Rifle, responsável pelo lobby pró-armas nos EUA], consegue rejeitar a opinião científica estabelecida, gerando a falsa sensação de equivalência de seus posicionamentos”, diz.

A grande estrela deste campo é o economista John Lott, autor da bíblia armamentista, o livro “More Guns, Less Crime”, cujos preceitos foram sendo periodicamente desconstruídos e contestados à medida que a carreira acadêmica de Lott descia ladeira abaixo.

Lott foi acusado de ter chegado à conclusão do título por meio de manipulação estatística ou até mesmo com uso de dados falsos.

“Não se sabem quantas pessoas deixaram de cometer crimes porque poderiam encontrar uma arma com sua vítima. Mas é fato que todas as pesquisas sérias e mais científicas mostraram que armas não tem efeito dissuasório sobre o crime”, afirma o cientista político Benjamin Lessing, da Universidade de Chicago.

No Brasil, o economista e pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Daniel Cerqueira é o autor dos principais estudos sobre o tema, que avaliaram o impacto das restrições impostas pelo Estatuto do Desarmamento nas mortes por arma de fogo no país.

A lei teria sido responsável por poupar mais de 2.000 vidas de 2004 a 2007. “Observamos que os homicídios perpetrados com armas caíram a partir de 2003, antes de subirem novamente devido a fatores como as flexibilizações da lei”, afirma.

Resultado semelhante foi observado em “More Guns, More Crime”, em que o economista Mark Duggan, da Universidade Stanford (EUA), desconstrói dois dos principais argumentos pró-armas.

O primeiro, de que a posse de armas tem efeito dissuasivo sobre criminosos, não se comprova quando ele avalia que a aprovação de leis regionais permitindo o porte de arma de fogo pelos cidadãos não implicou em redução da incidência de crimes violentos nesses territórios. “Isso indica ou que os cidadãos decidiram não carregar suas armas, ou que a percepção dos criminosos não se alterou”, diz.

O segundo argumento é o de que não seriam as armas que levariam a mais homicídios, mas o aumento dos homicídios que levariam à difusão de armas para proteção.

A hipótese foi testada pelo economista num modelo matemático e, se fosse verdadeira, o número de armas também cresceria em função do aumento de homicídios cometidos sem arma de fogo, o que não ocorreu no experimento.

Há um ponto, no entanto, em que os dois lados do debate parecem concordar: proliferação de armas não é estratégia de segurança pública.

Para Rebelo, “a liberação de armas não pode transferir para o cidadão a contenção da criminalidade”.

Segundo ele, o reforço na atuação policial e investigativa é imprescindível para baixar os altos índices brasileiros de criminalidade. “O que eu defendo é dar ao cidadão a chance de ele mesmo exercer sua defesa tendo falhado o aparato do Estado.”

Cerqueira, por outro lado, aponta outras razões para a mesma negativa. “Não tenho dúvidas de que será uma tragédia no país se houver um ‘liberou geral’ das armas de fogo”, diz.

“Primeiro porque arma em casa conspira contra a segurança do próprio lar. E segundo porque a arma legal conspira contra a segurança pública, uma vez que várias delas serão extraviadas ou roubadas, aumentando a oferta de armas no mercado ilegal, o que facilita o acesso a elas pelo criminoso mais desorganizado, que vai pra esquina e comece um latrocínio.”

Da FSP