Com retirada de médicos, saúde de populações quilombolas está em risco

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O destino de Antônio Pereira dos Santos, de 81 anos, e Joaquim Fernandes de Castro, 58, foi decidido pela presença de uma médica dentro de suas casas, na região dos kalungas, a comunidade quilombola que ocupa o maior território no país. O cansaço abateu o corpo de Antônio, tomado por manchas, secura da pele e fisgadas nos braços e pernas. Joaquim também sentia um cansaço que o impedia de “andar até aquele colchete”. Perdeu peso vertiginosamente, para abaixo de 48 quilos. Antônio tem hanseníase. Joaquim, uma mancha no pulmão formada depois de aspirar por dois anos ininterruptos o pó resultante da exploração em busca do minério cassiterita.

As casas dos dois, em comunidades kalungas cujo acesso é feito a partir da cidade de Teresina de Goiás, numa das regiões mais pobres e isoladas do Centro-Oeste brasileiro, foram visitadas por médicas cubanas, que atuavam no programa Mais Médicos, do governo federal. Elas detectaram as manchas na pele de Antônio e o encaminharam para um teste específico de hanseníase, quando uma unidade móvel de exames esteve na cidade. Joaquim foi encaminhado para uma cidade a cem quilômetros dali, Campos Belos, onde um raio-x detectou a mancha no pulmão. Os dois estão em tratamento.

O arroubo de assistência médica, numa região acostumada à desassistência e ao esquecimento, deixou de existir na semana que passou. As médicas de Teresina de Goiás precisaram deixar a cidade às pressas, depois da decisão do governo de Cuba de abandonar o Mais Médicos, numa reação à ofensiva do presidente eleito, Jair Bolsonaro, contra o programa e os cubanos.

O governo cubano exigiu pressa. O atendimento foi expressamente interrompido. As médicas de Teresina e da região voltaram a Cuba. E a realidade ali, de uma crônica inexistência de médicos, voltou a uma estaca zero. São 8 mil kalungas desassistidos. Uma parte deles está em quase completo isolamento, numa área de Cerrado fechado e tortuoso, com acessos em paus de arara.

A decisão unilateral de Cuba e a indefinição sobre o novo edital lançado pelo Ministério da Saúde, que tenta repor os 8,3 mil postos deixados pelos cubanos, provocaram um efeito cascata na região dos kalungas — o mesmo replicado em outros rincões do país, especialmente em áreas de populações ribeirinhas, indígenas e quilombolas. Teresina de Goiás, ao perder as duas médicas cubanas, ficou com apenas um plantonista, que não atua em unidades de saúde da família, foco das cubanas. E ele já reclama da sobrecarga de trabalho.
Unidades fechadas

O mesmo ocorreu em outros dois municípios responsáveis por comunidades kalungas. Cavalcante, a 20 quilômetros de Teresina, ficou sem duas médicas. As cubanas foram retiradas do programa. Restou um médico, brasileiro, que agora terá de atender à demanda da comunidade quilombola: serão 800 atendimentos a mais por mês.

São João D’Aliança, a 130 quilômetros de Teresina, também ficou com duas médicas a menos, as duas cubanas. A prefeitura quer fechar unidades de saúde da família. Boa parte dessas pessoas deve bater à porta de unidades em Campos Belos, uma cidade de maior porte, quase na divisa com Tocantins. Ocorre que Campos Belos perdeu três médicos, todos cubanos. Um deles era exclusivo da zona rural, e atendia a comunidades kalungas.

— As médicas cubanas tinham boa aceitação, sem tabu entre médico e paciente. Elas eram as únicas que iam às comunidades. Agora vamos ter de trazer essas pessoas para a cidade. Eu espero que surjam médicos com o edital novo. A questão é que o mercado paga mais do que o programa paga. E esses médicos terão de residir aqui — resume o secretário de Saúde de Teresina de Goiás, Josene Pereira.

O isolamento dos kalungas já não tem as mesmas distâncias de décadas passadas. Mas ainda se faz presente em doenças que já deveriam estar erradicadas da região. São recorrentes casos crônicos de doença de Chagas, inclusive com relato de transmissão recente a pessoas jovens; leishmaniose; desnutrição infantil; dermatites decorrentes da alta exposição ao sol; e hanseníase, detectada em Antônio e em pelo menos mais quatro kalungas da região.

— Tem muitos anos que isso começou. A coceira deu quando eu capinava. Quando eu comecei a sentir essa coceira, uma filha minha que nasceu em 1977 estava começando a caminhar. Agora, depois dos remédios, posso dizer que estou são — diz Antônio.

Antes, Antônio buscava a pé atendimento em Teresina. Aos 81 anos, o esforço ficou impossível.

— Não vinha médico aqui. Até na cidade era difícil. Lá atrás, Teresina só tinha um farmacêutico, que atendia como médico — afirma ele.

Quelemência José dos Anjos caminha para o centenário. A mulher de 99 anos passa boa parte do tempo num cômodo à parte de um casebre simples, em cima de uma cama, com o corpo todo coberto por uma manta. Ela mal fala, ouve e caminha. Quem cuida de Quelemência é uma das filhas, Maria José dos Santos, de 54 anos.

— Aqui não tem banheiro. Eu esquento a água e coloco a bacia para ela se molhar — diz Maria.

As duas moram na comunidade do Limoeiro, um dos povoados dos quilombolas kalungas no nordeste de Goiás, a região mais pobre do estado. Limoeiro está em Teresina de Goiás, cidade de 4 mil habitantes. Brasília está a 300 quilômetros da região.

Quelemência envelheceu sem assistência em saúde, uma realidade em comunidades quilombolas. O aumento de uma população idosa nessas regiões é um fato cada vez mais evidente. É difícil encontrar alguma casa das comunidades kalungas sem a presença de um idoso. Os mais velhos seguem resistindo no quilombo que abrigou escravos fugidos da exploração. Os mais jovens, em grande parte, buscam as cidades, pequenas e grandes.

As prefeituras das cidades que são as portas de entrada para as comunidades kalungas não têm um levantamento sobre a proporção de idosos. Eles são muitos, e a dificuldade de deslocamento torna o atendimento de saúde aos mais velhos ainda mais distante. Os kalungas idosos envelhecem sem qualidade de vida. Como Quelemência, que vive a maior parte do tempo num cômodo abafado e escuro.

Ela e a filha recebiam a visita das médicas cubanas que atuavam no Mais Médicos em Teresina de Goiás. As profissionais de saúde colocavam Quelemência para caminhar, mediam sua pressão, receitavam medicamentos para hipertensão. As duas saíram do programa, a exemplo de 8,3 mil cubanos desligados do Mais Médicos por decisão do governo de Cuba.

Uma vez por ano, Quelemência precisa ir a Campos Belos, a 120 quilômetros de Teresina, para provar que está viva. Ela e filha entram numa van e vão à cidade provar que a idosa segue tendo direito à sua aposentadoria.

Aos 86 anos, Gregório Fernandes da Cunha reclama de uma “dorzada” nas pernas e de pressão alta. Ele vive na mesma comunidade de Quelemência, a do Limoeiro. Gregório e a mulher também recebiam a visita das médicas cubanas. Ele é pai de três filhos, todos na casa dos 60 anos, e a família precisa se deslocar a Teresina e a Campos Belos atrás de médico. A saída das cubanas deixou um ar de indefinição.

— Elas vinham, perguntavam do que eu sofria. Todo mundo busca atendimento em Campos Belos. Agora vamos ter de ir mais pra lá — diz Gregório.

O secretário de Saúde de Campos Belos, Guilherme Davi da Silva, sabe que essas pessoas precisarão ir às unidades na cidade. O município também está com médicos a menos: três cubanos voltaram para Cuba.

— Os cubanos tinham essa disposição de ir para o sertão, tinham uma estratégia de saúde da família. Está tudo muito incerto — afirma o secretário.

Em São João D’Aliança, que também abrange comunidades quilombolas, a prefeitura tenta uma saída para alcançar a população idosa que está no Vale do Paranã. Os acessos são quase intransponíveis. A cidade ficou sem duas médicas cubanas. Ainda há um médico, brasileiro, no Mais Médicos, mas a sobrecarga na cidade impede que ele visite o vale.

— Não tenho dinheiro para contratar médicos. Se tiver de fechar as portas das unidades, vamos fechar — afirma a prefeita do município, Débora Domingues.

Do O Globo