Pensadores mundiais desmascaram “governo sem ideologia” de Bolsonaro

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“A questão ideológica é tão, ou mais grave, que a corrupção no Brasil. São dois males a ser combatido (sic). O desaparelhamento do Estado, e o fim das indicações políticas, é o remédio que temos para salvar o Brasil”, escreveu no Twitter o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) no início de outubro, ainda durante a campanha presidencial.

De lá pra cá, a promessa de governar “sem ideologia” aparece constantemente em falas de Bolsonaro e de seus futuros ministros. Paulo Guedes, que comandará a área econômica, por exemplo, já disse que “não seremos prisioneiros de relações ideológicas”. Ele incluiu a frase em uma resposta a uma jornalista argentina sobre o Mercosul (bloco que reúne Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai) – e acrescentou que o bloco não será prioridade da próxima administração.

Tereza Cristina, após ser anunciada para a pasta da Agricultura, também defendeu o fim da “indústria da multa” e do “viés ideológico” que vê hoje na ações de fiscalização do Ministério do Meio Ambiente contra fazendeiros.

O futuro chanceler Ernesto Araújo, por sua vez, escreveu em seu blog o texto “Ideologia não, ideias sim”, em que critica o que vê como “marxismo escancarado” de governos anteriores e defende que um “saudável pragmatismo deve substituir a ideologia”.

Mas, afinal, é possível governar sem ideologia? Na visão de intelectuais estrangeiros, todo governo possui alguma forma de linha ideológica que pauta escolhas na hora de implementar políticas públicas – e isso não é necessariamente negativo ou positivo.

“Algumas pessoas fantasiam que é possível governar fora ou acima de ideologia, mas isso não é realista. Governar é fazer escolhas sobre resultados políticos (a serem alcançados) e, portanto, deve ser guiado por alguma noção do que é desejável politicamente. Não há nada intrinsecamente errado com um governo guiado por ideologia”, afirmou o cientista político Anthony Pereira, diretor do Brazil Institute, da universidade King’s College (Reino Unido).

“Bolsonaro tem uma ideologia de direita rígida, socialmente conservadora e economicamente liberal”, avalia o professor.

“Não há política não ideológica”, afirmou também à reportagem Michael Freeden, professor de ciência política na Universidade de Oxford (Reino Unido) e autor do livro Ideologia, Uma Breve Introdução (sem edição no Brasil).

Ele define ideologia como “modos (padrões) de pensar politicamente que todos temos” e que se agrupam “em famílias de ideias”. Segundo o professor, as diferentes ideologias “competem” na política com objetivo de apoiar ou criticar políticas públicas e formas de organização coletiva.

Ficou confuso? Vejamos uma exemplo concreto de Freeden. “Se, digamos, questões sobre a austeridade ou a regulamentação dos bancos estão em evidência, diferentes ideologias tentarão vencer o debate apelando às virtudes da iniciativa privada, ou à necessidade de transparência pública e prestação de contas, ou à maior redistribuição de riqueza”, escreveu o professor em um artigo sobre o tema.

A partir desse exemplo, é possível entender como uma indicação “técnica” e “não partidária” – de um economista para comandar o Ministério da Fazenda, por exemplo – continua sendo ideológica, na medida em que representa um determinado ponto de vista sobre como governar.

O filósofo americano Jason Stanley, professor da Universidade de Yale (EUA) e autor do livro Como o Fascismo Funciona (com previsão de lançamento em dezembro no Brasil) – ressalta que há diferentes definições para o conceito de ideologia.

Para alguns teóricos, ele tem um senso negativo. Nessa perspectiva, explica o professor, “uma ideologia é um conjunto de práticas que favorecem o interesse próprio de um partido, fato que é mascarado de maneiras sutis ou não tão sutis”.

Essa é a acusação que Bolsonaro com frequência direciona aos governos petistas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016). Em um vídeo divulgado em julho, por exemplo, quando repudiou a decisão do desembargador do TRF-4 Rogério Favreto de soltar o ex-presidente, o então candidato do PSL disse que “todas as instituições estão aparelhadas” pelo PT.

Uma outra definição para ideologia, que Stanley prefere e se aproxima da defendida por Michael Freeden, é “descritiva”. Ela entende ideologia como “um ponto de vista sobre o que se deve fazer” que “se associa a um conjunto de práticas” para implementar essas percepções.

Segundo o filósofo, é “certamente possível” governar sem ideologia se considerarmos o senso negativo, de instrumentalização do governo para favorecer um partido. No entanto, ele diz, é “impossível” governar sem ter um ponto de vista ideológico sobre como governar.

“Minha preocupação com aqueles que afirmam governar ‘não-ideologicamente’ é que eles tipicamente se envolvem em ideologia nesse sentido negativo. Eles promovem a pretensão de governar não-ideologicamente como uma maneira de mascarar um governo que favorece seus próprios interesses”, afirma Stanley.

Para Barbara Weinstein, professora de história da América Latina e do Caribe na New York University (EUA) e especializada em Brasil, o discurso adotado por Bolsonaro de que governará “acima da ideologia” serve como “uma tentativa extrema de naturalizar suas posições ideológicas”.

“E nisso ele é auxiliado por movimentos evangélicos de direita que consideram suas posições como ‘dadas por Deus’ e, portanto, fora de questão, mesmo que violem a Constituição Brasileira de 1988”, acrescenta.

Na sua avaliação, os governos do PT foram claramente ideológicos, mas “mais flexíveis e centristas” do que as diretrizes do partido antes de assumir a Presidência. Nesse sentido, ela considera que a administração de Bolsonaro tende a ser ainda mais ideológica que os governos anteriores, na medida em que parece pouco aberta a posições divergentes.

Durante a campanha, Bolsonaro chegou a dizer que “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, recorda a professora. Depois de eleito, ele afirmou que se referia à cúpula do PT e do PSOL e que a mensagem era de que “quem desrespeitar a lei sentirá o peso da mesma contra a sua pessoa”. Justificou também a declaração como sendo um “desabafo” de campanha.

“Todo governo é ideológico e isso não é em si algo bom ou ruim. Precisamos perguntar quão rígidas ou extremas são as posições ideológicas do governo e, em uma democracia, até que ponto os cidadãos que não concordam com as posições ideológicas do governo têm o direito de discordar. Quanto menor o espaço para discordância, mais ideológico é o governo”, argumenta.

Para Weinstein, o movimento Escola sem Partido, que Bolsonaro apoia contra o que ele considera doutrinação nas escolas, é “extremamente ideológico”. Ela ressalta que todo professor parte, em algum grau, de sua própria visão de mundo, quando decide o que vai ensinar e como.

“É o Escola sem Partido e seu esforço para policiar as salas de aula que representam uma ameaça à liberdade acadêmica e à credibilidade das instituições educacionais brasileiras no país e no exterior”, critica.

“Há um número inestimável de fatos históricos. A própria seleção de quais fatos apresentar (em sala de aula) é um ato de interpretação”, ressalta a historiadora.

Na área de relações internacionais, Bolsonaro prometeu em seu programa de governo um “novo Itamaraty”, que se reaproximaria de países “preteridos por razões ideológicas” nos governos anteriores.

“Deixaremos de louvar ditaduras assassinas e desprezar ou mesmo atacar democracias importantes como EUA, Israel e Itália”, diz ainda o documento.

Bolsonaro tem sido especialmente crítico da proximidade que as gestões do PT mantiveram com Cuba e Venezuela, dois governos autoritários. Na última semana, o governo cubano decidiu encerrar sua participação no programa Mais Médicos em razão das novas exigências feitas pelo presidente eleito, o que pode levar à saída de cerca de 8.000 médicos de áreas pobres do país.

Já sua promessa de transferir a embaixada de Israel de Tel-Aviv para Jerusalém – seguindo decisão do presidente americano, Donald Trump, e contrariando orientação da ONU – já gerou expectativa de retaliação de países árabes às exportações brasileiras.

“Uma aproximação com Estados Unidos (por simpatia a Trump) e Israel (por afinidade evangélica com o país) é tão ideológica quanto a abordagem de Lula e Dilma sobre Cuba e Venezuela”, respondeu por email à reportagem a argentina Claudia Zilla, diretora em Berlim do grupo de pesquisa Américas na Fundação Ciência e Política (SWP).

“Nenhuma parte pode reivindicar a representação pura e completa do interesse nacional, isso é sempre uma construção de uma posição ideológica. Portanto, havia conteúdo ideológico na política externa de Lula e Dilma – e esse será, sem dúvida, também o caso da política externa de Bolsonaro”, acrescentou.

As estatísticas oficiais brasileiras mostram que as exportações cresceram para todos os continentes durante os 13 anos do PT, embora com mais força para Ásia (618% de alta na comparação entre 2015 com 2012) e Oriente Médio e América do Sul (ambos acima de 300%).

Para Anthony Pereira, da universidade King’s College, a política externa petista adotou um mix de que vai da ideologia ao pragmatismo.

“A ideia da diplomacia Sul-Sul (que priorizava países emergentes e em desenvolvimento), por exemplo, reflete o fato de que, a partir do início dos anos 2000, as relações comerciais do Brasil com a Ásia, especialmente com a China, cresceram. A diplomacia brasileira estava refletindo os padrões do comércio”, ressalta.

Da BBC News Brasil