Apoiadores da ditadura, EUA ofereceram 5 mil dólares por morte de Marighella

Todos os posts, Últimas notícias

O tom do telegrama é alarmista. “Marighella tem incitado, de tempos em tempos, que instalações e funcionários americanos devem ser atacados”, escreveu Robert Corrigan, cônsul-geral dos Estados Unidos em São Paulo. Em mensagem enviada às embaixadas norte-americanas do Rio de Janeiro e de Brasília no dia 16 de outubro de 1968, o diplomata de 54 anos defendia a tomada de ações mais incisivas com o intuito de “persuadir” o governo brasileiro a capturar o guerrilheiro comunista. À época, manifestações contrárias à presença americana no Brasil se intensificavam. Meses antes, em março, uma bomba explodira em frente ao Conjunto Nacional, prédio na avenida Paulista onde ficava o Consulado norte-americano.

Nas últimas linhas do telegrama às embaixadas, Corrigan sobe o tom e faz uma sugestão enfática: “Para cunhar uma frase, o momento é propício e a hora passa. Que tal oferecer recompensa?” A mensagem consta de documentos classificados como secretos pela diplomacia norte-americana, enviados para a Comissão da Verdade em 2015 e só agora detalhados, e evidencia a intenção do governo americano de pressionar os órgãos de segurança brasileiros no combate à guerrilha urbana.

A proposta de recompensa foi despachada quatro dias após a morte do capitão do Exército americano Charles Rodney Chandler. Veterano da guerra do Vietnã e residente na capital paulista, o militar era acusado por grupos de esquerda de atuar pela Agência Central de Inteligência norte-americana, a CIA. O vínculo, jamais provado, custou-lhe a vida. Foi assassinado a tiros em frente à sua casa, no bairro do Sumaré, por integrantes da Ação Libertadora Nacional – a ALN de Carlos Marighella – e da Vanguarda Popular Revolucionária – a VPR encabeçada pelo ex-capitão do Exército Carlos Lamarca.

O andamento das investigações preocupava o cônsul Corrigan. No telegrama, ele criticou os esforços “dispersos e ineficazes” dos órgãos de segurança brasileiros. A morte de Chandler, segundo ele, oferecia “causa justificável para pressão” sobre o governo militar para “tirar de ação” Marighella e seus companheiros. Dois dias depois, em 18 de outubro, em uma nova mensagem enviada à Embaixada no Rio – e que depois seria encaminhada ao Departamento de Estado, em Washington –, Corrigan vaticinou que a polícia só chegaria aos culpados com a ajuda de um golpe de sorte ou de informantes. Em seguida, fez uma proposta a seus pares: “Com o intuito [sic] motivar tais informantes e de fato para manter a polícia de São Paulo trabalhando nós sugerimos recompensa [sic] seja oferecida de aproximadamente 5.000 dólares (20.000 cruzeiros novos).” Hoje, o valor corrigido equivaleria a cerca de 160 mil reais.

As informações constam em documentos inéditos. Uma parte deles, desclassificada em 2015 pelo governo dos Estados Unidos e enviados ao Brasil, encontra-se hoje agrupada no Arquivo Nacional. Outra parte foi cedida do acervo do jornalista e escritor Mário Magalhães, autor da biografia Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo. Os arquivos que integram o acervo de Magalhães foram coletados e entregues a ele por acadêmicos de universidades norte-americanas.

Para o historiador Daniel Aarão Reis, estudioso do período da ditadura e ex-militante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro, o MR8, o plano de oferecer uma recompensa pelo guerrilheiro comunista não é um ponto fora da curva na política externa norte-americana. “É uma tradição antiga nos Estados Unidos dar gratificações em dinheiro para pegar aqueles considerados inimigos do Estado”, afirmou. “De acordo com seus interesses, os americanos acionam diplomatas e agentes para colher informações.”

Segundo ele, caso o dinheiro tenha sido efetivamente oferecido pelo Consulado, é improvável que tenha sido aceito pelo governo brasileiro. “Havia muitos nacionalistas entre os militares, embora as esquerdas tivessem na época uma visão simples de que eram todos subservientes aos Estados Unidos. Aceitar que um governo estrangeiro pagasse por uma investigação seria muito humilhante.”

Não há indícios para afirmar se a recompensa financeira foi levada adiante pelos diplomatas. O documento em que consta a sugestão de Corrigan é incompleto; contém apenas a primeira página. Ao final dela, em um raciocínio interrompido, o cônsul pondera os possíveis riscos de levar a cabo a gratificação. “Nosso pensamento é que tal oferta pelo USG [governo dos Estados Unidos], Exército dos EUA, Embaixada dos EUA ou Consulado-Geral teria alguns aspectos negativos”, aponta.

Poucas semanas depois, o assunto foi discutido em uma troca de telegramas secretos entre o Consulado-Geral dos Estados Unidos em São Paulo, a Embaixada no Rio de Janeiro e o Departamento de Estado, em Washington. Os diplomatas avaliavam que, dentre os principais problemas em oferecer dinheiro à investigação brasileira, o mais evidente era a possibilidade de a origem dos recursos ser identificada, o que geraria controvérsias.

Diante do entrave, Corrigan chegou a sugerir o que poderia ser interpretado como um procedimento de lavagem de dinheiro. Em uma mensagem enviada à Embaixada do Rio no dia 8 de novembro de 1968, o cônsul relata que a “questão capciosa” da premiação pela busca aos culpados ainda estava sendo discutida, mas que “quanto mais pensamos nisso, mais acreditamos que a recompensa, se oferecida, teria que ser mostrada como advinda de uma fonte privada, como a família de Chandler”.

No dia seguinte, Washington se posicionou em relação às propostas feitas pelo cônsul-geral de São Paulo. “Nós acolhemos a iniciativa e a sugestão”, diz um telegrama assinado pelo diretor do Escritório de Assuntos Brasileiros do Departamento de Estado norte-americano, Jack Kubisch – “mas vemos algumas dificuldades.” O texto questiona a viabilidade financeira da ação. “Em uma pequena reunião entre agências aqui hoje, nós consideramos várias possíveis fontes de fundos do USG [governo dos Estados Unidos] e concluímos que eles não poderão ser disponibilizados como previsto por São Paulo.”

Ao que indica a mensagem, Kubisch temia que a aplicação de dinheiro do governo americano sem origens claras pudesse fornecer “crédito adicional” às especulações sobre Chandler. Neste ponto, o documento é interrompido, o que impossibilita saber a conclusão do raciocínio do diplomata. Pode-se deduzir, porém, que o receio seja semelhante ao que foi expresso por Corrigan nos telegramas do dia 18 de outubro e 8 de novembro: caso o repasse norte-americano fosse detectado e viesse à tona, poderia “intensificar acusações e suspeições de que Chandler era um ‘agente’”.

Chamado de “herói de guerra” por uma reportagem do jornal O Globo publicada no dia 14 de outubro de 1968, o capitão Charles Chandler atuou por um ano como instrutor de combate a guerrilhas no Vietnã. Veio ao Brasil, segundo o Consulado-Geral de São Paulo, como bolsista da George Olmsted Foundation – programa de aperfeiçoamento para jovens do Exército americano. Estudava língua portuguesa e cultura brasileira na Escola de Sociologia e Política da Universidade de São Paulo, a USP (outras fontes dizem que estudava na Fundação Armando Álvares Penteado), quando foi morto, aos 30 anos de idade. Deveria voltar aos Estados Unidos poucas semanas depois, em novembro daquele ano.

Defensor ferrenho da intervenção americana no sudeste asiático, Chandler se envolvia frequentemente em debates universitários e era apontado por militantes de esquerda como informante da CIA. Seu histórico de combate aos vietcongues reforçava a tese de que estava no Brasil a serviço da repressão. Boletins deixados pelos guerrilheiros no local onde o militar foi assassinado acusavam-no de ser um agente imperialista e “notório criminoso de guerra”, conforme relata Mário Magalhães na biografia de Marighella.

A relação de Chandler com a CIA nunca foi comprovada, e seu vínculo com as operações militares dos Estados Unidos no Brasil permanece pouco claro. No fim da década de 80, em entrevista ao Congresso americano, o ex-embaixador norte-americano no Brasil John Wills Tuthill – que ocupou o cargo entre 1966 e 1969 – afirmou que o militar pertencia à Inteligência do Exército no país, “ou não teriam mandado ele para São Paulo para aprender português e todo o resto”. Para Tuthill, Chandler agia “tolamente” ao falar em público sobre suas relações com o Exército e operações de inteligência.

O assassinato do capitão americano, que seria usado pelo cônsul Corrigan como justificativa para sugerir uma recompensa por Marighella, mobilizou também o Federal Bureau of Investigation – o FBI, órgão de investigação vinculado ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos. No dia 13 de dezembro de 1968, mesma data em que o governo Costa e Silva decretou o Ato Institucional Nº 5, o departamento policial produziu um memorando que descrevia conversas de um “agente especial” americano com testemunhas da execução. Os nomes das fontes são tapados por tarjas, mas as informações – como detalhes sobre amizades do militar na universidade e suas impressões sobre colegas – indicam se tratar da viúva do capitão, Joan Koteletz Chandler, e um dos filhos do casal.

Pouco depois, em 2 de janeiro de 1969, um novo relatório enviado à Embaixada no Rio e ao Consulado-Geral em São Paulo incluiu retratos falados de dois suspeitos. Em fevereiro, o FBI mostrou às testemunhas fotos de Marcos Antônio Bráz de Carvalho, um dos atiradores que mataram Chandler, e comparou-as com os desenhos. O guerrilheiro da ALN, de 30 anos, foi reconhecido. Àquela altura, porém, já estava morto: semanas antes, fora fuzilado em São Paulo por policiais do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops.

No fim de fevereiro, um telegrama confidencial da Embaixada de Brasília enviado ao Rio de Janeiro revelava que a polícia brasileira já começava a fechar o cerco a parte da “gangue de Marighella”. A mensagem – que hoje se encontra no acervo do Arquivo Nacional – é assinada por Low, presumidamente Stephen Low, diplomata que chefiou o escritório americano na capital brasileira entre 1968 e 1971. Ele diz que, em visita ao secretariado geral do Conselho Nacional de Segurança, foi concedido acesso a um documento secreto do governo que “ligava o assassinato de Chandler ao grupo de Marighella”. Segundo ele, a fonte que lhe passou as informações alegou que os nomes de novos investigados não seriam anunciados para não prejudicar investigações em curso. “No entanto, ele disse que queria que nós soubéssemos do progresso tido no caso do Chandler e suas conexões.”

Um ano e três semanas depois do assassinato do capitão Chandler, Marighella foi morto em São Paulo. Numa terça-feira, 4 de novembro de 1969, o guerrilheiro foi emboscado na Alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins, por um grupo de policiais coordenado por Sérgio Fleury, delegado do Dops.

“Circunstâncias envolvendo a eliminação de Marighella, o ‘Lênin do Brasil’, evidenciaram não apenas que ele não é imortal, mas também que há pessoas dentro de seu círculo preparadas para delatá-lo”, escreveu três dias depois o então embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, em telegrama confidencial ao Departamento de Estado norte-americano descoberto pela piauí. No texto, o diplomata – que meses antes fora sequestrado em uma ação conjunta da ALN com o MR8 – se pôs a avaliar os impactos imediatos da morte do guerrilheiro. Segundo ele, tratava-se de um “golpe duro” contra o terrorismo, mas a eliminação do líder guerrilheiro não necessariamente significava que “as costas do movimento” haviam sido quebradas.

A avaliação escrita no mesmo dia pelo cônsul-geral em São Paulo, Robert Corrigan, foi menos cautelosa. Em mensagem ao mesmo Departamento de Estado, o diplomata afirmou que a ALN parecia “quase completamente destruída” após a morte de Marighella. No final de setembro, outro membro da ALN, Virgílio Gomes da Silva, fora preso pela Operação Bandeirante também em São Paulo e morto sob tortura. Foi considerado o primeiro preso político a ter desaparecido depois da edição do AI-5.

Para o historiador Daniel Aarão Reis, os novos documentos ratificam a impressão de que o governo americano superdimensionava o potencial das guerrilhas no Brasil. “A cogitação de pagar dinheiro ao governo brasileiro dá indícios de que estimavam Marighella como um grande perigo”, afirmou Aarão Reis, autor de Ditadura e Democracia no Brasil, publicado em 2014, sobre a trajetória política do país do golpe de 1964 à Constituição de 1988. “Tanto os guerrilheiros quanto os órgãos de repressão superestimavam esse confronto, e os americanos parecem ter ido atrás disso.”

A visão é ratificada pelo economista Paulo de Tarso Venceslau, que integrou as fileiras da ALN na ditadura militar. Integrante do grupo que sequestrou o embaixador Elbrick em setembro de 1969, Venceslau avalia que, depois do trauma em Cuba, os Estados Unidos aumentaram o cuidado com movimentos guerrilheiros na América Latina. “E como os americanos gostam de imagens fortes, o Marighella caía como uma luva. Era uma liderança expressiva a ser combatida.” Ele rebate a comparação feita por Elbrick – que talvez também tivesse intenção irônica – no telegrama de novembro daquele ano: “Mesmo se desse tudo certo, não teria nada a ver com Lênin.”

Hoje aos 75 anos, Venceslau disse não se surpreender com a possibilidade de o governo americano oferecer dinheiro pelo líder comunista. “Eles estavam dispostos a pegar o Marighella por conta própria, então dar 5 mil dólares para um órgão de segurança não era nada”, afirmou. “Quem conhece a participação dos Estados Unidos nesse período sabe que isso era o troco do troco.”

Da Revista Piauí