Bolsonaro causa incertezas e ameaças às políticas sociais

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A decisão do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), de rever a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, multiplicou incertezas sobre a agenda social do governo no próximo ano. Há temor quanto a possíveis cortes em programas de transferência de renda, apesar do forte aumento da pobreza durante a crise, e retrocessos no reparo de desigualdades históricas – classificadas por Bolsonaro como “coitadismos”.

Para especialistas, declarações de integrantes da equipe de transição e do próprio presidente eleito indicam que haverá redução do número de beneficiários do programa Bolsa Família, refletindo um “pente-fino” nas famílias que forem consideradas desenquadradas. Também é possível haver restrições no BPC (Benefício de Prestação Continuada), que transfere um salário mínimo a idosos e pessoas com deficiência de renda. Se confirmadas, as mudanças viriam num ano de desafios nada triviais no campo social. A recessão que se prolongou do segundo trimestre de 2014 ao fim de 2016 gerou perdas ao mercado de trabalho, provocando aumento da pobreza e da desigualdade de renda.

O Brasil tem hoje 12,3 milhões de desempregados – 5,6 milhões a mais do que no segundo trimestre de 2014, início da recessão.

Cálculos da FGV Social, realizados a partir de microdados das pesquisas do IBGE, mostram que a pobreza cresceu 33% no país no triênio 2015 a 2017, o que significa 6,3 milhões de novos pobres no período. São agora 23,3 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza no Brasil (considerando uma linha de corte de R$ 233 de renda domiciliar per capita). É mais do que a população do Chile.

Esse aumento da pobreza foi acompanhado de uma piora na distribuição de renda. Dados levantados pela FGV Social mostram que, entre o fim de 2014 e o terceiro trimestre deste ano, o Índice de Gini da renda do trabalho – que varia de zero a um, sendo zero a igualdade perfeita- passou de 0,5636 para 0,5915. Foram 11 trimestres consecutivos de piora em base interanual, algo inédito desde os anos 80.

O programa de governo de Bolsonaro traz pouca luz sobre como esses retrocessos serão enfrentados em 2019. O documento de 81 páginas sugere uma saída liberal para os problemas econômicos. Diz que o desequilíbrio fiscal gera crises, desemprego, inflação e miséria. “As economias de mercado são historicamente o maior instrumento de geração de renda, emprego, prosperidade e inclusão social”, aponta.

Ministro no governo Dilma e especialista em indicadores sociais, Marcelo Neri, diretor da FGV Social, concorda que os dois principais elementos da política social no longo prazo estão associados ao aumento de produtividade e ajuste das contas públicas: “A escolaridade e a renda nos anos bons avançaram muito, mas não a produtividade do trabalhador”, disse Neri. “Nesse ínterim, não podemos nos descuidar dos mais pobres.”

Francisco Ferreira, economista do Banco Mundial, acrescenta que não existe um antagonismo automático entre a agenda liberal pregada pelo novo governo e a expansão dos programas sociais. Para ele, iniciativas liberais não precisam ser feitas ferindo os benefícios desses programas voltados aos mais pobres, a que considera bem focalizados. “É essencial preservar o Bolsa Família”, afirmou o economista, que fica sediado em Washington.

Bolsonaro pode ganhar, contudo, um aliado no combate à pobreza: a recuperação econômica. Se confirmada a aceleração da atividade, com PIB crescendo a 2,5%, o mercado de trabalho tende a seguir em melhora, contribuindo para retirar mais famílias da situação de pobreza. Nas contas da FGV Social, o ciclo eleitoral já pode, inclusive, ter ajudado a iniciar esse processo, com reajustes de benefícios de programas sociais.

“Mesmo se crescermos 2,5% ao ano, vamos demorar uma década e meia para voltar até onde estávamos antes da crise” Esse processo de redução da pobreza será, no entanto, bastante lento ao longo do tempo: “Mesmo se crescermos 2,5% ao ano, vamos demorar uma década e meia para voltar até onde estávamos antes da crise. Em 2030, o Brasil vai estar no mesmo lugar que estava em 2014 se não combatermos o pior tipo de desigualdade, que é aquela associada à pobreza extrema”, disse Neri.

Os discursos de Bolsonaro ao longo da carreira parlamentar são fatores adicionais de preocupação entre especialistas no campo social para o ano que vem. No início desta década, o deputado federal defendeu de forma recorrente a esterilização cirúrgica voluntária – vasectomia ou laqueadura -, especialmente da parcela mais pobre da população. Segundo ele, uma estratégia para combater fome, miséria e violência.

É verdade, contudo, que Bolsonaro abrandou seu discurso durante o período eleitoral. Antes crítico do programa Bolsa Família, passou a defender sua manutenção. A proposta de passar um “pente-fino” no programa é, com os recursos excedentes obtidos, pagar um 13º aos beneficiários. O programa alcança hoje 21% da população. São 14,2 milhões de famílias que recebem o equivalente a R$ 187,32 por mês.

A indicação do deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) para o Ministério da Cidadania, que ficará responsável pelas políticas sociais do governo, também foi vista com certo alívio. Terra esteve à frente da área social do governo Temer de 2016 a 2018. E sua pasta será criada no ano que vem com a fusão dos atuais ministérios do Desenvolvimento Social, Esporte e Cultura.

Maitê Gauto, líder de polícias públicas da Fundação Abrinq, disse que a indicação de Terra foi uma “boa notícia diante do cenário” – afinal, ele tem histórico de atuação no campo. Segundo a especialista, ainda pairam dúvidas, no entanto, sobre a agenda que vai ser adotada a partir do ano que vem. E o motivo para isso são as declarações desencontradas de integrantes da equipe de transição do presidente eleito.

“Da mesma maneira que ouvimos declarações preocupantes, depois ouvimos coisas que [as] contradizem” “Da mesma maneira que ouvimos declarações preocupantes, depois ouvimos coisas que contradizem o que foi dito”, observou ela. “Estamos num momento de transição. É tenso porque, embora muitas declarações tenham sido feitas, o governo ainda não tomou posse. Quando tomar posse, a sociedade terá melhor noção do que vem.”

A fusão dos ministérios de Desenvolvimento Social, Esporte e Cultura é vista com preocupação por Gustavo Ferroni, assessor sênior de políticas e incidência da Oxfam Brasil. Para ele, o governo pode ter menos canais de diálogo para a sociedade levar seus interesses no ano que vem. “É uma população que sempre teve menos acesso ao Estado, como trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas”, destacou.

As minorias tendem a perceber de maneira mais clara as mudanças de política do governo em 2019. Bolsonaro alega que esses grupos têm “superpoderes” e deixou claro que não pretende aumentar demarcação de terras indígenas e de quilombolas. A criação da Reserva Raposa Serra do Sol, de 1,7 milhão de hectares localizada no Estado de Roraima, deverá ser revista.

Presidente da ONG Educafro (Educação e Cidadania de Afro-descendentes e Carentes) – que promove a inclusão de negros e pobres nas universidades por meio de bolsas de estudo -, Frei David prevê uma mobilização crescente contra medidas do futuro governo. Ele cita como exemplo a promessa de Bolsonaro de reduzir o número de cotas para negros nas universidades públicas federais.

“O negro individualmente só assume com garra a luta do seu povo quando sofre algo que o choca. Espero que em quatro anos consigamos fazer aquilo que não conseguimos em 40 anos”, disse ele.

Do Valor