Bolsonaro, sem entender nada, se acha um revolucionário

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Tendo ou não votado em Bolsonaro, fazendo ou não parte de seu futuro governo, a única tese de que ninguém parece discordar é que o eleito não cabe nas instituições. Quem acha que o capitão-presidente vai acabar se adaptando à institucionalidade democrática se divide em dois grupos.

O primeiro grupo é o dos amansadores. Salvo engano, quem lançou a metáfora foi Paulo Guedes. Na edição de setembro da piauí, Malu Gaspar registrou a fala do futuro superministro da economia: “‘Aí chega um sujeito completamente tosco, bruto e consegue voto como o Lula conseguiu. A elite brasileira, em vez de entender e falar assim, pô, nós temos a oportunidade de mudar a política brasileira para melhor…’ Guedes fez uma pausa e prosseguiu, parafraseando as críticas ao seu candidato: ‘Ah, mas ele xinga isso, xinga aquilo… Amansa o cara!’ Pergunto se é possível amansar Bolsonaro. ‘Acho que sim, já é outro animal.’”

O segundo grupo não acredita na tese de que o adestramento será suficiente. Quem acha que pessoas serão incapazes de executar essa tarefa, aposta que as instituições e a realidade farão o serviço. O Congresso, o Supremo Tribunal Federal, as exigências da economia e da gestão de governo, a ordem internacional. Foi o Sensacionalistaquem primeiro levantou a hipótese de uma faixa presidencial em versão camisa de força. Mas o fato é que essa metáfora está na cabeça de muita gente. Na cerimônia de comemoração dos 30 anos da Constituição Federal, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, afirmou: “A fotografia do país é um pouco sombria e isso não tem a ver com eleições, mas com instituições. Governos passam, entram, saem, se reelegem ou não. O papel do Supremo é zelar pelas instituições.”

É no mínimo curioso que um integrante do STF ache que há um problema com as instituições em geral, mas não com a sua em particular. Quando um indivíduo fala como se ele próprio fosse a instituição, não se tem mais uma instituição. Da mesma forma, também não parece lá muito convincente a ideia de que uma fera será adestrada por alguém que lhe é subordinado, como é o caso da relação do ministro Paulo Guedes com o presidente a que servirá. Guedes parece mais alguém que quer levar o crédito por um adestramento que vai muito além das suas capacidades de domador.

As estranhezas dessas duas visões talvez tenham fortalecido a convicção de que a fera não será domada, de que não tem camisa de força institucional que segure esse presidente. Isso e mais o medo que o capitão-candidato conseguiu produzir e disseminar pelo que disse e fez nos últimos trinta anos, a campanha eleitoral incluída. Tem muita gente achando que a sociedade e o Estado serão vítimas de uma barbarização conservadora, de uma selvageria política legitimada pelo voto.

Quem acredita na tese do adestramento ou da camisa de força institucional acha que a hipótese da selvageria de Estado ignora os fatos: é preciso lidar com a fera e a fera terá de lidar com a realidade. Adotar outra premissa seria precipitado e irresponsável, e só serviria para estimular o pânico e a ansiedade. O mínimo que se deve fazer é aguardar ações concretas do novo governo para calibrar as interpretações e as ações correspondentes.

Cabe a cada pessoa decidir por si mesma o que pensar e o que fazer, evidentemente. Mas o que se tem até agora são apenas essas interpretações difusas, essas versões mais ou menos irrealistas do que pode acontecer. Faltam aqueles sinais luminosos que indicam a saída mais próxima em caso de emergência. O que restou do sistema político não anda capaz de produzir interpretação, muito menos orientação para a ação. Quem tem feito isso com exclusividade é o presidente eleito.

Jair Bolsonaro entende a si mesmo como líder de uma revolução conservadora. Não quer mesmo caber nas instituições. Pretende associar às posições de extrema direita que defende tudo o que há de ético e de decente, identificando todo o resto, todo o “sistema político”, com “a esquerda” – vale dizer, com tudo o que há de corrupto e corruptor da vida em comum.

No auge do processo do impeachment de Dilma Rousseff, em julho de 2016, uma pesquisa Datafolha registrou 7% de intenção de voto para Bolsonaro (ainda com Lula como candidato). Àquela altura, o desempenho do capitão-candidato entre quem tinha ensino superior atingia 13%; ele liderava no estrato de renda de 5 a 10 salários (19%) e na faixa acima de 10 salários (16%). A base inicial de apoio a Bolsonaro veio daí.

Parcela relevante dos estratos superiores de renda e de escolaridade começou o desmonte da cúpula do sistema político a partir de lideranças que lhes eram mais próximas. Foi uma revolta de quem frequenta a igreja contra seus pastores, de militares de patentes mais baixas contra as altas patentes, do baixo clero contra o alto clero do Congresso Nacional, de pequenos comerciantes, produtores rurais e industriais contra suas entidades representativas e contra os “campeões nacionais”, da base de primeira instância do Judiciário contra suas instâncias superiores, do baixo clero do mercado financeiro contra os porta-vozes dos bancões. E por aí vai. A revolta começou por ameaçar lideranças que pretendiam falar por seus liderados no momento de negociar seus votos e seu apoio com as cúpulas do sistema político.

A destituição de Dilma Rousseff marcou o momento em que esse desmonte desde baixo chegou pela primeira vez à cúpula do sistema. Outras lideranças do alto clero político só foram atingidas depois da divulgação de trechos da delação de Marcelo Odebrecht, ex-presidente da empreiteira, em abril de 2017, e do vazamento dos áudios de Joesley Batista, dono da JBS, que implodiu Michel Temer e Aécio Neves, em maio daquele mesmo ano.

Não por acaso, a pesquisa Datafolha do mês seguinte, junho de 2017, registrou um salto para 16% na intenção de voto em Bolsonaro. A expansão seguiu o mesmo padrão de sua base eleitoral inicial: ele tinha 21% dos eleitores com ensino superior e liderava nas faixas de renda de 5 a 10 salários (25%) e acima de 10 salários (20%). Manteve o padrão de um voto majoritariamente masculino e com forte presença entre denominações evangélicas. A novidade veio no estrato de 2 a 5 salários mínimos (20%) e entre o eleitorado mais jovem, onde o candidato ganhou terreno.

Em agosto de 2018, quando do início da campanha eleitoral, a saída de Lula da disputa colocou Bolsonaro em um patamar de intenção de voto em torno de 20%. Mais que isso, mostrou o enraizamento de sua base eleitoral: a menção espontânea ao nome do capitão estava em torno daqueles 15% que já tinham aderido a ele um ano antes. Essa sólida base de partida foi o que lhe permitiu seguir competitivo até obter a vitória na eleição.

Foi a esse núcleo duro de apoio que o capitão-presidente respondeu até agora. Assim como prestigia quem acreditou em sua candidatura desde o início, ele parece entender que deve satisfações antes de mais nada a essa base que o apoiou na saída da campanha eleitoral. Entre outras coisas, foi o que o levou a escolher ministros como Sérgio Moro e Paulo Guedes.

Tal equipe ministerial significa certamente uma terceirização de responsabilidades. Ministros que serão verdadeiros senhores feudais de suas áreas terão a incumbência de entregar diretamente ao núcleo duro bolsonarista os resultados esperados. Se não entregarem, troca-se de posto de preferência. Dependendo da circunstância, passa-se de Ipiranga para Shell ou Petrobras, o que estiver mais à mão.

A feudalização radical do governo é também uma maneira de ganhar tempo. Tempo político para administrar a paciência do eleitorado caso resultados palpáveis demorem a aparecer, o que está longe de ser improvável. Tempo político para seguir com o trabalho de mobilização nas redes com vistas à continuidade da revolução conservadora nas eleições de 2020 e 2022.

Bolsonaro não tem máquina eleitoral clássica. Não pode e não quer ter uma. Tem uma rede. Para mantê-la, precisa convencer o núcleo duro de seu eleitorado de que não irá abandonar a luta contra o sistema político. Precisa continuar com a tática de recrutamento fora do sistema. Conta para isso com os inúmeros grupos de WhatsApp que mantém ativos e mobilizados de maneira permanente.

Em reportagem da Folha de S.Paulo de 18 de novembro, Julio Wiziack e Marina Dias deram uma ideia do que isso significa. Mesmo tendo seu nome chancelado pelo guru-mor de Bolsonaro, o general Augusto Heleno, a educadora Maria Inês Fini foi vetada para ocupar o cargo de ministra da Educação. A origem do veto foi um telefonema da deputada eleita pelo PRP-DF, Bia Kicis. O que a deputada disse a Bolsonaro foi simples e direto: a indicada não poderia ocupar o cargo porque tinha sido responsável pela última prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e dado aula na Unicamp. Nas palavras do próprio presidente eleito, no dia seguinte, em O Globo: “Essa pode esquecer. Ela não esteve à frente da prova do Enem? Tá fora. Cartão vermelho. Não tem amarelo, é vermelho direto.” O mesmo padrão foi observado no veto da base evangélica à indicação subsequente de Mozart Neves Ramos e na escolha definitiva de Ricardo Vélez Rodríguez.

A indicação de um aiatolá para o Ministério da Educação (a expressão é de Clóvis Rossi) ou de um inquisidor do Santo Ofício para o Ministério das Relações Exteriores podem parecer obscurantistas e, no limite, são um tiro no pé. Mas revelam também o desejo do núcleo duro bolsonarista de constituir um time de governo apenas com novas caras, tanto quanto possível. Um time composto por pessoas que não tenham ocupado posições de poder. Quem já esteve no poder anteriormente é “de esquerda”, é “sistema”, as duas coisas sendo sinônimos no vocabulário bolsonarista.

Como venceu a eleição com muita mobilização, mas sem nenhuma organização, Bolsonaro tem de convencer seu eleitorado mais fiel de que a revolução conservadora apenas começou. Precisa pedir tempo e paciência para desmontar de uma vez por todas o sistema político. Precisa conseguir que as pessoas de sua rede se engajem e se candidatem na eleição de 2020 para preparar uma renovação geral que prometerá completar apenas em 2022. A tática de identificar tudo que não é o seu governo – ou seja, a “esquerda” – com o “sistema político” o impede de utilizar os mecanismos clássicos do mesmo sistema para atingir esse objetivo.

É isso o que as hipóteses do adestramento e da camisa de força institucional ignoram ou preferem ignorar. Pode parecer razoável esperar que o novo governo se instale e comece a agir oficialmente para só então reagir concretamente às suas medidas. Mas isso só faz sentido deixando de lado o caráter revolucionário do projeto conservador que Bolsonaro representa. Ou superestimando a capacidade de um sistema político destroçado de resistir a um projeto que pretende tirar o pouco de chão que ainda lhe resta para se apoiar. Superestimando a capacidade de instituições debilitadas de resistir a trombadas violentas.

No fundo, candidatos a adestradores e adeptos da teoria da camisa de força pensam que Bolsonaro será obrigado mais cedo ou mais tarde a se render – à realidade, à situação fiscal, às dificuldades de produzir um governo funcional. Guardadas as proporções históricas, esperam que aconteça com Bolsonaro o que aconteceu com Collor em 1992, quando caiu nos braços do PFL de Jorge Bornhausen para tentar salvar seu governo. Guardado o abismo ideológico, esperam que aconteça com Bolsonaro o que aconteceu com Lula, que caiu nos braços do PMDB em 2005, após o mensalão.

Só que não. O capitão está disposto a perder tudo se for necessário, mas nunca se renderá. É isso o que parece incompreensível para quem pensa em amansá-lo ou espera que a camisa de força venha a lhe tolher os movimentos. Incompreensível porque é revolucionário, justamente. O mesmo velho sistema político que se horrorizou com as pretensões hegemonistas do PT vai descobrir que o partido de Lula era um partido tucano em comparação com o projeto hegemonista que Bolsonaro representa. Vai descobrir que o “nós contra eles” petista, que tanto horror provocou, era brincadeira infantil perto do que fará o capitão-presidente. Agora é “nós contra a rapa”.

Bolsonaro faz parte de um projeto de pretensões globais de construção de uma nova internacional conservadora. O presidente eleito se alinha às novas direitas (e são muitas) que tomam como norte governos como os do Chile, dos Estados Unidos, da Itália, da Hungria. O futuro chefe do Itamaraty, o embaixador Ernesto Araújo, foi posto lá para participar dessa construção.

O capitão-presidente tem bem pouco a ver com Donald Trump, assim como a democracia brasileira tem pouco a ver com a institucionalidade democrática dos Estados Unidos. Bolsonaro imita Trump antes de tudo como tática para se normalizar. Mas não só. A maneira de operar de Trump não é uma exclusividade do presidente americano; é um modus operandi comum aos expoentes da nova internacional conservadora.

A tática geral é simples. Não há pretensão de governar para todo mundo. Esse discurso e essa prática seriam típicos do velho mundo da velha política, que era pura enganação. Trata-se, agora, de governar para uma base social e eleitoral que não é maioria, mas que é grande o suficiente para sustentar um governo. Algo entre 30% e 40% do eleitorado. Tornar essa base fiel é fundamental para manter o poder. Em momentos críticos, como, por exemplo, as disputas eleitorais, a tática consiste em produzir inimigos odientos o suficiente para conseguir uma ampliação forçada dessa base e assim conquistar a maioria.

Não é à toa que a futura oposição está desnorteada. Bolsonaro não reorganizou o sistema no sentido clássico, partidário, da expressão. Produziu uma reorganização muito peculiar. Colou a pecha de “sistema” em tudo o que não é ele, em todo mundo que não está do seu lado.

O tempo é de paradoxos. O capitão-presidente vai se identificar como antissistema ao mesmo tempo que será governo. Fará um governo antiestablishment, se é que uma expressão como essa é compreensível. Tudo o que se opuser a seu governo será “sistema”, “velha política”. Velhacaria, em suma. Se a “velha política” no Congresso votar com ele, não terá feito mais do que sua obrigação. Se não votar, enfim, será a prova de que continuam os mesmos velhacos de sempre.

Tem muita gente que quer aderir, sem dúvida. Mas quem “do sistema” fizer isso será tratado como o próprio Bolsonaro sempre foi tratado no Congresso: como baixo clero. A roda da fortuna girou, o baixo clero chegou à Presidência.

Como fazer oposição a um governo como esse? A reorganização bolsonarista obriga quem quiser fazer oposição a defender a política, as instituições existentes, o “sistema”. Quem quiser fazer oposição está colocado desde já no lugar de quem defende as instituições que, pelo menos desde 2013, se tornaram indefensáveis.

É o que parece impossível para as diferentes forças oposicionistas. Porque, do ponto de vista do cálculo eleitoral, isso significaria cair na armadilha de Bolsonaro, significaria se identificar com o “sistema” universalmente detestado. Acontece que essa foi a verdadeira vitória de Bolsonaro. O vencedor designa ao perdedor o seu lugar. E o lugar que Bolsonaro reservou à oposição foi “o sistema”. A eleição foi ganha assim e o presidente eleito pretende governar assim.

Aí está a raiz da paralisia atual da futura oposição, obrigada a realizar simultaneamente tarefas aparentemente incompatíveis. Todas as forças de oposição, da direita à esquerda, teriam de se unir na defesa das instituições democráticas, ao mesmo tempo que teriam de chegar a uma proposta conjunta de reforma dessas instituições. Uma concertação democrática como essa teria ao mesmo tempo de defender instituições indefensáveis na sua forma atual e propor uma renovação radical dessas mesmas instituições. Cada força política de oposição teria de ter garantido o espaço de fazer oposição à sua maneira e como bem entender, ao mesmo tempo que se perfilaria ao lado de todas as outras forças de defesa das instituições democráticas e de sua reforma. Quem pretende manter vivo o jogo democrático precisa colocar todas as suas forças em separar as duas coisas na batalha da opinião pública. Precisa convencer que o sistema político tal como funcionou até a eleição de 2014 não é a única maneira de um sistema político funcionar, não é a única forma que a democracia pode ter. E, no entanto, quem não está com Bolsonaro parece agir como se a batalha já estivesse ganha desde sempre. Parece achar que o poder lhe cairá no colo cedo ou tarde, assim que ocorrer o naufrágio inevitável do governo do capitão-presidente.

Diante da dificuldade de uma construção política complexa como essa, as diferentes forças de oposição escolheram até agora o caminho mais preguiçoso e mais arriscado: resolveram sentar e esperar que o governo Bolsonaro naufrague. Não se cansam de fazer cálculos e mais cálculos eleitorais, não se cansam de pensar nos créditos eleitorais futuros que terão com o fracasso do capitão-presidente.

Difícil saber com que definição de fracasso estão contando. A economia não vai decolar, o desemprego e a criminalidade não vão diminuir, o governo não vai conseguir a coordenação necessária para funcionar minimamente, as instituições democráticas vão barrar suas iniciativas autoritárias? E se tudo isso acontecer e Bolsonaro, ainda assim, conseguir convencer 40% do eleitorado de que é exatamente isso, de que precisa de tempo para desmantelar as maldades montadas pelo sistema político durante décadas?

A futura oposição continua achando que Bolsonaro é tosco, bruto. Zomba da precariedade de tudo o que o presidente eleito fala e faz. Tem certeza de que ele não é capaz de reorganizar o sistema nem de produzir um governo funcional. E, do alto de sua superioridade e inteligência, confunde tudo isso com fracasso político. Mais uma prova de como a inteligência pode ser estúpida.

Bolsonaro não foi escolhido pela maioria do eleitorado, mas pela maior parte de quem compareceu e não votou branco ou nulo. Uma atitude arrogante, um posicionamento meramente passivo e reativo por parte do amplo campo de oposição pode dar ao capitão-presidente o tempo de que precisa para impor seu projeto hegemonista. Ao preço do colapso das instituições democráticas, se for necessário.

Instituições funcionando de maneira disfuncional. Foi isso o que elegeu Bolsonaro. E é também o que pode mantê-lo no poder. É o que pode lhe dar tempo para aprofundar sua revolução conservadora. Quem pode evitar que perdure o apagão institucional que elegeu o capitão está passivamente aguardando que algo aconteça para reagir e para se organizar. Enquanto isso, deixa na mão do presidente eleito o controle exclusivo da chave de luz capaz de manter a escuridão democrática que o elegeu.