Bolsonaro usará religião como cortina de fumaça para atacar trabalhador, diz Haddad

Todos os posts, Últimas notícias

Segundo colocado da eleição presidencial de 2018, com 47 milhões de votos no segundo turno, Fernando Haddad afirma que o país poderá viver a seguinte realidade a partir de 1º de janeiro de 2019, com a posse de seu adversário nas urnas, o capitão reformado e ex-deputado federal Jair Bolsonaro, eleito com 58 milhões de votos: estabilidade social e política associada ao aumento da desigualdade.

“Não é verdade que a desigualdade gera instabilidade. Você pode ter um cenário em que você tem uma estabilidade em meio ao aumento da desigualdade”

Mas de onde vem a fórmula para esse possível cenário? Segundo o petista, Bolsonaro dispõe de uma base social neopentecostal, cuja doutrina da teologia da prosperidade fortalece a agenda econômica do novo governo. A teologia da prosperidade associa a ascensão financeira a um ato de fé. Incentiva o avanço material a partir de uma perspectiva individual, com o pagamento de dízimos a igrejas.

“O neoliberalismo no Brasil é impossível sem um substrato espiritual. Diante de tanta desigualdade, você tem que ter um substrato espiritual para dar sustentação para a radicalização neoliberal”

Ainda segundo Haddad, o discurso conservador nos costumes e um segundo tipo de discurso, que classifica como “esotérico”, podem ajudar a manter mobilizada essa base social, enquanto o governo faz avançar sua agenda econômica.

“[Esses discursos] dialogam com certo sentimento social que foi construído ao longo dos últimos anos, uma coisa meio pré-iluminista. Isso pode ajudar a legitimar o projeto que Bolsonaro representa”

Na oposição, Haddad defende uma abertura de diálogo com a população evangélica, especialmente com o movimento neopentecostal, a quem ele atribui a perda da base social do PT. Segundo o petista, será um momento de debate público em torno de valores culturais e educacionais muito parecido com o qual o Brasil já viveu nas décadas de 1930 e 1950.

Nesta entrevista ao Nexo, concedida no dia 19 de dezembro, na redação do jornal, no centro de São Paulo, e complementada com novas perguntas no dia 27 de dezembro, por telefone, o ex-prefeito, ex-ministro da Educação, professor licenciado da USP e professor do Insper detalha os prognósticos sobre o novo governo, analisa a sequência de fatos que levaram à derrota do PT após quatro vitórias seguidas em disputas presidenciais e diz como ele e o partido devem atuar a partir de agora na oposição.

O PT foi cobrado na campanha por perder o contato com a base social. O sr. e o partido falam em recuperá-la. Como, com qual discurso e a partir de quais canais?

FERNANDO HADDAD Eu acredito que pelas características do Brasil, que é um país de uma formação bastante incomum, temos uma sobreposição de camadas históricas desafiadoras do ponto de vista emancipatório. Nós temos um Estado que é patrimonialista. Na economia, carregamos ainda o fardo da escravidão. Tudo que ela significou e significa para a história do país. Nós temos, no campo da cultura, uma atuação extremamente conservadora, uma atuação muito conservadora de instituições que inibem uma superação na direção de uma República moderna. Você tem um recrudescimento disso no último período, até como reação às medidas democratizantes que os governos do PT [2003 a 2016] adotaram no país. Então, nas Américas, talvez seja o Brasil o único país que tenha essas três camadas presentes. Na política, patrimonialismo. Na economia, a sequelas da escravidão. E na cultura, uma contrarreforma antes da reforma – quer dizer, você teve aqui todos os efeitos da contrarreforma sem nenhum ganho do ponto de vista do distensionamento dos costumes, de uma visão mais moderna de sociabilidade. De uma certa maneira, os nossos governos são um ponto fora da curva. O mais extraordinário na nossa história recente é nós termos ganhado quatro eleições presidenciais. Perdemos uma quinta. Em algum momento haveria alternância no poder, só que a partir de 2013 você teve um fenômeno novo, que foi uma reação conservadora, e ali não existia Operação Lava Jato nem crise econômica.

Na sua opinião, as manifestações de junho de 2013 foram uma reação conservadora?

FERNANDO HADDAD É um ponto de inflexão. O epicentro, que é São Paulo, é efetivamente conservador [Haddad era prefeito de São Paulo durante as manifestações de 2013]. Tirando a primeira semana, em que os meninos do MPL [Movimento Passe Livre] estavam basicamente liderando o processo, mas a partir da segunda semana virou outra coisa, tanto é que os protagonistas das primeiras manifestações deixaram as ruas. Estou dizendo que foram impelidos a deixar as ruas. E as ruas se tornaram outra coisa. Talvez no Rio a história seja um pouco diferente, mas em São Paulo, Brasília e outras capitais, mas sobretudo São Paulo e Brasília, o viés era absolutamente conservador. Conversando com pessoas de esquerda no Rio, eles me convenceram que ali foi uma outra coisa, de características mais híbridas. Mas o resto do país eu estou convencido de que não. Em 2014, nós cometemos um erro estratégico básico na eleição [presidencial], todo nosso discurso [da candidata à reeleição Dilma Rousseff] ia numa determinada direção [de que não era necessário mudar os rumos da economia] e o governo recém-reeleito se organizou numa direção contrária àquilo que tinha sido anunciado na campanha [em direção ao ajuste fiscal].

O sr. classifica como estelionato eleitoral?

FERNANDO HADDAD  Eu não classifico assim por uma razão simples. Eu acredito que o que agravou o problema não foi nem tanto o cavalo de pau [do governo], que em si já ensejaria algum cuidado maior, mas foi a reação da oposição a esse cavalo de pau. Ou seja, se jogou lenha na fogueira com as pautas-bomba [no Congresso] e com a tentativa, na minha opinião, bem-sucedida, de desestabilizar o governo, e isso nós dizíamos de forma isolada. De maneira que foi muita coisa o que aconteceu de 2013 para cá. Erros nossos, erros da oposição e um sistema político que veio abaixo em função da Operação Lava Jato [a partir de março de 2014]. Então nessas circunstâncias e com aquelas pendências históricas se reapresentando, sobretudo um fenômeno novo, não tão novo, quase contemporâneo ao próprio PT, mas que também se manifestou com muita força, que é o neopentecostalismo, ao qual atribuo uma parte da perda da base do PT. Isso gerou o fenômeno da eleição do Bolsonaro, com ingredientes também eventuais. Não vamos subestimar o peso de um atentado durante uma campanha eleitoral [Bolsonaro sofreu uma facada em 6 de setembro de 2018 durante um evento público em Minas Gerais], não vamos subestimar o mau uso que foi feito das redes sociais, inclusive com suspeitas bastante concretas de uso de caixa dois [o PT entrou com uma ação contra Bolsonaro a partir de uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo, ainda não julgada pelo Tribunal Superior Eleitoral]. Ficou evidente um descolamento entre o PT e a população evangélica, cada vez mais crescente e influente.

O PT, em outras eleições, fez acordos, por exemplo, com a Igreja Universal de Edir Macedo. Como pretende lidar com isso agora?

FERNANDO HADDAD O PT, historicamente, nunca buscou propriamente apoio das igrejas porque ele sempre soube das dificuldades disso pelas razões históricas que eu já mencionei, sempre buscou uma certa neutralidade, sempre buscou empatar o jogo nesse campo, porque sempre soube do peso que isso teria se nós angariássemos antipatia. E nós fomos muito bem sucedidos na redemocratização, no processo de redemocratização, em dialogar com a Igreja Católica. Eu não excluo, e inclusive considero saudável, que nós tenhamos interlocução com a base neopentecostal em torno de um projeto de nação. Porque se o neopentecostalismo der sustentação política para o neoliberalismo nós podemos ter uma estabilidade que pode trazer mais desigualdade, porque não é verdade que a desigualdade gera instabilidade. Você pode ter um cenário em que você tem uma estabilidade em meio ao aumento da desigualdade.

Como é possível ter uma sociedade estável com aumento de desigualdade?

FERNANDO HADDAD Acredito que nós vamos ter nos próximos quatro anos, até por inércia do ciclo econômico, uma situação melhor do que os últimos quatro anos. Quase que por uma questão matemática. Não tem como os próximos quatro anos serem piores, porque os últimos quatro anos foram muito ruins na economia. Isso significa que vai ter aí um crescimento da ordem de 2,5% ao ano, o que não é nenhuma maravilha para um país como o Brasil, que precisa crescer mais de 4% para ter alguma chance de escalar e se aproximar das nações desenvolvidas num prazo razoável. Só que esse baixo crescimento que se anuncia, da ordem de 2,5% ao ano, virá acompanhado do aumento da desigualdade em função das medidas econômicas que o governo vai adotar. Para isso ter alguma chance de estabilidade política, uma agenda conservadora vai ter que se colocar. Todas as manifestações do presidente eleito de forma direta com a população – porque ele dá poucas entrevistas, talvez não tenha condição cognitiva para isso – falam de assuntos esotéricos: Foro de São Paulo e Cuba, por exemplo, criando problemas fictícios que dialogam com certo sentimento social que foi construído ao longo dos últimos anos, uma coisa meio pré-iluminista. Isso pode ajudar a legitimar o projeto que Bolsonaro representa. Considero uma tarefa muito difícil um governo neoliberal que se anuncia desprovido de um componente espiritual que de alguma maneira venha em seu socorro. Nos governos Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer houve um neoliberalismo cru, sem um tempero espiritual. Agora, [o novo governo] tem a teologia da prosperidade, em que [a ascensão social] só depende do indivíduo. E obviamente do pagamento de dízimos.

O sr. fala em interlocução com os neopentecostais. Qual a estratégia para fazer essa interlocução?

FERNANDO HADDAD Isso não é uma resposta simples. Eu vou voltar a dar um curso sobre história da educação e gestão educacional. Gestão educacional com foco também histórico. Eu estou recuperando textos do embate entre [o educador] Anísio Teixeira [idealizador e executor de um modelo de escola pública que prioriza a compreensão, expressão e ação em lugar da memorização] e a Igreja Católica [que na década de 1950 se opunha ao modelo de educação pública e laica]. Anísio, que hoje se sabe que provavelmente foi vítima da ditadura militar, talvez seja o brasileiro com maior compromisso com a educação da nossa história. É o maior nome de um educador brasileiro, sobretudo do ponto de vista da gestão pública. Porque muito mais conhecido é o Paulo Freire, mas o Paulo Freire nunca foi afeito à gestão.

O Anísio se confunde com a história da educação. Eu, nos meus sete anos no Ministério da Educação [2005 a 2012], tomava o Anísio Teixeira como guia, porque até hoje os textos dele são atuais. Tenho as obras completas dele em casa, sou leitor assíduo do Anísio. E, no entanto, ele foi considerado ao seu tempo um inimigo, um inimigo do Brasil. Então essas questões precisam ser sempre trabalhadas novamente. Esses processos não são retilíneos. Voltei a estudar esse período em função do contexto histórico para mostrar a atualidade no debate dos anos 1950. Ou seja, a história não é uma linha reta, não é uma linha contínua. Você tem idas e vindas, você dá dois passos para frente e um para trás. Às vezes você dá um para frente e dois para trás. Então eu tenho muita preocupação com essa questão que eu chamo do aspecto cultural. Essa dimensão cultural da vida republicana, porque nós podemos estar vivendo um retrocesso grande.

Mas como vai trabalhá-las na prática? Essa linha de ação existe ou está no campo teórico?

FERNANDO HADDAD  Uma coisa que é importante sublinhar, primeiro a convicção pessoal minha, mas o que eu penso que é se eu pertenço a algum campo que pretende transformar a realidade brasileira, isso não se faz sem estudar. Manter o status quo não exige grande estudo, mas mudar o status quo exige. Por isso que em geral a esquerda está associada a livro e a direita está associada a arma. É porque a esquerda precisa ler, escrever para tentar transformar. E a direita precisa reprimir. Essas metáforas não são casuais. Valeu para maio de 1968 na França e vale para 2018 no Brasil. Nós precisamos estudar para poder aprender esses fenômenos. Então é ir à periferia, mas é para ir para a periferia com um olhar crítico para poder interagir e construir uma alternativa. Não é simplesmente um voluntarismo que vai nos levar a uma equação nova. Nós precisamos saber que há lugar para esse público. E mostrar que a teologia da prosperidade tem que ser compatível com uma sociedade menos desigual. Nós temos que buscar essa compatibilidade. E a busca dessa compatibilidade exige reflexão. O sr. fala da atualidade do debate dos anos 1950, com destaque à dimensão cultural da vida republicana.

Qual o paralelo daquele período com a agenda atual?

FERNANDO HADDAD Nos anos 1950, houve a famosa polêmica entre o Anísio Teixeira e o então frei Paulo Evaristo Arns, que ainda não era cardeal. Dom Paulo fez uma crítica mordaz a um livro de Anísio dos anos 1930. Era uma crítica a um capítulo sobre a conduta humana, sobre a moral laica, que deveria fazer parte das preocupações da escola, baseada em princípios republicanos e baseada em em evidências científicas. Essa era a perspectiva do Anísio. Não era algo contra a religião. Era a favor de uma base científica para falar da conduta humana, da vida em sociedade. Aquilo gerou uma reação muito forte nos anos 1950, a ponto de intelectuais brasileiros, entre eles [o ex-presidente] Fernando Henrique Cardoso, assinarem um novo manifesto [o manifesto chamava-se “Mais uma vez convocados”, lançado em 1959] na esteira do famoso “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932. Sempre em defesa da escola pública gratuita e laica. De alguma maneira a gente está revivendo esse tempo. O projeto Escola Sem Partido e esses movimentos todos que estão acontecendo em torno da escola pública visam não só impor à escola uma espécie de lei da mordaça, uma censura à livre docência dos professores, mas também visa fazê-la perder a sua laicidade, o que nos remete para esses debates que aconteceram tanto nos anos 1930 quanto nos anos 1950. Eu faria referência também às recentes manifestações do presidente eleito sobre como ele vai conduzir as questões relativas à cultura.  Quando ele diz que vai controlar os gastos em cultura da Lei Rouanet, à primeira vista é uma questão adequada: fixar um teto de renúncia fiscal em proveito da cultura para que não haja desperdício. Mas quem vai definir quais projetos de cultura vão ser financiados ou não? É ele? Vai fazer com a cultura como vai fazer com o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]? Ele já disse que vai controlar a prova do Enem pessoalmente. Ele que vai controlar pessoalmente a qualidade crítica e estética dos projetos culturais a serem financiados pela Lei Rouanet? Esse é um pacote que envolve cultura, escola pública e assim por diante.

Como o PT vai fazer oposição ao Bolsonaro e qual o seu papel nessa oposição?

FERNANDO HADDAD Olha, as pessoas não são obrigadas a lembrar disso, mas quando eu era professor lá atrás nos anos 1990, eu fiz oposição ao governo Fernando Henrique na condição de professor. Eu escrevia artigos, me manifestava, participava de debates. O que vai mudar de lá para cá é a audiência, evidentemente depois de ter participado de uma corrida presidencial em que você chega ao segundo turno, você vai ter mais audiência. Mas eu pretendo intervir de forma qualificada, apontando caminhos, apontando alternativas. Vou citar um exemplo. O Paulo Guedes [futuro ministro da Economia] anunciou que vai praticamente acabar com o Sistema S, transformar a contribuição em voluntária. Se isso acontecer, nós vamos destruir um patrimônio, um legado da Era Vargas muito importante. Eu fui o único ministro da história da Educação que fez uma reforma do Sistema S em 2008, obrigando o sistema a reservar dois terços da sua receita para cursos gratuitos, direcionados ao jovens de baixa renda. O meu plano de governo em 2018 previa uma segunda rodada de reformas, para que o Sistema S fosse o segundo turno do ensino médio. Transformar o Sistema S no segundo turno do ensino médio. Então vai na direção contrária ao fim do Sistema S proposto pelo Paulo Guedes. O PT, se depender de mim, vai atuar nesse sentido. Para dar um exemplo do que pode ser feito. Nós somos melhores do que esse governo. As nossas propostas são melhores do que as dele.

Como avalia a nova configuração de forças no Congresso e a relação com o governo?

FERNANDO HADDAD O perfil do Congresso é o perfil aderente ao governo. O governo tem um caminho para compor maioria. Não sei se está tendo habilidade para isso ou não, mas tem um caminho. Esse governo tem três núcleos. Um núcleo fundamentalista, basicamente com características anticientíficas. Nele estão os ministérios da Educação, das Relações Exteriores, do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos, para citar quatro dos mais visíveis. São pessoas com completo desapego à ciência, a evidências empíricas e com traços exóticos do ponto de vista dos fundamentos da sua visão de mundo, uma visão muito fundamentalista do processo histórico. Um núcleo neoliberal, que é dado pelo Paulo Guedes, e eu digo que esses dois núcleos são faces da mesma moeda, porque o neoliberalismo no Brasil é impossível sem um substrato espiritual. Diante de tanta desigualdade, você tem que ter um substrato espiritual para dar sustentação para a radicalização neoliberal. E um terceiro núcleo que eu chamo de político, que vai arbitrar um pouco, que é o núcleo do Ministério da Justiça junto com o militares. Será uma dinâmica de tutela e intimidação. Nós estamos diante de uma pessoa despreparada à frente da Presidência, então é uma pessoa que não vai propriamente liderar processos. É uma pessoa que tem que ser, de alguma maneira, tutelada, manietada para se comportar diante de determinados parâmetros. Então tem ali uma tutela, no jargão popular, impedir que saiam da casinha. E intimidação. Por exemplo, vincular movimentos sociais ao terrorismo. Colocar os sindicatos de baixo do Ministério da Justiça. Nada disso faz parte da tradição brasileira. Então são questões que justificadamente geram inquietações. Então [é uma dinâmica que] atua para dentro do governo e para fora em relação àqueles que não concordam com o plano de vôo desse governo. Esses três núcleos podem gerar aquilo que eu chamei já nessa conversa de uma estabilidade. Pode gerar um quadro de estabilidade que não enfrenta o principal problema do país que é a desigualdade.

Qual o papel do escritor Olavo de Carvalho nesse contexto?

FERNANDO HADDAD Não posso comentar a obra do Olavo de Carvalho porque eu desconheço. Ele é considerado um autor menor que não mereceria uma atenção. É possível julgá-lo ainda que superficialmente por dois indicadores bastante notáveis. São os ministros que ele nomeou para dois postos-chave do governo Bolsonaro que tiveram enorme prestígio durante os anos Lula. São o Ministério da Educação [o indicado foi Ricardo Vélez Rodríguez] e o Ministério das Relações Exteriores [o indicado foi Ernesto Araújo]. A julgar essas indicações, você tem uma ideia da dimensão de quem é essa pessoa. São dois ministros considerados ridículos na Esplanada dos Ministérios, pessoas que não têm nenhuma contribuição notável para nada relativo às suas pastas. A segunda questão é a aversão de Olavo de Carvalho não só ao pós-Iluminismo relativista, o que seria compreensível no contexto no qual ele se move, mas uma crítica em relação ao próprio Iluminismo, o que demonstra que os embates intelectuais que ele organiza, ele o faz de uma perspectiva pré-iluminista, que busca fundamento em valores pré-iluministas para se contrapor ao avanço da modernidade. Então é uma pessoa retrógrada no sentido muito profundo do termo. Ele vai buscar basicamente no pré-moderno os elementos para se confrontar com a esquerda. Não são argumentos liberais contra a esquerda, são argumentos pré-modernos. E isso está expresso inclusive nos seus discípulos, o ministro das Relações Exteriores e o ministro da Educação, que se colocam numa trincheira pré-moderna, anticientífica, no sentido lato do termo, numa trincheira fundamentalista para enfrentar o debate contemporâneo.

O sr. falou na campanha e mesmo na pós-campanha em ameaça à democracia. Objetivamente, qual é a ameaça?

FERNANDO HADDAD Como eu vejo a democracia? O mundo, desde as revoluções modernas, estou falando das três grandes – Inglesa, Francesa e Americana –, você teve jornadas de ampliação do horizonte, das perspectivas emancipatórias dos indivíduos. Você tem pelo menos quatro jornadas, quatro gerações de direitos. Direitos civis foram os primeiros. Os direitos civis, que às vezes as pessoas não sabem do que se tratam, por exemplo, direito LGBT é direito civil; direito à liberdade religiosa, direito civil; igualdade de gênero, homens e mulheres, direito civil. São direitos civis. Há ameaça em relação a isso, na minha opinião? Há. Há algumas ameaças importantes. O tema da religião está entrando na vida pública de uma maneira que pode gerar conflito. Conflito entre evangélicos e matriz afro, conflito entre os próprios cristãos. Tem uma série de conflitos. A maneira totalmente desrespeitosa como a comunidade LGBT foi tratada nas eleições, dizer que o Estado estava querendo orientar a sexualidade de crianças de seis anos… Se tornou um desrespeito que gera violência, gera intolerância. Aí você tem o capítulo de direitos políticos, que é basicamente direito de associação. Quando alguém ameaça a oposição, de prisão, extradição… Quando alguém ameaça movimentos sociais de criminalização, você está falando de uma ameaça a direitos políticos. Depois você tem direitos sociais.

O sr. vê uma real possibilidade de criminalização de movimentos como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)?

FERNANDO HADDAD Com certeza. A todo momento tem morte, tem mais do que criminalização, tem eliminação física de lideranças que lutam pela terra, por demarcação de terra indígena etc. Aí você tem direitos sociais, o teto de gastos limita a expansão dos direitos sociais. A população cresce e envelhece. Se tiver teto de gastos por 20 anos, os direitos sociais estarão ameaçados. E agora a quarta geração é direitos ambientais, que é você ter direito a um meio ambiente saudável. Você tem aí, o Brasil vai deixar de hospedar a COP-25, você tem a provável saída do Brasil do Acordo de Paris. Então você tem também a quarta geração de direitos. O próprio tratamento que está sendo dado à questão indígena tem a ver com o meio ambiente, não é só direitos civis, mas tem também a questão ambiental no caso específico. O meu conceito de democracia é um conceito um pouco mais sofisticado do que está sendo usado pelos partidários do Bolsonaro quando falam “não, olha, as instituições estão funcionando”. Não é disso que eu estou falando. Eu estou falando de democracia no sentido pleno da palavra. Então o meu conceito de democracia é esse. Se você começa a limitar essas conquistas históricas e colocar em risco essas conquistas históricas, isso para mim é uma ameaça à democracia. Ameaça à democracia não é fechar Congresso só. Todo e qualquer movimento no sentido de aumentar a intolerância numa sociedade é antidemocrático. E as instituições podem estar funcionando plenamente, mas não vai deixar de ser antidemocrático.

Qual o papel do Lula no Brasil de hoje? Uma vez que ele está preso, está cumprindo pena, e vem mais processos por aí, provavelmente mais condenações e eventuais penas.

FERNANDO HADDAD Eu acredito que o legado do Lula, sem sombra de dúvida, foi ele que nos colocou no segundo turno, que nos deu condições de competitividade. Se o Lula estivesse disputando a eleição, por todas as pesquisas qualitativas cujos relatórios enxergaram, eu diria para você que dificilmente o Lula perderia. Então ele é uma figura importante no imaginário da população. A história é continuamente escrita e reescrita em função do que acontece depois. Vai depender muito do que vai acontecer com o Brasil nos próximos anos. Não depende só do que o Lula já fez.

Diante do episódio envolvendo a liminar do ministro Marco Aurélio Mello que poderia liberar Lula e sua posterior cassação pelo presidente do Supremo, Dias Toffoli, o sr. vê perspectiva de o ex-presidente deixar a cadeia?

FERNANDO HADDAD Na minha opinião, o melhor caminho para a liberdade do Lula são os recursos que tramitam no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal [recursos especial e extraordinário, respectivamente, que integram o processo do caso tríplex]. Os recursos estão muito bem feitos e revelam com muita clareza a fragilidade dos elementos utilizados para a condenação. Sobre esse episódio, essas escaramuças jurídicas de parte a parte, ainda que eu seja um total defensor do texto da Constituição, acabam fragilizando o Judiciário perante a opinião pública. Quando um ministro usa o regimento interno de forma a buscar uma ou outra solução de acordo com o que ele pensa que é justo, muitas vezes isso mais fragiliza do que fortalece o sistema. É óbvio que eu simpatizo com aqueles que fazem isso para defender o que eu considero a versão mais fidedigna da Constituição. Mas acho que uma decisão robusta só vai vir dos colegiados no momento próprio. No julgamento dos recursos [do caso tríplex] e no julgamento das ADCs [ações diretas de inconstitucionalidade que questionam a prisão após condenação em segunda instância, com avaliação do plenário do Supremo prevista para 10 de abril de 2019].

O seu futuro está diretamente relacionado ao PT e, por consequência, a Lula? O sr. não projeta escolhas e caminhos políticos diferentes para além da lógica que vigorou até aqui no partido, de que o ex-presidente indica seus chamados ‘postes’ para disputar as eleições?

FERNANDO HADDAD Olha, esse tipo de jargão para diminuir as pessoas é uma estratégia de depreciação que não ajuda o país. Eu sou a pessoa, dos brasileiros vivos, que mais tempo ficou à frente do Ministério da Educação. Assim, com muita modéstia, eu sou considerado por alguns o melhor. Pela quase totalidade dos historiadores da educação, um dos melhores ministros da história da educação. Fui prefeito da cidade de São Paulo e ganhei dez prêmios internacionais, dei visibilidade para a cidade fora. Então ficar tentando me diminuir em função da grandeza da liderança do Lula, não acho que ajuda o Brasil. Sinceramente, mais os jornalistas que me tratam assim. Os meus adversários não me tratam assim. É curioso notar que mesmo meus adversários não me tratam tão mal quanto alguns jornalistas.

Mas o sr. vê o seu futuro diretamente atrelado a Lula e ao PT?

FERNANDO HADDAD Eu sou formalmente filiado ao PT desde 1985 e milito junto ao PT desde 1983. Eu acredito que o Brasil precisa de um partido de centro-esquerda forte. E o PT tem sido até aqui o partido de centro-esquerda com capacidade de disputar uma eleição em condições de vitória, o que é muito importante num país de extrema desigualdade como o Brasil. Eu não vejo no horizonte de curto prazo ainda – pode ser que isso mude – a emergência de uma força comparável. E os trabalhadores não podem ficar órfãos de uma força como essa, com essas características. Seria muito ruim para o Brasil um cenário em que a extrema direita disputa com a direita e não tem um partido de centro-esquerda para, no mínimo, oferecer resistência à reprodução de um sistema que gera tanta desigualdade. Então é mais nesse sentido que eu me coloco, porque eu sou uma pessoa que me situo num campo, no chamado campo progressista, que é um campo de centro-esquerda. A maior liderança desse campo até hoje foi o Lula, é o Lula. E a maior força política organizada desse campo é o PT. Ah, o que a história reserva para esse campos? No curto prazo, é o que temos. No médio e longo prazo, não sei como as coisas vão evoluir.

Pode aparecer outro partido de centro-esquerda, pode se formar uma frente ampla progressista no Brasil de vários partidos? Acha que isso é possível? Outros partidos de centro-esquerda falam em isolar o PT.

FERNANDO HADDAD Será que são outros partidos ou outras pessoas? Eu não vejo declaração de presidente de partido dizendo “vamos isolar o PT”. Agora, existem visões diferentes. Eu tenho lido entrevistas do Ciro [Gomes, candidato do PDT à Presidência], e do Mangabeira [Unger, conselheiro de Ciro], por exemplo. Às vezes há alguma ambiguidade. Dizem que só dialogam em determinadas condições. Tem mediações a serem feitas. E tem ressentimento de pós-eleição. Pós-eleição sempre tem uma certa superação a ser feita. O sr. dizia na campanha que mais do que uma autocrítica do PT, era necessária uma autocrítica da classe política como um todo. Essa autocrítica coletiva não veio. E no resultado das urnas os três maiores partidos – PT, PSDB e MDB – perderam poder.

O PT vai fazer agora algum um tipo de depuração que de fato traga uma resposta concreta?

FERNANDO HADDAD Aí tem uma pergunta que cabe ser feita à direção [do partido], da qual não faço parte. Eu, como indivíduo, sempre aponto os problemas com a maior naturalidade porque é um aprendizado. Veja bem, a regra do financiamento empresarial da campanha, nós sabíamos que era ruim desde sempre. Nós fomos talvez os primeiros partidos a apontar que essa regra era ruim. Por quê? Porque ela abre margem para determinados comportamentos que você nem controla. A partir do momento que você pode captar recursos de uma empresa, você abriu um conjunto de possibilidades e de zonas cinzentas de relações indesejáveis entre o público e o privado que para um país com características patrimonialistas, que o Brasil sempre foi, é o pior dos mundos. É ruim em qualquer lugar do mundo, no Brasil é pior, porque aqui a separação entre o público e o privado nunca foi bem feita. Nós estamos falando de 500 anos de história, em que nunca essa relação foi bem estabelecida. Sempre a confusão entre o público e privado aconteceu. O Estado sempre foi uma agência capturada. A gente fala da captura das agências de regulação. O Estado é uma agência de regulação. Ele sempre foi capturado pela elite econômica do país. O financiamento empresarial, nós sempre apontamos como uma coisa deletéria. E por mais difícil que fosse obter do Congresso o aval para uma mudança, nós ao menos deveríamos ter tentado, para mostrar para a sociedade que nós não compactuávamos com aquilo, e mais: que aquilo abria um conjunto de riscos para que indivíduos pudessem se locupletar indesejável. Tanto a direita quanto a esquerda. Em depoimento à revista piauí, o sr. disse que o PT subestimou o poder do patrimonialismo brasileiro.

Mas o PT não participou e, na verdade, se beneficiou do patrimonialismo brasileiro?

FERNANDO HADDAD Você pode falar de uma ou outra exceção, mas enquanto coletivo eu não vejo petistas que tenham enriquecido, criado patrimônio. Eu não vejo isso como regra. Pode pegar uma exceção ou outra.

Há apontamento de repasses de milhões para [os ex-ministros] José Dirceu e Antonio Palocci.

FERNANDO HADDAD De novo, você vai fazer da exceção a regra. Então é um procedimento que a imprensa tem todo o direito de fazer, mas que não é verdade. Não conheço os casos concretos e não estou aqui para julgar. Não vejo isso como regra. São dois milhões de filiados, talvez 400 mil, 500 mil ativos. Não vejo nesse ambiente alguém que tenha um patrimônio incompatível com a sua renda. Então não vejo isso como uma prática, o que de certa maneira corrobora a minha tese. A regra sendo ruim, você abre espaço para que indivíduos possam agir de forma equivocada. Mas pegue esse caso da “rachadinha” dos gabinetes do clã Bolsonaro. Pelo o que me chega da imprensa, só de patrimônio imobiliário o clã atingiu a cifra de R$ 15 milhões. Olha, eu estou na vida pública há 18 anos e, vou te falar, não sobra [dinheiro] no fim do ano, a não ser um pouco de dívida. É o que sobra no final do ano na vida de um político. Sobrar a ponto de você conseguir comprar R$ 15 milhões de patrimônio imobiliário? Não vi isso acontecer no PT da forma como tentam vender, que é uma prática do partido.

O sr. é alvo de ações no âmbito civil, eleitoral e criminal. Ações que que vão acompanhá-lo. Elas colocam o sr. em termos de imagem no rol de políticos comuns ligados a antigas práticas?

FERNANDO HADDAD A tentativa é essa, a de me colocar no rol dos políticos comuns. Mas apostaria que não vão conseguir, porque eu sei como eu me conduzi na vida pública até aqui.

Existem delações sobre pagamentos ilegais do empreiteiro Ricardo Pessoa para a campanha municipal de 2012, envolvendo gráficas.

FERNANDO HADDAD Sabemos três coisas com certeza. [Como prefeito], eu prejudiquei o Ricardo Pessoa [da empreiteira UTC]. Eu suspendi a construção do túnel da avenida Roberto Marinho em fevereiro de 2013 [a UTC tinha participação na obra]. Então tem uma coisa que é verdadeira: que o Ricardo Pessoa teve seus interesses contrariados no segundo mês da minha administração. A segunda coisa que se sabe é que ele pagou uma gráfica. Tem nota, tem depoimento. A terceira coisa que se sabe é que o dono da gráfica disse, com todas as letras, que não foi para mim que ele prestou os serviços [a defesa de Haddad aponta que o dono da gráfica disse em depoimento que o dinheiro foi para o diretório estadual do PT]. Essa minha versão tem três anos. Agora, eu não acredito que vá levar muitos anos para julgar isso. Por que levaria? As testemunhas estão arroladas, a documentação vai ser entregue, os depoimentos vão ser colhidos. Não tem razão para isso durar muito tempo. E para o meu interesse é que não dure tempo nenhum. Eu quero isso esclarecido o mais rápido possível.

Do Nexo