Entre o respeito aos direitos e à diversidade cultural

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Até os cinco anos de idade Kanhu Raka Kamayurá, índia nascida no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, teve uma infância normal. Brincava com as demais crianças na aldeia correndo pelo mato e imitando os caciques e mitos do povo kamayurá. Os pais percebiam que ela por vezes ficava para trás nas correrias, mas não consideravam isso um problema grave. Então algo mudou. Os sintomas da distrofia muscular progressiva, doença que enfraquece os movimentos até impossibilitar que a pessoa caminhe, começaram a aparecer. Os mais velhos da aldeia pressionaram o avô e o pai de Kanhu para que dessem uma solução para o problema, que neste caso, de acordo com a cultura tradicional dos kamayurá, seria a morte da garota. Trata-se de uma prática conhecida como sacrifício ou infanticídio indígena: no meio da floresta, sem conseguir caminhar, a jovem jamais teria como sobreviver por conta própria e se tornaria um fardo para os demais.

A questão das crianças e bebês indígenas vítimas desta prática voltou à tona após a indicação de Damares Alves para o cargo de ministra dos Direitos Humanos do Governo Bolsonaro. Ela era ligada à ONG Atini, que se dedica à erradicação do infanticídio nas aldeias, e se afastou da entidade em 2015, segundo nota. A discussão é complexa, opondo em certa medida costumes tradicionais milenares e a defesa dos Direitos Humanos. Nas últimas décadas uma série de atores políticos como a bancada evangélica e a academia entraram no debate, especialmente depois que um grupo de deputados e senadores propôs, em 2015, a criação de uma lei para “criminalizar o infanticídio indígena”.

Apesar de não haver um balanço nacional sobre a quantidade de crianças e bebês indígenas mortos por seus pais, tendo em vista que se trata de um ato privado que ocorre em territórios indígenas mais isolados, é parte da cultura entre diversos povos tradicionais como os kamayurá, yanomami, kajabi, bororo, ticuna e outros. No caso de Kanhu, a solução paliativa encontrada pelo pai da jovem índia para salvar sua vida foi segregá-la em uma oca individual fechada, onde ela perdeu o contato com o restante da aldeia e passou semanas em completa escuridão, escondida, tendo contato apenas com parentes próximos. Como a situação estava se tornando insustentável e a pressão dos anciãos para que fosse dada uma solução definitiva para o problema aumentou, os pais de Kanhu, com a ajuda de missionários religiosos que atuavam na aldeia, abandonaram o Parque do Xingu e rumaram para a capital do país.

Mas o infanticídio não é uma prática aleatória nas comunidades. Segundo o professor Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília, autor de diversos estudos sobre o tema, existem a grosso modo quatro situações nas quais ele ocorre. “A primeira é quando a mãe tem filhos em um intervalo pequeno, inferior a dois anos. Isso porque na floresta não existe creche: ela sabe que não conseguirá prover para os dois”, afirma. Bebês com deficiências motoras ou físicas que não conseguem mamar também são sacrificados pelos pais, “tendo em vista que o modo de vida de uma comunidade caçadora e coletora exige mobilidade”. Garrafa explica que em alguns casos raros o infanticídio ocorre pela determinação do sexo, “uma vez que valorizam mais o menino”, e por motivos de crenças arraigadas. “Existe o sacrifício de gêmeos, albinos, ou quando a mãe morre no parto”, diz. No caso de gêmeos, também existe um aspecto racional envolvido, uma vez que poucas mães conseguem amamentar duas crianças e o acesso ao leite de vaca é escasso nas aldeias.

Como encontrar o equilíbrio entre o respeito à pluralidade cultural e o direito à vida? O professor Garrafa cita um exemplo da década de 1950, ocorrido com os índios tapirá, que moravam no sul do Mato Grosso. “Eles praticavam o infanticídio de forma recorrente, e foram contatados por uma ordem de freiras chamadas Irmãs de Jesus”, afirma. As religiosas, para além do trabalho pastoral, “trabalharam com eles as terras para melhorar a cultura agrícola e oferecer melhores condições de vida”. Os resultados apareceram no médio prazo. “Em 20 anos, o grupo abandonou completamente a prática do infanticídio. Foi uma saída correta das freiras, elas intervieram sem se intrometer de forma brusca no modo de vida dos tapirá, e houve uma mudança de comportamento positiva”.

Logo, para o professor, a solução seria um trabalho “demorado”, mas que apresenta resultados. “A Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Estado não podem interferir abruptamente. É preciso trabalhar isso lentamente para que não haja aculturação, mas de uma forma que a dinâmica deles vá se transformando de forma lenta e gradual até chegar a uma redução do infanticídio”. Garrafa também destaca que o número de infanticídios é baixo quando comparado a outras formas de mortalidade entre os jovens. “Entre os suruahá (Amazonas), por exemplo, o grande problema de mortalidade é o suicídio: 57% das mortes de jovens são auto infligidas. O infanticídio soma 7% das mortes”, afirma.

Apesar de Kanhu quase ter encontrado a morte em sua aldeia, ela mostra compreensão com relação a esta prática. “Acho triste que isso [o sacrifício de crianças] ainda aconteça hoje em dia. Mas eu sei que os mais velhos não queriam que eu sumisse por maldade, mas por medo. Temiam que eu trouxesse coisas ruins para a aldeia”, diz, hoje com 19 anos e morando em Brasília com os pais. “Durante centenas de anos isso fez parte da cultura. Não é do dia pra noite que muda”, diz. Ela tem consciência de que seu destino, caso não tivesse saído da aldeia, seria inexoravelmente a morte. “Eu não teria conseguido sobreviver. Lá tem muito mato, é muito isolado, e eu preciso de remédios e fisioterapia”, diz. “Jamais conseguiria viver uma vida plena lá”. Em 2010, Kanhu retornou à aldeia pela primeira vez desde que partiu. “Fui muito bem recebida pela minha família. Já os mais velhos não vieram nem me cumprimentar”, conta.

Apesar de ter sido ajudada a deixar a aldeia por missionários religiosos, Kanhu é contra a doutrinação de povos tradicionais com crenças ocidentais. “Eu acho que os índios devem ter sua própria religião, é algo da nossa cultura. Não é bom chegar lá e dizer que tal deus não existe”, afirma a jovem.

Maíra de Paula Barreto Miranda, advogada da ONG Atini e doutora em Direitos Humanos, acredita que a solução para o problema é “a conscientização e a educação em Direitos Humanos” por parte das comunidades nativas. “Existem recomendações claras para que seja feito o combate às práticas tradicionais nocivas: o Estado deve fazer isso”, afirmou. Neste ponto, “com o acesso à informação e à saúde básica esses números diminuiriam”, diz Miranda, citando doenças de simples tratamento como lábio leporino ou hipertireoidismo, que por vezes fazem com que o recém-nascido seja morto. Ela compara a campanha contra o infanticídio indígena aos movimentos para erradicação da mutilação genital feminina, praticada em algumas comunidades africanas.

“Existe um posicionamento antropológico, principalmente na academia brasileira, que está arraigado no relativismo cultural. Mas do ponto de vista do direito internacional e dos Direitos Humanos, não existe espaço para relativismo”, afirma Miranda. “O debate é interessante: é preciso preservar a cultura. Mas isso tem limite, e o limite é quando isso fere a dignidade e os direitos mais fundamentais do ser humano”, diz.

Do El País