Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstra preocupação com discurso de Bolsonaro

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A violência é, há algum tempo, uma das principais preocupações da população brasileira. Segundo pesquisa do instituto Datafolha, 20% acreditam que é o maior problema do país, atrás apenas da saúde (23%). Com base em um discurso de rigidez no combate ao crime, Jair Bolsonaro (PSL) foi eleito presidente da República neste ano e tomará posse no próximo dia 1º. Quase dois meses após o resultado eleitoral, Bolsonaro não atenuou seu discurso e mantém a linha pesada contra a criminalidade. Para o professor da FGV-SP e diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio Lima, a retórica do presidente eleito “é bastante preocupante”. Professor da FGV-SP, Lima acredita que o discurso é “um reforço daquilo que não vem funcionando no país nos últimos 80 anos”. “Ele se blindou de mostrar proposta. Ele fez um bom diagnóstico e soube explorar o medo e pânico da população, mas não ofereceu nenhuma perspectiva e solução”. Lima, porém, vê aspectos positivos nas declarações do futuro ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, a quem ele acredita que Bolsonaro delegará toda essa responsabilidade. Ele afirma que o ex-juiz federal “está corretíssimo” em tentar sufocar o sistema financeiro por trás do crime organizado. “Por trás da retórica do presidente eleito, a gente precisa entender o que o Sérgio Moro vai colocar em prática”, declarou. A seguir, a entrevista de Renato Sérgio Lima:

Por que o Brasil apresenta números tão desastrosos na segurança pública?

Renato Sérgio Lima – O problema no Brasil é de duas ordens. O primeiro, é social. Há uma enorme capacidade de a sociedade brasileira aceitar a violência em todas as suas formas. Seja violência contra crianças, mulheres, enfim, a sociedade como um todo. Chegamos agora nessa explosão de violência. A combinação é mais potente ou menos potente a partir de uma segunda ordem, que é como o Estado, em suas várias esferas, atua para fazer frente a essa violência. Essa é a principal questão. As respostas públicas são bastante ineficientes e funcionam com pressupostos muito anteriores à ideia da Constituição, de uma agenda de cidadania e de direitos. Se olharmos a legislação, entendemos por que chegamos neste momento. A Constituição não diz muito bem o que é segurança pública. O Código Penal é de 1940, o Código de Processo Penal é de 1941, a lei que organiza as polícias militares é de 1983, a lei de execução penal é de 1984, a reforma do código penal é de 1984, a lei de inquérito policial é de 1871. Enfim, é um quadro que faz com que as organizações de segurança funcionem na lógica da primeira República ainda. As coisas mudaram. O crime organizado se transnacionalizou. O nível de armamento mudou. Há resultados muito práticos dessa política: de um lado a superlotação de presídios com base em flagrantes, quase todos envolvendo flagrantes de drogas – são 720 mil presos nessas condições. Ao mesmo tempo, há uma dificuldade histórica de resolver crimes que exijam perícia ou que envolvam corrupção ou lavagem de dinheiro. A gente tem um sistema que funciona com receitas velhas e a partir de pressupostos equivocados. Mas, diante do medo da população, tem sido vendido que precisa ser feito mais do mesmo. Acho que esse é o principal risco de 2019: a gente continuar errando achando que vai acertar.

Hoje, divulgamos o mapa da violência e, pela primeira vez, sem contar as mortes por policiais, os números caíram. O que a gente percebe é que até a aprovação do Sistema Único de Segurança Pública [em julho] é fruto desse espírito coletivo que tomou conta do Brasil: perceber que sem coordenar esforços, não só integrar, mas articular, discutir repasses de recursos, gastar melhor, a gente não consegue resolver esse problema. Quando vejo a afirmação do Sérgio Moro [futuro ministro da Justiça e Segurança Pública] de que vai priorizar sufocar a capacidade financeira do crime organizado, acho que ele está corretíssimo. É por aí que a gente vai ter sucesso para vencer as facções criminosas. Contudo, o trabalho de redução da violência precisa ser mantido. No cotidiano da periferia, da avenida Paulista, da zona sul do Rio, qualquer região do país, o que as pessoas estão preocupadas é com latrocínio, roubo, assaltos, com o risco de morrer. Isso não é só fruto das organizações criminosas. O governo terá de manter a prioridade na redução de crimes violentos.

 O presidente eleito Jair Bolsonaro falar em “jogar pesado na questão da segurança pública” e defende uma linha dura por parte do Estado. O senhor acha que essa é uma política acertada?

Renato Sérgio de Lima – Pelo contrário. A gente não sabe direito o que é uma política mais dura, porque o presidente eleito tem sido um bom debater de rede social, mas não detalha nenhuma de suas propostas, só reclama. A gente ainda precisa entender o que ele compreende por jogar duro. Se jogar duro for sufocar a capacidade financeira do crime organizado, ótimo. Se for melhorar as condições de trabalho dos policiais, ótimo. Agora, se for reproduzir a violência que o próprio crime organizado usa, é a coisa mais descabida do mundo. Veja: por trás da retórica do presidente eleito, a gente precisa entender o que o Sérgio Moro vai colocar em prática. Se for trabalhar com informação, valorizar o profissional, atuar como todos os países do mundo que conseguem bons números, ok. Agora, se ele quiser defender uma linha à la Rodrigo Duterte (presidente das Filipinas), não só é ineficaz, mas mais uma evidência de que a segurança pública continuará sendo abandonada, porque não dá certo.

O senhor acredita que a agenda de Bolsonaro para a segurança pública ainda não está muito clara?

Renato Sérgio de Lima – Ele se apegou a duas questões. A primeira é flexibilizar o estatuto do desarmamento, o que eu acho completamente equivocado. O problema do país não é liberar ou proibir. Uma pessoa já pode ter uma arma, é questão de controlar. Ele não disse nada sobre controle, rastreabilidade, integrar o Exército com a Polícia Federal, dois órgãos sob a alçada dele. Falou apenas o direito de a população andar armada. Mas a população já tem esse direito, desde que prove que necessita. É um discurso meramente eleitoral. A outra questão é a exclusão de ilicitude, que também já existe. O código penal já prevê a exclusão de ilicitude em casos de legítima defesa e legítima defesa de outra pessoa. O que precisa ser feito é deixar mais claro é que, se um policial atirar e levar alguém a óbito, precisa entender o protocolo para que se faça uma investigação isenta. O que Bolsonaro disse na campanha é que policial não será punido. Isso não existe em nenhuma parte do mundo. Seria, inclusive, facilmente considerado inconstitucional no STF. Na separação de Poderes, cabe ao Ministério Público isso, e não ao Executivo ou ao comandante da polícia.

 Essa medida, desconsiderando se seria ou não contestada no Supremo Tribunal Federal, poderia trazer algum benefício?

Renato Sérgio de Lima – Não, pelo contrário. Esse número que divulgamos hoje, por exemplo, não conta as mortes por intervenção policial. Essas, ao contrário dos outros homicídios, estão crescendo. Em grande parte, não são punidas. Portanto, na prática, essa é apenas uma autorização para matar que Bolsonaro quer dar às polícias. Só que a polícia não precisa disso, precisa de permissão para atuar dentro do limite da legalidade. No discurso da segurança, Bolsonaro está, de um lado, delegando responsabilidade à população, permitindo se armar; aos governadores, que eles controlam as polícias militares e, portanto, deveriam atuar, como declarou o general Heleno [futuro ministro do Gabinete de Segurança Institucional]. O discurso do Bolsonaro foi de tirar sua responsabilidade nessa área, dizer: “O problema é de vocês”. Quando o governo federal tem uma importância gigantesca.

 O que fazer para reduzir o alto número de homicídios no Brasil?

Renato Sérgio de Lima – Se o que aconteceu nesses nove primeiros meses de 2018 é uma pista, eu diria que é exatamente a ideia na qual temos batido a tecla de reorganização de governança do sistema de segurança pública brasileiro. Não quero dizer que A manda em B. Mas precisa organizar melhor o sistema, para que, em vez de bater cabeça, todos vão na mesma direção e possa priorizar alguns crimes em detrimento de outros. Quais crimes seriam? Aqueles violentos e que atentam contra a vida, como estupros, latrocínios, homicídios. Esses deveriam ser a prioridade zero de qualquer governantes, seja ele prefeito, governador, presidente ou autoridade como o Judiciário, Ministério Público e Legislativo. Para resolver o problema, a gente precisa reorganizar o sistema para fazer com que todo mundo se articule e que não seja o crime organizado que dê o tom do debate, mas, sim, o Estado, com política pública. A segurança precisa ser tratada como política pública. Precisa trabalhar com planejamento, inteligência, trocar e cruzar informações, fazer análise criminal. Hoje, a gente precisa ficar indo atrás das emergências. Enquanto ficarmos reféns de ir atrás da emergência, a gente não vai conseguir resolver o problema.

 Em 2017, o então ministro da Justiça Alexandre de Moraes anunciou um plano nacional de segurança pública em que já se falava sobre integração das forças de segurança e de fortalecimento da inteligência.

Renato Sérgio de Lima – Esse não é o primeiro, já houve vários. Esse de 2017 ficou só no PowerPoint. Não teve uma importância de governança e articulação. Não foi transformado em metas e dividido tarefas. Todos os planos acertam no diagnóstico, mas ninguém sabe o que fazer no prognóstico. Ninguém sabe como resolver o problema. Exige liderança política, que nenhum presidente da República, incluindo o Michel Temer, teve para fazer esse trabalho. O que aconteceu, no fundo, é que a população, secretários e outros agentes perceberam que ou era desse jeito ou ficaria muito pior. O Susp é um fruto que quase caiu de maduro desse amadurecimento institucional.

 No debate eleitoral deste ano, a segurança pública ganhou destaque. O senhor acredita que o assunto foi devidamente discutido?

Renato Sérgio de Lima – Não. Segurança foi fundamental nas eleições. Os outros candidatos tentaram emplacar um debate pontual sobre o que fazer, mas sem uma visão propositiva de resolver o problema como um todo. O Bolsonaro não propôs nada. No fundo, ele ficou na retórica ideológica de “vamos acabar com os malvados”. Com isso, ele se blindou de mostrar proposta. Ele fez um bom diagnóstico e soube explorar o medo e pânico da população, mas não ofereceu nenhuma perspectiva e solução. Tanto é verdade que, após o fim da eleição, ele foi chamar o Sérgio Moro, que a princípio não tinha nenhuma articulação prévia sobre participação no governo.

 E o presidente eleito Jair Bolsonaro manteve o discurso do candidato Bolsonaro no período de transição ou o senhor acredita que ele apresentou propostas?

Renato Sérgio de Lima – Bolsonaro presidente eleito continua mantendo a retórica do candidato, mas, no caso da segurança, ele delegou a figuras chaves a tradução da retórica eleitoral em política pública. Não temos como saber o que vem pela frente de forma concreta. Em termos retóricos, é bastante preocupante. Há um reforço daquilo que não vem funcionando no país nos últimos 80 anos. Agora, na prática, a gente precisa esperar mais um pouco para saber se será o mesmo processo das eleições, ou seja, fala-se bastante, mas na hora da prática a postura é mais cuidadosa.

 Como explicar essa sensação de insegurança generalizada na população?

Renato Sérgio de Lima – De um lado, o medo é um processo muito mais profundo que uma relação direta com o fenômeno. Pessoas com menor risco de serem assassinadas têm, proporcionalmente, mais medo que aquelas que estão submetidas a um risco maior. Ou seja, quem convive com morte todos os dias se acostuma e não tem nem mais medo, acaba tendo uma resignação e outros sentimentos. Elas sabem que homicídios fazem parte do cotidiano. Outras, que vivem em áreas mais abastadas, morrem de medo, mas o risco efetivo é muito menor, porque estão protegidas. Medo não é, necessariamente, o problema. Agora, por que o medo é generalizado? Aqui no Brasil temos constatado, em grande medida, a ineficiência das políticas públicas. A taxa é muito alta, presídios superlotados e como celeiro do crime organizado, uma série de problemas criminais e sociais que levam com que a violência fique nesse patamar altíssimo. Se a gente vê que o Estado não está dando a resposta adequada, começa a ficar preocupado. Não sei se posso confiar na polícia, no Judiciário, preciso me proteger. Da mesma forma, estamos vivendo uma profunda crise econômica. Numa crise, há riscos muito fortes de perder o emprego, retrocessos de ganhos, questões mais econômicas. Há também menos políticas públicas de esporte, lazer, saúde e educação. Quando mistura tudo isso, você vê milhões de brasileiros jovens sem nenhuma perspectiva de educação ou trabalho e cuja única oferta possível é do crime organizado. O debate que ganhou as eleições deste ano foi em torno do pânico e do medo, provocado pela completa falência de respostas de políticas públicas. Quem oferece perspectivas, que é diferente de respostas, tende a ser destaque. Foi exatamente isso o que Bolsonaro fez. São mensagens muito simples, mas potentes e contra esse medo e pânico que está difusamente distribuído. Transformar essas palavras de ordem em ações é muito mais complexo.

 A revogação do estatuto do desarmamento constitui uma política eficaz sobre segurança pública?

Renato Sérgio de Lima – Em termos de segurança pública, completamente ineficaz. Eu acho que esse debate pode ser feito em outra esfera de direito civil. É um debate quase que da filosofia do direito, do Estado. Não tem nada a ver com segurança pública. Na ótica da segurança, mais armas, mais mortes. O debate sobre armas de fogo, no que diz respeito à segurança pública, não foi travado. O que é? O controle das armas, a rastreabilidade das armas. Esse debate precisa ser feito. Precisa desideologizar o debate. Falar de controle, cadastro, capacitação das pessoas que estão autorizadas a andar armadas. Nada disso está sendo discutido.

O senhor acredita que o modelo de intervenção que foi aplicado no Rio de Janeiro é um exemplo que deva ser seguido?

Renato Sérgio de Lima – Foi um modelo caro, ineficiente e perverso. Caro porque custa uma fortuna e os resultados são, em termos econômicos, muito pequenos. Ineficiente porque tem uma reorganização do sistema, mas o Wilson Witzel [governador eleito do Rio de Janeiro] quer fazer uma mudança e tudo pode ser jogado por água abaixo. E perverso porque coloca como ênfase o enfrentamento. Os números de mortes por policiais e de policiais mortos estão batendo recordes atrás de recordes. As próprias Forças Armadas não gostam desse modelo, pois sobrecarrega a estrutura, imobiliza número considerável de tropa e não oferece resultados duradouros. É mais ou menos o que o Bolsonaro fez nas eleições. Há uma promessa, uma perspectiva de que algo esteja sendo feito. Na prática, são os policiais na ponta que estão assumindo o ônus, porque o bônus nunca vem.

Que cenário o senhor vê para 2019 na área de segurança pública?

Renato Sérgio de Lima – Se continuar na perspectiva de implementar o Susp, é possível que os números melhorem. Se a retórica eleitoral se transformar em ações concretas, o cenário é de catástrofe. O futuro governo tem a oportunidade de fazer um trabalho sério, técnico e muito potente, que, independente de preferências políticas, é o que precisa ser feito. Mas se ficar na retórica ideológica, ninguém gostaria de vir para o Brasil, porque os números devem crescer.

 Em tese, o candidato deveria apresentar suas propostas durante a campanha e, a partir do voto, a população escolhe quais delas são as melhores. Durante a eleição, o que Bolsonaro falou, principalmente na área de segurança, não representa, segundo o senhor disse, soluções. Por que um discurso como esse ganha tanto respaldo por parte da população?

Renato Sérgio de Lima – Não é só no campo da segurança. Ainda vai exigir muito estudo por parte dos cientistas políticos e historiadores sobre o porquê Bolsonaro ganhou a eleição. Na segurança pública é mais fácil entender. As soluções são questões muito técnicas e claras para quem está acostumado com a área. Bolsonaro ofereceu perspectiva de que vai resolver e fez as pessoas acreditarem nele. Isso é a política, transformar questões técnicas em mensagens políticas. Ok, é assim mesmo. O problema é quando o eleito acredita que o discurso meramente basta.

Da Revista Época