A ascensão do antipetismo pode resultar na degradação de direitos civis

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Em recentes pesquisas e no seu livro “Partisans, Nonpartisans, and  Antipartisans: Voting Behavior in Brazil”, com David Samuels, da Universidade de Minnesota, o cientista político brasileiro Cesar Zucco, da Ebape/FGV, apontou fenômenos e tendências que se provaram muito reais com a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República.

De forma bem simplificada, Zucco e Samuels mapearam em seu livro, com farto instrumental quantitativo, padrões de voto no Brasil indicativos de que a noção tradicional de que “brasileiro vota em pessoas, não em partidos” é falsa.

Os eleitores brasileiros se pautam pelas divisões partidárias de forma similar aos votantes de países mais desenvolvidos e com mais tempo de democracia. Uma peculiaridade do Brasil, porém, é que um dos dois grandes grupos de eleitores suscetíveis à estrutura partidária é, na verdade, “antipartidário”: os antipetistas.

Assim, os partidários e antipartidários detectados pelas pesquisas dos dois cientistas políticos flutuaram em torno de 60% no período por eles analisado, que vai de 1990 a 2017. Na verdade, a grande maioria desse grupo é petista ou antipetista.

Em outra pesquisa de Zucco, realizada com Timothy Power, da Universidade de Oxford, mostra-se que apenas dois partidos, um de centro-esquerda e outro de centro-direita, dariam conta de representar razoavelmente bem o perfil ideológico da grande maioria dos parlamentares brasileiros (objeto da pesquisa). Em outras palavras, pelo menos no Congresso, existe de fato uma coincidência entre liberalismo econômico e conservadorismo em temas de valores e comportamento, de um lado, e de mais intervencionismo na economia e liberalismo em valores e comportamento, do outro.

Tomando-se apenas esses dois achados acima da pesquisa recente de Zucco e seus colegas, não é difícil associá-los ao cenário político-eleitoral desenhado pelas eleições de 2018. De fato, houve uma polarização na qual se enfrentaram o grupo dos antipetistas, liberais na economia e conservadores em valores e o grupo dos petistas, intervencionistas e liberais em valores.

Entretanto, apesar de os fatos terem confirmado o que suas pesquisas indicavam, Zucco se confessa surpreso com algumas características da última eleição. Em primeiro lugar, ele considera que a polarização entre petista e antipetistas foi ainda mais intensa e abrangente do que a sua pesquisa indicava.

Mas a grande surpresa para ele foi o que chama de “antipetismo cultural”, principalmente ligado a questões religiosas e morais que acabaram refletidas nas polêmicas em torno do “kit gay”, Escola Sem Partido, etc. Ele vê esse fenômeno como muito ligado também à adesão maciça de evangélicos à candidatura de Bolsonaro, que deu um salto impressionante (captado por pesquisas e trackings) na reta final, quando o candidato do PSL foi endossado por lideranças como Edir Macedo e Silas Malafaia.

Embora esses fatos já tenham se incorporado à visão do senso comum e se integrado à paisagem política brasileira, Zucco nota que a ascensão do antipetismo cultural como fenômeno eleitoral é bem recente, e, na verdade, nasceu nesse último ciclo eleitoral.

Ele lembra que o eleitorado evangélico já oscilou em tempos recentes, e que Lula e Dilma já se aproximaram e conseguiram se beneficiar parcialmente deste segmento. Nas próprias pesquisas de Zucco e colegas com eleitores, os temas antipetistas por excelência eram ligados a questões como corrupção, intervenção na economia, baderna, etc. – mas não a recente pauta conservadora desta eleição.

Ele considera que essa captura do terreno cultural pelo bolsonarismo antipetista nessa última eleição foi uma certa façanha (sem julgar o mérito de fundo) do atual presidente e seu grupo político, que conseguiram pintar o PT como um partido “contra os valores de família”, por exemplo, algo que não existia em eleições prévias.

Em relação ao governo Bolsonaro em si, Zucco preocupa-se que o discurso de campanha mais agressivo está sendo mantido no momento de lua-de-mel, quando “o presidente não precisa disso”. Ele nota que, apesar de uma equipe mais preparada na economia e em algumas outras áreas do governo, Bolsonaro nomeou pessoas sem experiência e com forte pauta ideológica (muitas vezes descolada dos reais problemas) em setores importantes, como a Educação, por exemplo.

O temor de Zucco é de que, caso as coisas não andem tão bem na economia como o planejado, Bolsonaro tente construir sua legitimidade radicalizando não só o discurso, mas também a ação, justamente nessas áreas em que o novo governo apresenta uma combinação de mais ideologia e menos preparo. O perigo mais próximo não seria um ataque ao arcabouço político-jurídico da democracia (o cientista político não vê os militares afeitos a uma tentativa desta), mas sim uma degradação em termos de direitos civis e cidadania em geral.

Do Estadão