BBC fez uma tour por Eldorado Paulista, cidade que ajudou Bolsonaro a formar suas ideias

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Em Eldorado Paulista, há uma pequena praça onde os sinos da igreja tocam de meia em meia hora. Ali, debaixo de árvores de copas largas, moradores conversam preguiçosamente, protegendo-se do sol. As lojas e restaurantes dos arredores ficam vazios nas tardes quentes, quando a cidade parece inabitada. Só meninos arriscam-se na rua, rumo ao rio Ribeira.

Nada nessa cena fala de Jair Bolsonaro. Mas ele está por toda parte.

Para encontrar vestígios do presidente em Eldorado, no interior de São Paulo, onde ele morou dos 11 aos 18 anos, é necessário olhar para além do espaço. É preciso recorrer à história.

Naquela praça, em 1970, o guerrilheiro Carlos Lamarca baleou três pessoas em um tiroteio com a polícia militar enquanto Jair, então com 15 anos, corria para casa. O adolescente, que havia saído da escola, testemunhou de perto a operação de caça a Lamarca, que o levou a alistar-se no Exército.

Dentro da igreja, durante anos, negros dos quilombos de Eldorado ocuparam os últimos bancos, com medo de serem expulsos da frente do altar – os mesmos quilombolas que, para Bolsonaro, “não servem nem para procriar”, como disse em uma palestra em 2017.

Uma das torres do santuário foi doada por Jaime Almeida Paiva, homem mais rico e “coronel” da pobre Eldorado por vinte anos. Dono de uma das maiores fazendas do Vale do Ribeira, “Dr. Jaime” era pai do deputado opositor à ditadura e desaparecido político Rubens Paiva, alvo de acusações de Bolsonaro durante toda a vida pública do hoje presidente.

Apesar de Bolsonaro ter nascido em Glicério e vivido em várias partes do Estado de São Paulo, é em Eldorado que alguns de seus temas favoritos têm origem. A BBC News Brasil foi à cidade de 15 mil habitantes para narrar os fatos que ajudaram a formar as ideias do novo mandatário do país.

Bolsonaro é um grande crítico de Rubens Paiva, ex-deputado federal que fez oposição ao regime militar e desapareceu em 1971. Paiva aparece com frequência nas falas do novo presidente sobre a ditadura, um dos temas recorrentes em seus discursos.

No plenário da Câmara, Bolsonaro chegou a negar que o deputado tenha morrido durante uma sessão de tortura, como foi atestado pela Comissão Nacional da Verdade, e, ao longo dos anos, fez várias acusações contra ele. Uma delas é a de que Rubens Paiva ajudou o ex-capitão do Exército e opositor à ditadura Carlos Lamarca a montar uma guerrilha no Vale do Ribeira, onde fica Eldorado. Não há provas de que essa colaboração tenha acontecido.

“Por coincidência, a família de Rubens Paiva tinha uma fazenda na cidade de Eldorado Paulista, no Vale do Ribeira, São Paulo, chamada Fazenda Caraitá. O sr. Rubens Paiva fez com que o guerrilheiro, traidor e desertor Lamarca ocupasse a sua fazenda e lá fizesse uma base de guerrilha”, disse Bolsonaro em sessão de 2013.

A fazenda Caraitá sustentou a economia de Eldorado por mais de vinte anos. O “doutor” Jaime Paiva, como moradores ainda chamam o empresário de Santos que se tornou um grande fazendeiro do Vale do Ribeira, começou a comprar terras ali em 1941. Sua propriedade só foi vendida em 1975, depois de Bolsonaro mudar-se para Resende (RJ), onde começou sua carreira militar.

Enquanto o presidente morava na cidade – e por muitos anos antes disso –, Jaime Paiva era o chefe de boa parte da população. Ele tinha plantações de banana e laranja, criações de gado e uma serraria de móveis, além de ser responsável pela vida social do lugar: a festa da Rainha da Laranja, a mais importante do ano, era organizada pela família.

Mais do uma liderança informal, Paiva foi prefeito duas vezes. Na primeira, de 1956 a 1959, fez a ponte sobre o rio Ribeira e uma das escolas locais. Na segunda, em 1968, eleito pela Arena, partido da ditadura, ficou pouco menos de um ano.

“Teve uma Eldorado antes e uma depois do Paiva”, diz Nilzilene Araújo de Oliveira, de 56 anos, vice-diretora da escola Dr. Jayme Almeida Paiva, onde Bolsonaro estudou até ir para o Exército, em 1973. Enquanto o presidente e Nilzene eram alunos, no entanto, o colégio chamava-se Ginásio Escolar de Eldorado Paulista. A homenagem ao “doutor” veio só em 1976.

“Mas ponto de vista econômico, Eldorado desenvolveu muito com o velho Paiva”, Nilzilene continua. “Embora ele fosse forte, bem firme… mas isso era necessário porque ele era capitalista.”

Enquanto ela fala, a ficha do ex-colega está à mostra sobre a mesa da secretaria. O fato parece deixar o diretor da escola, Domingos Pontes Junior, incomodado. “Melhor não tirar foto, não. Não tem autorização da família”, ele diz, sentado ao lado da vice. “Melhor só anotar. Sabe, são notas parciais, no segundo ano ele foi melhor”, Domingos sacode a cabeça.

No primeiro ano do ensino médio, Estudos Sociais (combinação de geografia e história) foi a melhor matéria de Bolsonaro: 8,7. Em Educação Moral e Cívica, disciplina criada durante a ditadura e que exaltava o nacionalismo, ele teve um de seus piores desempenhos (6,8), ao lado de Química (6,5).

Não há registros dos filhos ou netos de Paiva nos mesmos arquivos. Rubens Paiva tinha 12 anos quando o pai comprou as primeiras terras por ali – ele e os irmãos estudaram em colégios de elite em São Paulo.

“Não se tinha acesso ao Paiva, só aos empregados”, Nizilene retoma o assunto. “Eram muito ricos… mas ele fazia a festa da Rainha da Laranja e todos iam.”

Pouco antes, na mesma secretaria, um professor de História aposentado falava dos “dois lados” de Paiva.

“Foi um marco histórico – para o bem e para o mal. Como todo mundo trabalhava lá, quando a fazenda fechou, a cidade entrou em decadência. Mas ele era amado e odiado, sabe?”, disse José Milton Galindo.

O tom é frequente nas declarações sobre o empresário que fez fortuna em Santos, como despachante. De um lado, ele era o homem visionário que alargou as ruas da antiga área de garimpo – Eldorado foi batizada assim em razão do primeiro ciclo do ouro no Brasil –, desenvolvendo o urbanismo local. De outro, era o coronel autoritário que não conversava com o povo, trazia empregados do Nordeste no pau de arara e pagava os funcionários com “boró”, moeda própria que só valia nos comércios da região.

“Quando tinha a festa da Laranja, se ele cismava com a pessoa, quebrava o copo na mão dela com a bengala. Andava cheio de capangas em volta”, diz Antônio Carlos de Melo Cunha, de 64 anos, engenheiro agrônomo aposentado e amigo de Jair Bolsonaro dos tempos de colégio. Foi de seu avô que Paiva comprou as terras da fazenda.

Em livro sobre o caso de Rubens Paiva, Segredo de Estado, o jornalista Jason Tércio narra que até o deputado chamava o pai de “coronel” e discutia com ele sobre política. Em diálogo reconstruído por Tércio durante a Ceia de Natal de 1970, na fazenda Caraitá, Jaime teria dito a Rubens: “a única política que tu deve fazer com os militares é a política da boa vizinhança”.

Filho do deputado, o escritor Marcelo Rubens Paiva conta que o pai era brigado com o avô e por isso ia pouco à fazenda. Ele diz que não sabe responder às acusações contra Jaime, porque morava no Rio com os pais e a irmã.

“Querida, meu avô foi prefeito. Não sei se quebrou copos nas pessoas.”

Nessa época, Rubens havia voltado do exílio há anos, depois de ter seu mandato pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) cassado após o golpe de 1964, e trabalhava como engenheiro civil. No entanto, ele ainda ajudava perseguidos políticos a sair do país e mantinha contato com exilados.

Menos de um mês depois daquele Natal, em janeiro de 1971, Rubens Paiva seria levado por militares para depor e não voltaria mais.

“Ato Contínuo, 1970. Aí, eu entro na história”, disse Bolsonaro durante uma sessão da Câmara em setembro de 2014.

“Eu tinha 15 anos de idade e morava na cidade de Eldorado paulista. Ali – já mudou de nome – existia a Fazenda Caraitá. Proprietário: família Rubens Paiva. Rubens Paiva tinha uma chácara ali. Do cocoruto, do topo da cidade de Eldorado Paulista, cidade bastante pequena, via-se a chácara de Rubens Paiva, a montante do Ribeira de Iguape…”

A dois quilômetros do centro de Eldorado, a fazenda, que não se chama mais Caraitá nem pertence aos Paiva, ainda está de pé. Hoje ela é de um produtor de bananas, que usa a terra para plantação, mas não mora ali. Apesar de descuidado, o casarão de teto europeu mantém os ares de “mansão”, como era chamado pelo povo da cidade.

As paredes azuis, brancas na época de Rubens Paiva e Bolsonaro, ainda exibem as sacadas estreitas que permitiam aos hóspedes uma vista privilegiada do grande jardim e, à esquerda, dos hectares de mexericas e bananas.

Os quartos são oito ou nove, pequenos, segundo os filhos do atual proprietário, que oferecem apenas um tour pelo terreno porque a casa está fechada. Nele, há, como havia nos anos 1960, duas piscinas – adulta e infantil –, uma casa de hóspedes e outra de bonecas, uma casinha de cachorro em forma de castelo, e um mirante para dois lagos artificiais.

Na casa de bonecas, de dois andares, com sala, cozinha e quarto com varanda, mesas e cadeiras em miniatura ocupam o espaço perto da porta, como se alguém ainda brincasse lá.

Antes de entrar pelo alto portão de ferro que demarca o espaço do casarão, percorre-se uma estrada de terra. Paralelas a ela, à direita e à esquerda, pequenas casas de arquitetura semelhante estão enfileiradas.

“Tinha dezenas de casas aqui”, diz um dos filhos do proprietário, ao parar sua caminhonete em frente ao portão. “Eram dos funcionários do Paiva. Isso aqui era uma cidade, tinha até escola.” A maior parte das construções está abandonada – poucas estão ocupadas por empregados do dono atual.

Sem muita gente por ali, o único barulho vem de Lala e Laica, cadelas pastor alemão que respiram ofegantes debaixo da caminhonete. “Como ficou sem vigia, o pessoal acabou roubando até os tijolos, por isso só tem essas”, o jovem diz, secando o suor da testa. A temperatura beira os 40ºC.

A relação de Eldorado com os Paiva era, de alguma forma, dividida pelo portão da fazenda. Do lado de fora, para além do bairro privado dos funcionários, a vida do povo seguia alheia aos luxos do casarão. O Vale do Ribeira era e ainda é uma das regiões mais pobres do Estado de São Paulo, com uma renda média de dois salários mínimos, segundo o IBGE.

Nos anos 1970, a situação era mais dramática. O emprego fora de Caraitá era escasso e o dinheiro, difícil. As famílias pobres se viravam como podiam: pescavam, vendiam produtos de porta em porta, cuidavam de fazendas.

No caso dos Bolsonaro, o patriarca Percy Geraldo Bolsonaro trabalhava como dentista prático: fazia extrações, obturações, próteses, mesmo sem ter instrução universitária. Percy era a única opção numa comunidade sem dentistas e chegou a ser indiciado em inquérito policial por “exercício ilegal de medicina, odontologia ou farmácia”, mas foi absolvido em 1973.

Boa parte das pessoas entrevistadas em Eldorado teve dentes extraídos por Percy, de quem lembram com carinho. “A gente era muito humilde na época, então os dentes iam estragando e o pai mandava tirar”, conta a vice-diretora Nilzilene. “Geraldo era uma pessoa maravilhosa. Quando eu tinha uns 8, 9 anos, fui tirar um dente com ele. Depois que acabou, ele disse para minha mãe: ‘Agora leva a menina pra tomar um sorvete’.”

Apesar de trabalhar muito, os ganhos de Percy Bolsonaro nem sempre eram suficientes para sustentar a mulher e os seis filhos. Fumando um cigarro atrás do outro no pequeno consultório, às vezes ficava até tarde da noite com o ‘buticão’ – um grande alicate de ferro – em mãos, arrancando molares. Ao final do serviço, era compreensivo com os clientes que não podiam pagar: quem não tivesse dinheiro, que desse galinhas ou porcos.

“Eles eram muito pobrezinhos, milha filha”, diz Lúcia Lima Melo, de 72 anos, do portão da casa onde mora há 47 anos, ao fim da entrevista com ela e seu marido, Reinaldo. Durante anos, eles foram vizinhos dos Bolsonaro, e Reinaldo tornou-se amigo de Percy.

Na conversa com a BBC News Brasil, ele contou que o dentista prático era conhecido por seu senso de humor e educação. Era atencioso, mas também não perdia a piada. Chamava os conhecidos de “morfiosos”, outro jeito de dizer “leprosos”, explicou o vizinho. Reinaldo riu ao lembrar as tiradas do amigo, como quando ele repetia que “preferia ter as filhas todas prostitutas do que filhos viados”.

“Quantos quartos têm ali?”, a reportagem pergunta a Lúcia, ainda no portão. A antiga casa dos Bolsonaro, hoje pintada de azul claro, é a próxima, à direita.

“Acho que só dois”, ela responde, olhando para cima.

“Então era pequeno para a família”, a reportagem diz.

“Eles não tinham dinheiro, não”, ela abaixa a voz. “Não faltava comida, mas bens eles não tinham: carro, casa. Eram pobres mesmo. Mas que bom que graças a Deus chegaram onde chegaram, né”, ela sorri por entre as barras de ferro.

Para ajudar em casa, Jair pescava e buscava maracujá no mato para vender, além de descarregar caminhões de adubo e, numa brincadeira cheia de desejo, procurava ouro nos ribeirões pela madrugada.

Vivendo no aperto, a maioria da população precisava coexistir com a riqueza dos Paiva, numa convivência descrita como amigável por alguns e distante por outros. Os últimos argumentam que a relação era boa só para os “puxa-sacos” da família, muitos deles membros da Igreja. Como Aracy, mulher de Jaime, era católica fervorosa, padres e coroinhas que iam rezar missa na fazenda acabavam se aproximando do casal.

“Fui amigo dos netos de Paiva. Conheci Rubens Paiva, convivi com Marcelo e os irmãos”, diz Antônio Avelino de Melo Cunha, policial aposentado e dono de uma pousada em Eldorado que hoje mora no litoral paulista.

“Na época, eu era coroinha e ia rezar missa na fazenda. Doutor Jaime e Dona Ceci (como Aracy era chamada) me convidavam para almoçar ou jantar com eles. Aí foi estreitando nossa amizade. Eu usava o lago para brincar, tinha um aquaplano. Ficava na piscina, tocava violão. Era uma fazenda-cidade.”

Assim como Antônio, o agricultor Celso Luiz Leite, de 63 anos, cuja irmã casou com um dos irmãos de Bolsonaro, era coroinha. Ele se lembra de Aracy abraçando-o depois das missas. Se “doutor” Jaime tinha fama de durão, sua mulher era vista com benevolência.

“Quando o resto da família vinha para cá, nos finais de semana e férias, eu ia lá ajudar nas missas, já que o padre era puxa-saco. Mas ela era muito simpática”, diz Celso, sentado em seu sítio, às margens do Ribeira.

Celso dá de ombros ao falar que o fazendeiro “não dava muita bola para gente”.

“Só para a turma com mais grana… mas, por outro lado, era ele quem dava emprego.”

Apesar de não ser um cara “ruim”, como Celso repete, Jaime e sua família não eram sempre bem vistos pelos moradores. Entrevistados descreveram que nos meses de verão, quando filhos e netos visitavam a fazenda, era comum ver os Paiva cavalgando seus cavalos de raça pelas ruas.

Recostado em seu sofá, Antônio Carlos, um dos amigos de infância de Bolsonaro, tenta encontrar uma palavra para definir a família. “Eles eram… como eu posso dizer?”, ele coça a cabeça enquanto sua mulher o observa da porta da cozinha. “Eles eram… vistos com outros olhos! O pessoal via como gente rica, né.”

Antônio fala de uma vez em que visitou a fazenda para fazer companhia a uma das netas de Jaime Paiva, que estava se tratando de uma leucemia. Adolescentes, ele e a mulher foram até lá com alguns amigos para conversar com ela e tocar violão.

“Nessa época, íamos por causa da doença dela, mas não tínhamos amizade com eles, não”, diz sua mulher, Mara Cristina, apoiada no batente da porta. “Os jovens de lá não davam muita bola para os daqui.”

Por “lá” também passava Rubens Paiva, que tinha uma chácara anexa à do pai e construiu uma pista de pouso para chegar à cidade em seu avião.

Um dos moradores de Eldorado mais próximos do presidente, o funcionário público aposentado João Evangelista Correa, conta do dia em que entregou um bolo a Rubens a pedido da confeiteira local. Ele e um colega caminharam os dois quilômetros até a fazenda na esperança de ganhar um trocado pelo serviço. Chegando lá, João diz que Rubens olhou irritado para os meninos: “o que vocês querem aqui? Falei que ia buscar na cidade”. Ao responderem que a confeiteira havia prometido uma gorjeta, teriam ouvido um “não” resoluto.

“Não tinha amizade com pobres”, diz João Evangelista, das cadeiras estofadas que ficam em sua garagem.

Ele é um dos poucos que narra interações de Bolsonaro com os Paiva, já que quando adolescente Jair não era um grande frequentador das festas da Rainha da Laranja ou do clube Caraitá, fundado pela família. Seus conhecidos dizem que ele preferia pescar a ir a bailes.

João conta que, apesar de sua eventual irritação, Rubens convidava os meninos para jogar futebol em suas terras. Bolsonaro teria participado de algumas partidas.

Quando parlamentar, ao citar mais uma vez as supostas relações entre os Paiva e o guerrilheiro Carlos Lamarca, Bolsonaro disse que conheceu o ex-deputado.

“Eu sou paulista do Vale do Ribeira, de Eldorado. Ali conheci Rubens Paiva, com 10 anos de idade”, disse em sessão da Câmara de março de 2016.

Além de jogar bola na fazenda de Rubens, Bolsonaro teria sido, nas palavras do agricultor Celso Leite, “um dos maiores ladrões de mexerica da família Paiva”. Ele conta isso aos risos, explicando que os furtos, comuns entre os meninos locais, eram “só farra mesmo”. Para proteger sua plantação, Jaime Paiva teria colocado um vigia de plantão e um cão de guarda, que teria corrido atrás de Celso e de Bolsonaro enquanto os meninos fugiam em direção ao rio.

“Íamos de canoa até um lugar que tinha uma laranja muito boa. Quando o cachorro latia, a gente pulava n’água.”

Bolsonaro não parece ter memórias felizes dos Paiva. A biografia Mito ou Verdade: Jair Messias Bolsonaro, escrita por seu filho Flávio Bolsonaro, indica que as diferenças de classe incomodavam o presidente.

No livro, Flávio escreve que “parte considerável do território da cidade de Eldorado Paulista era de domínio particular, uma fazenda enorme chamada Caraitá – que hoje seria um latifúndio”.

Na mesma página, é mencionada a chácara de Rubens Paiva, que aparece como irmão e não como filho de Jaime Paiva – Rubens tinha um irmão chamado Jaime, mas este não era dono da fazenda, como dito na biografia.

Nessa chácara, escreve Flávio, “tinha piscina, algo raro à época, mas que não era socializada com a criançada da vizinhança – que ficava apenas admirando, de longe, onde os filhos da família Paiva se refrescavam”.

Mito ou Verdade ainda narra que os filhos de Rubens Paiva eram da mesma faixa etária de Bolsonaro e, “não raras vezes”, eram vistos comprando picolés Kibon em Eldorado, “inacessíveis à garotada local, que ao ver um deles jogar o palito fora, corria na expectativa de estar premiado com ‘vale um picolé’ marcado na madeira”.

Sobre esse episódio, um dos filhos de Rubens Paiva, Marcelo Rubens Paiva, diz que “não tomava sorvete” e “não tinha irmãos”, mas apenas irmãs.

“Talvez ele me confunda com meus primos”, ele pondera. “Quando ele tinha 16 anos, eu tinha 11 e foi a última vez que fui a Eldorado.”

No parágrafo seguinte do livro é citada, de novo, a suposta ligação entre os Paiva e Lamarca que, por sua afinidade com a família, teria escolhido uma área próxima à fazenda para montar a guerrilha. A afirmação foi feita em vários discursos de Bolsonaro na Câmara.

“A verdade está lá em Eldorado Paulista!”, Bolsonaro disse no plenário da Casa em fevereiro de 2013. “Está todo mundo vivo lá. A Fazenda Caraitá está em cartório. A base de renda do Lamarca está lá na fazenda da família Paiva. É muito fácil verificar isso.”

Em visita ao registro de imóveis da cidade, a BBC News Brasil confirmou que a compra e venda da fazenda estão, sim, documentadas. Mas nada indica que os Paiva tenham fornecido recursos a Lamarca. Nem os antigos amigos do presidente, João Evangelista e Antônio Carlos, dizem conhecer essa versão da história.

“Nunca ouvi falar que financiava o Lamarca, não”, disse Antônio quando perguntado sobre o tema.

Apesar de não haver indícios de ajuda financeira, o guerrilheiro chegou a cruzar as terras da família durante sua fuga, em 1970, como escreveu Marcelo Rubens Paiva em texto publicado no jornal Folha de S.Paulo em 1994.

“Meu tio Jaime acenou para ele, pouco antes do tiroteio com a Força Pública de Eldorado (…) O tiroteio foi a metros da fazenda, ao lado da Escola Jaime Paiva. Lamarca atravessou também o sítio 0K, do meu tio Carlos, e seguiu para Sete Barras.”

Depois do tiroteio, conta o escritor, a fazenda foi invadida por soldados que procuravam armas e tentavam estabelecer conexões entre os Paiva e Lamarca. Segundo ele, empregados e amigos da família chegaram a ser presos e torturados, e Carlos levou um tiro no pé acidental em uma das barreiras para cercar Lamarca.

À BBC News Brasil, Marcelo Rubens Paiva disse que a família não tinha nenhuma relação com Lamarca e que seu pai era contra a luta armada.

“Ele não era comunista, mas do PSB (Partido Socialista Brasileiro) e se elegeu deputado pelo PTB.”

As teorias de Bolsonaro sobre esses dois personagens se estendem até ao desaparecimento de Rubens Paiva. Ele argumenta que o ex-deputado não foi morto por agentes da repressão, mas por membros da esquerda comandada por Carlos Lamarca. Segundo Bolsonaro, o grupo de Lamarca teria chegado à conclusão de que ele foi denunciado por Rubens Paiva depois que este foi preso.

“Ninguém resiste à tortura (…). Então, o grupo do Lamarca suspeitou que Rubens Paiva o havia denunciado”, disse Bolsonaro na Câmara em março de 2012. “E esperaram o momento certo. Quando o Rubens Paiva foi detido pelo Exército, posto em liberdade, com toda a certeza, foi capturado e justiçado pelo bando do Lamarca e pelo bando da Esquerda, da VPR. E aí a culpa recai sobre as Forças Armadas.”

Em 2013, a Comissão Nacional da Verdade divulgou um documento inédito do Arquivo Nacional sobre as circunstâncias da morte do ex-deputado. O coordenador da Comissão, Claudio Fonteles, afirmou “não haver dúvidas” de que Paiva fora torturado e morto nas dependências do DOI-Codi do Rio.

Às palavras de Bolsonaro somam-se ações que marcaram sua animosidade contra os Paivas. Em um relato publicado no Facebook em outubro, o neto de Rubens Paiva, Chico Paiva Avelino, diz que, em 2014, o então parlamentar do PP cuspiu no busto que a Câmara inaugurava em homenagem a seu avô. No texto, Chico diz que sua mãe e tia faziam discursos emocionados quando foram interrompidas.

“Era Jair Bolsonaro, junto com alguns amigos (talvez fossem os filhos, na época eu não sabia quem eram), que se deu ao trabalho do sair de seu gabinete e vir em nossa direção, gritando que ‘Rubens Paiva teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!’. Ao passar por nós, deu uma cusparada no busto. Uma cusparada. Em uma homenagem a um colega deputado brutalmente assassinado.”

A BBC News Brasil procurou o Palácio do Planalto para falar sobre o episódio, mas não teve resposta.

O gesto de Bolsonaro não foi noticiado na época, mas jornais reportaram como ele vaiou o discurso do então líder do PSOL na Câmara, deputado Ivan Valente (SP), durante a inauguração do busto.

Após a publicação do texto de Chico no Facebook, Marcelo Rubens Paiva dedicou uma coluna no jornal Estado de S. Paulo a elencar – e responder – as acusações que Bolsonaro fez a seu pai e à família nos últimos vinte anos.

“Como deputado, Jair Bolsonaro costuma proferir desde os anos 1990 na Câmara dos Deputados discursos mentirosos sobre meu pai, Rubens Paiva, um deputado federal como ele”, Marcelo escreveu também em outubro.

“A família Rubens Paiva, além de conviver com a dor morte sob tortura absurda por tantas décadas, ainda tem que aturar o ódio delirante de Bolsonaro (…)”

Os Paiva deixaram Eldorado nos anos 1970 e hoje os Bolsonaro são a família mais abastada da cidade. Os irmãos do presidente têm uma rede de lojas de móveis e de material de construção presente em mais de dez municípios do Vale do Ribeira.

A BBC News Brasil foi à loja de um sobrinho de Bolsonaro, um dos poucos parentes que ainda vivem em Eldorado, mas disseram que ele estava viajando.

Não muito acontece em Eldorado. É até difícil distinguir dias úteis de feriados, já que o movimento nas ruas é parecido, as lojas abertas e vazias, a mesma dupla tocando violão no Centro, os conhecidos se cumprimentando de novo e de novo pelas calçadas.

Não é de se estranhar que um tiroteio na praça da cidade tenha gerado tanto rebuliço em 1970 – agitação que se mantém até hoje, quando os moradores recontam o enfrentamento entre Carlos Lamarca e a polícia. Falar de 8 de maio de 1970 na cidade é como perguntar onde alguém estava no dia da queda das Torres Gêmeas de Nova York: todo mundo tem uma história.

“Quando Lamarca passou eu tinha dez anos. Foi muito tiro! A gente era pequena, mas era atenta. Meu pai disse ‘abaixa, abaixa’ e foi todo mundo para debaixo da mesa”, diz Nilzilene de Oliveira, a vice-diretora da escola Dr. Jayme Almeida Paiva. “O pai da minha amiga foi baleado e ficou com chumbo no corpo até morrer!”

Os relatos ouvidos divergem em alguns pontos, mas combinados com registros históricos sobre a passagem de Lamarca pelo Vale do Ribeira constroem uma narrativa sobre o que aconteceu naquela noite – e onde Bolsonaro estava ao longo da ação.

Carlos Lamarca foi um dos principais nomes da oposição armada à ditadura brasileira como um dos líderes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Ele chegou a ser capitão do Exército, mas desertou e foi expulso da corporação em 1969, quando já estava engajado na luta contra o regime. Participou de assaltos a bancos para financiar as atividades de seu grupo e comandou o sequestro do embaixador suíço no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, em 1970, que foi trocado por 70 presos políticos. Nesse mesmo ano, considerado inimigo número um dos militares, Lamarca foi duramente perseguido.

Em abril de 1970, um militante da VPR capturado no Rio de Janeiro revelou que Lamarca estava no Vale do Ribeira, próximo a Registro, formando um grupo de guerrilha. Lá, contou o militante preso, o ex-capitão ensinava tática, tiro, desenhava uniformes e construía armadilhas.

O que os livros não detalham foi que, antes de se juntar a seus companheiros, Lamarca teria circulado sozinho pela região. Antônio Avelino de Melo Cunha, policial aposentado e dono de uma pousada em Eldorado, diz que chegou a conhecer o ex-capitão, que se apresentava como estudante universitário, assim como ele. O guerrilheiro teria se hospedado no hotel Eldorado, que ainda fica na praça central da cidade, e dito que gostaria de conhecer as cavernas da região – hoje uma das principais atrações locais.

“Ele estava procurando meu avô Guilherme, que tinha sido pesquisador do Exército e descobriu algumas cavernas. Lamarca se aproximou de mim perguntando se eu conhecia alguém da família e eu respondi que era neto. Mas não sabia com quem estava falando”, diz Cunha.

O ex-capitão teria pedido ao estudante que o levasse até as cavernas e, mesmo avisado que enfrentaria um dia de caminhada, não hesitou.

Cunha convidou dois amigos para se juntarem a eles, além de um mateiro que sempre andava com seu avô. Enquanto caminhavam na mata fechada, surpreendeu-se com a agilidade do novo amigo.

“Ele dizia que era universitário, mas caminhava na frente da gente e do mateiro também, cortando galho com facão”, diz.

Lamarca teria ficado alguns dias na cidade, conta o policial aposentado, participando dos bailes e pedindo música para a bandinha local, da qual ele fazia parte. Aquele tempo serviria para que conhecesse a região a fundo antes de organizar sua guerrilha.

Mas recebida a informação sobre o paradeiro de Lamarca, em abril de 1970, o Exército foi rápido em enviar 1,5 mil homens ao Vale do Ribeira.

À procura de seu inimigo número 1, as tropas fecharam estradas, prenderam dezenas de pessoas e varreram a serra com helicópteros, bombardeando a floresta.

Morador de “sítio”, como os habitantes de Eldorado se referiam aos bairros afastados do Centro, o diretor da escola Dr. Jayme Almeida Paiva, Domingos de Pontes Junior, lembra bem dos helicópteros. Foi a primeira vez que viu um.

“O Exército pousou no meio do campo de futebol, quando o pessoal estava jogando. Os policiais queriam saber se meu tio tinha ajudado Lamarca a fugir, porque ele roubou a canoa do meu tio e desceu o rio. ‘Foi roubo mesmo? Foi roubo?’ eles ficavam gritando.”

Informado do perigo, Lamarca desativou suas bases de guerrilha próximas a cidade de Jacupiranga. Oito membros foram embora em ônibus, misturados à população. Outros dois foram capturados na estrada. Sobraram sete.

Esses caminharam na floresta por três semanas, até que no dia 8 de maio entraram num vilarejo e alugaram o caminhão de um comerciante. O homem fechou negócio, mas enviou um cavaleiro para avisar a polícia, que montou uma pequena barreira de policiais na praça central de Eldorado. Por volta das sete da noite, quando o caminhão de Lamarca parou na cidade, um policial pediu que os sete passageiros descessem com documentos em mãos. Foi aí que os tiros começaram.

Tal versão não bate com a contada por moradores. Eles dizem que o grupo de guerrilheiros roubou o caminhão, obrigando seus donos a dirigirem até Eldorado enquanto ficavam escondidos na traseira, debaixo de uma lona. Quando o veículo parou no posto de gasolina, os policiais teriam desconfiado da movimentação, puxado a lona e passado a atirar.

Nessa hora, Bolsonaro estaria em aula na escola Dr. Jayme Almeida Paiva, que fica a 100 metros da praça. Antônio Carlos de Melo Cunha, amigo do presidente eleito, conta que estava na mesma sala quando alguém apareceu na porta para avisar que Lamarca tinha passado por Barra do Braço, a 30 km de Eldorado, e se aproximava.

“Pediram para o diretor liberar os alunos, mas não deu tempo porque pouco depois veio o tiroteio. Tivemos que ir rastejando. A polícia não tinha arma e o pessoal do Lamarca tinha armamento pesado”, diz.

Como ele, Bolsonaro e outros alunos moravam próximo ao rio Ribeira, do outro lado da cidade, e precisaram atravessar a praça. Antônio diz que o grupo de adolescentes viu um dos policiais feridos ser carregado, coberto em sangue, até sua casa. O homem foi atingido na perna e depois precisou amputá-la.

“Os soldados estavam sendo massacrados!”, ele arregala os olhos. “Um grupo de homens invadiu a delegacia para pegar armamento. A gente gostava do Exército. Os outros, para nós, eram terroristas.”

Moradores relatam que Lamarca gritava “não queremos nada com vocês, nosso negócio é com o Exército”, tentando evitar mais tiros. Mesmo assim, dois PMs e uma mulher foram baleados. Ninguém morreu.

Lamarca aparece em 33 discursos de Bolsonaro no plenário da Câmara desde 1995. Como deputado, ele repetiu que, quando adolescente, ajudou os militares a procurarem o guerrilheiro na mata.

“Eu sou de Eldorado Paulista. Eu participei, de forma bastante discreta, porque tinha 15 anos de idade, da caça ao Lamarca, ao lado do Ribeira”, disse Bolsonaro em sessão de março de 2012.

A mesma história foi citada em entrevista ao Programa Roda Viva, da TV Cultura, já como candidato a Presidência. A afirmação de que teria ajudado na caça à Lamarca “ainda moleque” levou a revista Época a publicar uma reportagem dizendo que Bolsonaro teria misturado dois episódios para engrandecer sua biografia.

No texto, o jornalista Plínio Fraga narra o causo do chamado “moleque sabido” de Itapecerica da Serra que, em 1969, ao anotar a placa de um Fusca, teria dado aos militares a primeira pista sobre Lamarca – “moleque” este que não seria o presidente, explica o jornalista. Fraga argumenta que na passagem do guerrilheiro pelo Vale do Ribeira, um ano depois, não haveria registro da ajuda de Bolsonaro.

Apesar de a BBC News Brasil não ter encontrado documentos sobre a participação do presidente, moradores que testemunharam a operação de busca dizem que era comum o Exército pedir e receber dicas de pessoas que conheciam os arredores, inclusive adolescentes. O contato entre militares e população foi frequente, já que soldados rondaram a região por semanas. Lamarca só conseguiu escapar do Vale do Ribeira três semanas depois do tiroteio.

Filho do escrivão de polícia de Eldorado na época, Antônio Avelino conta que foi informante do Exército, narrando seus encontros com Lamarca. Segundo ele, Bolsonaro fez o mesmo.

“Jair Bolsonaro também foi informante. Ele conhecia bem o mato. Indicava para onde eles podiam ter fugido.”

Mesmo com todos esses esforços, Lamarca não foi capturado ali. Depois do enfrentamento em Eldorado, escapou em direção a Sete Barras. A pouco mais de um quilômetro da cidade, seu grupo foi interceptado por uma tropa da PM. Os guerrilheiros abriram fogo, ferindo catorze policiais e rendendo outros 18.

O pelotão era comandado pelo tenente Alberto Mendes Júnior, de 23 anos, que se tornou refém do grupo. Depois que dois de seus companheiros foram capturados, Lamarca decidiu que o tenente deveria morrer.

O assassinato de Mendes Júnior é usado por Bolsonaro como símbolo da violência que a esquerda teria praticado contra os militares durante a ditadura. Ele mencionou o militar ao rebater o pagamento de indenização aos familiares de Lamarca, ao criticar a criação da Comissão Nacional da Verdade e até ao defender a possibilidade de um regime de exceção no caso de vitória de Dilma Rousseff nas eleições de 2010.

“O Tenente Alberto, heroicamente, trocou-se por outros soldados subordinados seus para seguir mata a dentro como refém de Carlos Lamarca, o grande traidor”, disse Bolsonaro no plenário da Câmara em 1996. “E depois, como Lamarca não precisava mais dele, porque estava livre, já longe das tropas das Forças Armadas, submeteu-o a bárbaras torturas, em que inclusive foi obrigado a engolir os seus órgãos genitais, assassinando-o a coronhas.”

A versão de que, antes de ser morto, Mendes teria sido obrigado a engolir seus órgãos genitais não consta nos documentos do Exército, disponíveis no Arquivo Nacional, nem nos escritos do general Carlos Alberto Brilhante Ustra em A Verdade Sufocada, livro de cabeceira do presidente. Em um capítulo destinado apenas a descrever o assassinato, Ustra relata apenas que Mendes foi morto com “violentos golpes na cabeça”, deferidos por Yoshitame Fujimore, outro membro da VPR, com a coronha de seu fuzil.

Depois da troca de tiros na praça, soldados continuaram em Eldorado para impedir que o ex-capitão reaparecesse por ali. Moradores contam que os militares acampavam na ponte que passa sobre o rio Ribeira e liga a cidade a Sete Barras, ao norte. A ponte fica no quarteirão onde os Bolsonaro moravam. Os vizinhos Reinaldo e Lúcia Melo lembram os dias em que recebiam os pracinhas da operação para o almoço ou um cafézinho.

“O sargento de Guaratinguetá vinha tomar café em casa. Eles lanchavam, eu fritava uns bolinhos de chuva. Ficaram mais de uma semana acampados aí. As meninas iam lá conversar com eles e muitas ficaram grávidas depois. Meninos iam conversar também, tinham fascínio por esse negócio de arma”, diz Lúcia na pequena sala onde cabos e sargentos pediam licença para entrar.

Os amigos de infância de Bolsonaro relatam como as crianças e adolescentes procuravam os soldados para saber se o “terrorista” já tinha sido capturado.

“Depois do tiroteio, estávamos conversando com um pracinha quando ele enroscou a arma no cinto e ela disparou. Pegou só no sapato dele, que ficou cravado no chão”, ri Antônio Carlos, o colega de turma. “A gente era a favor do militarismo, nunca tivemos problema.”

Em versão bem conhecida da história – e repetida pelo próprio presidente –, um desses soldados entregou um panfleto sobre o alistamento militar para o jovem Jair.

João Evangelista, colega de colégio e parceiro de pescarias do presidente, diz que depois da fuga de Lamarca, Bolsonaro passou a repetir seu novo sonho: ir para o Exército. Três anos mais tarde, ele entraria na Academia Militar das Agulhas Negras.

“Depois disso daí, ele sempre falava que queria ir para o Exército. Achou bonito o trabalho deles.”

Em Mito ou Verdade, Flávio Bolsonaro escreve como seu pai “conheceu e se encantou pelo Exército Brasileiro, quando sentiu tocar no seu coração a vontade de servir ao seu país”.

Para um ex-prefeito da cidade, a influência da passagem de Lamarca na escolha de Bolsonaro é reforçada pela postura de sua família, que não era uma grande apoiadora da ditadura. Fernando Cláudio de Freitas, que administrou a cidade entre 1982 e 1988, era vereador pelo MDB quando Percy Geraldo Bolsonaro, pai de Jair, se candidatou à prefeitura pelo mesmo partido, em 1976. A sigla abrigava os opositores da ditadura.

Percy tentou o cargo mais duas vezes – em 1982 e 1988, dessa vez pelo PDS (Partido Democrático Social), sucessor da Arena e extinto em 1993 –, mas nunca foi eleito.

O pai de Bolsonaro foi fichado e monitorado pela ditadura em razão de sua candidatura pelo MDB. Documentos oficiais mostram que o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), o Serviço Nacional de Informação (SNI) e o comando da Aeronáutica monitoraram suas atividades políticas e registraram o crime pelo qual ele tinha sido acusado, de exercício ilegal de profissão (medicina, odontologia ou farmácia).

Sobre o ex-colega de partido, Freitas diz que era “um cara democrático, liberal e tranquilo”.

Ele acredita que o caminho seguido por Bolsonaro foi ditado pelo episódio de Lamarca e cita seus irmãos como prova: “tanto é que os outros cinco seguiram caminhos diferentes”.

Só o caçula, Renato, foi militar. Depois de candidatar-se à Prefeitura de Miracatu por duas vezes e não ser eleito, e de ser exonerado do cargo de assessor especial da Assembleia Legislativa de São Paulo sob o argumento de que seria funcionário-fantasma, hoje ele administra lojas de móveis no Vale do Ribeira. Os outros irmãos também estão no comércio.

Cláudio lembra que a oposição ao governo era feita “dentro da legalidade e da normalidade”. Não havia ali defensores do comunismo ou socialismo, mas pessoas contrárias a ações do regime, como o desaparecimento de inimigos políticos. A disputa entre Arena e MDB era mais parecida a uma partida de futebol do que a um campo de batalha, ele compara.

Seja como for, Bolsonaro decidiu-se pela vida militar.

Depois de partir para Resende, no interior do Rio de Janeiro, voltava nas folgas para Eldorado. Numa de suas visitas, reunido com os amigos, teria expressado o já famoso desejo de ser presidente do Brasil. João Evangelista estava lá quando isso aconteceu e narra o momento à BBC News Brasil.

Ele diz que depois de jogar bola, um grupo de meninos de 18 ou 19 anos, Bolsonaro entre eles, conversava sobre as novidades dos últimos meses. O jovem militar começou a falar sobre como estava subindo na hierarquia do Exército – ele havia deixado de ser aspirante a oficial e passava a tenente.

“Jair, então logo logo você vai ser presidente”, disse um colega.

“Mas é o meu sonho”, ele respondeu. “Um dia ser presidente!”

João explica o contexto da conversa. Segundo ele, o colega dizia que, subindo rápido assim, um dia Jair poderia tornar-se general e assumir a Presidência do Brasil como Castelo Branco, Costa e Silva e Médici haviam feito. Um dia, Bolsonaro poderia tornar-se o comandante máximo do regime.

“Naquela época, era o militarismo que tomava conta do Brasil. 1970 era o Garrastazu, Garrastazu Médici”, ele explica.

“Jair disse ‘meu sonho é um dia ser presidente’ só que naquela época era o militarismo. Porque era militar, né, general, coronel, que ia para a Presidência.”

Leonila tem uma casa no mesmo lugar que seu tataravô escolheu para morar. Para chegar até lá, é preciso subir uma estrada íngreme por entre a mata do Vale do Ribeira. Tão complicado é o caminho que a reportagem é desaconselhada a continuar – pedras podem se soltar, furando um pneu ou causando acidentes.

O difícil acesso não é coincidência. O tataravó de Leonila construiu sua casa ali justamente por isso. Afinal, escravo fugido, ele não queria ser encontrado.

A família de Leonila da Costa Pontes, de 69 anos, faz parte do quilombo Abobral, um dos doze que existem em Eldorado Paulista. Como o município é o quarto do Estado em dimensão territorial, com quilômetros de bananais entre seus bairros, todas as comunidades cabem em sua área. A maioria foi reconhecida nos últimos anos, como no caso de Abobral, oficializada em 2015. O lugar, no entanto, não teve suas terras demarcadas.

Para a maioria dos moradores entrevistados, a forte presença de quilombolas na região foi um dos motivos para que a votação de Bolsonaro não fosse tão expressiva em Eldorado. O presidente teve 54% dos votos contra 45% de Fernando Haddad (PT).

“O PT é forte aqui com os quilombos, as ONGs e a igreja católica. Para mim o número foi vergonhoso, tinha que ter sido muito mais”, diz a professora aposentada Mara Cristina de Freitas Cunha, mulher de Antônio Carlos, um dos velhos amigos de Bolsonaro.

Apesar da torcida de Mara Cristina, não havia sinais de apoio ao presidente pela cidade. Adesivos de sua campanha foram vistos em três carros e duas janelas ao longo de quatro dias de viagem. Não havia banners, faixas ou bandeiras do Brasil, usados como símbolo da candidatura de Bolsonaro.

Ao perguntar a moradores por que escolheram seu conterrâneo para o cargo mais alto do país, o motivo que se destacava não era ideológico, mas econômico: “Esperamos que ele trabalhe para melhorar o Vale do Ribeira”.

Do outro lado, a preferência dos quilombolas por Haddad não vem apenas da proximidade do PT com movimentos sociais, mas da indignação que uma declaração de Bolsonaro causou.

Em abril de 2017, já pré-candidato a Presidência da República, ele disse em uma palestra no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, que havia visitado um quilombo em Eldorado Paulista e seus habitantes “não faziam nada”.

“O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”, discursou.

O então deputado também afirmou que, se eleito, nenhum “centímetro” a mais seria destinado para reservas indígenas ou quilombolas.

Dos 12 quilombos de Eldorado Paulista, apenas um, Ivaporonduva, já teve suas terras demarcadas.

Os outros, como Abobral, veem os terrenos onde faziam seus roçados serem ocupados por bananais e casas de “terceiros”, como os quilombolas chamam os que passaram a comprar terra na região a partir de 1970, diminuindo a área que os descentes de escravos usavam havia séculos. As negociações feitas desde então são pouco claras, diz Leonila, e não se sabe se os compradores têm qualquer registro que comprove a posse dos hectares.

Para ela, apesar de ser um passo importante, o reconhecimento das comunidades quilombolas, possibilidade que surgiu com a Constituição de 1988, não mudou muita coisa. Suas terras seguem encolhendo e as diferenças de tratamento continuam.

Leonila franze a testa quando a reportagem pergunta sobre as menções de Bolsonaro a seus amigos negros, citados para rebater acusações de racismo. Gotas de suor correm por debaixo de seus óculos enquanto ela aperta os olhos.

“Isso pode ser lá onde ele nasceu, mas em Eldorado, não! Sempre foi separado. Hoje está menos, mas é porque está enrustido. Naquela época, se fosse do sítio e pobre era discriminado. Se fosse negro, pior ainda!”

O pai de Leonila fazia parte da Congregação Mariana, uma associação pública de leigos católicos, e todo domingo caminhava por horas para ir a missa na cidade. Ele sempre levava os filhos, para quem recomendava: “não sentem na frente senão vão tirar vocês de lá”.

“Ele colocava a gente bem na porta da igreja, no fundinho, e sempre ficamos ali”, conta.

No carro, ao voltar do quilombo para Eldorado, onde hoje mora com uma prima, Leonila diz que ainda não se sente bem na cidade. Elas se mudaram há alguns anos, quando um tio adoeceu e precisou de tratamento no hospital local. Para explicar seu desconforto, lembra de uma procissão em que ela e outras duas mulheres negras foram escolhidas para carregar a imagem da santa. Ao deixarem a igreja, um grupo teria tirado a estátua de suas mãos.

“Só faltaram me derrubar”, ela balança a cabeça.

“Privilegiados” e “acomodados” são algumas das palavras usadas por moradores para falar dos quilombolas. Esses entrevistados têm a idade de Bolsonaro ou são mais velhos e, apesar de não representarem a opinião geral, indicam que uma distância persiste.

“Depois de 1990, eles foram denominados quilombos”, a professora aposentada Maria Cristina diz, quando perguntada sobre as comunidades.

E o que mudou?, a reportagem insiste.

“Eles agora têm vantagens”, seu marido Antônio Carlos entra na conversa. “Têm privilégios. Depois disso aí começou a pipocar quilombo”, diz, sem tirar os olhos da televisão. Um filme antigo está passando.

“As áreas que demarcaram para os quilombos é um absurdo”, ele continua.

“Mas Bolsonaro fala em garantir a propriedade privada”, a mulher retoma a palavra.

“Talvez essas demarcações absurdas acabem!”

Leonila conhece os Bolsonaro. Quando Percy Geraldo chegou com a família a Eldorado, para administrar uma fazenda às margens do Ribeira, ela diz que o dentista pediu dinheiro emprestado a seu pai, então um inspetor de quarteirão. Sem conseguir pagar, Geraldo ofereceu seus serviços. Vários dentes de Leonila foram arrancados por ele.

“O pai era um homem muito humilde. Ele tinha um gabinete na cidade, bem organizadinho e bem pobrezinho. Essa aqui também tirou dente”, ela diz, apontando para Virginia, sua prima, que senta a seu lado no pátio da Igreja do Abobral.

“Arranquei todos os dentes com ele”, Virginia ri, mostrando a dentadura.

“Ele contava que Jair tinha 17 anos e tinha ido para o Rio de Janeiro”, lembra Leonila.

Se, quando criança, sentada na cadeira do pequeno consultório em Eldorado, o filho do dentista era indiferente para ela, hoje Jair Bolsonaro é uma de suas maiores preocupações.

Ela diz temer o que presidente possa fazer com os quilombos: de não demarcar terras a incentivar a construção de barragens que poderiam deixar as comunidades debaixo d’água.

Leonila faz parte do Movimento dos Ameaçados por Barragens do Vale do Ribeira, uma central de movimentos sociais criada em 1990. Por quase trinta anos, o grupo lutou contra projetos de hidrelétricas no rio Ribeira de Iguape que, segundo seus representantes, ameaçariam comunidades quilombolas, pequenos agricultores, ribeirinhos e caiçaras.

Em 2016, o Ibama decretou a inviabilidade ambiental da usina de Tijuco Alto, projeto da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), sepultando a obra. O lago de Tijuco Alco atingiria dois municípios em São Paulo (Ribeira e Itapirapuã Paulista) e três no Paraná (Adrianópolis, Dr. Ulysses e Cerro Azul) e poderia afetar toda a bacia hidrográfica do rio Ribeira do Iguape. No ano passado, o Ministério de Minas e Energia publicou uma portaria que extinguiu a concessão para o aproveitamento de energia da mesma usina.

O medo de Leonila, no entanto, é que um governo Bolsonaro promova a volta de projetos como esse, apoiado por parte da população de Eldorado. Moradores dizem que uma hidrelétrica movimentaria a economia local.

Em outubro, após a vitória de Bolsonaro no segundo turno, o presidente do Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico (FMASE), Marcelo Moraes, disse que o governo recém-eleito aceleraria o processo de licenciamento ambiental de grandes empreendimentos de energia elétrica, com destaque para usinas. O FMASE é o principal interlocutor do setor em debates sobre questões ambientais.

“Só peço a Deus que ele não maltrate a gente”, Leonila diz, secando o suor da testa. A manhã avança quente sobre os bananais.

“Que esperar muito dele a gente não espera. Mas peço que não maltrate a gente…”

Católico também, Setembrino Marinho não pede a Deus. Um dos líderes do quilombo de Ivaporunduva e presidente do PT em Eldorado, ele diz que resistir lhe interessa mais. Como seus antepassados fizeram há séculos.

A 45 km do centro de Eldorado, mas ainda parte da cidade, Ivaporunduva aparece depois de uma hora de viagem por estradas esburacadas e duas pontes, a última feita de estreitas placas de madeira sobre pilares de concreto. A comunidade, de 3,7 mil hectares e 80 famílias, ocupa aquela terra desde o século 17, quando a área ainda servia à mineração de ouro.

Uma das histórias sobre a origem de Ivaporunduva conta que a antiga proprietária do lugar, dona Maria Joana, adoeceu, foi tratar-se em Portugal e acabou morrendo por lá, por volta de 1690. Viúva e sem parentes, a fazenda teria ficado para seus escravos.

“Eles foram abandonados aqui”, diz Setembrino, em frente a sua venda, um cubículo de madeira onde vende cerveja, refrigerante e cachaça.

Mas “abandonados” seria a palavra? Não estariam livres?

“Não”, Setembrino sacode a cabeça, secando o peito com a camiseta que leva pendurada no ombro. “Eles não sabiam o que fazer. Junto com a Maria Joana tinham o que comer, o que beber. E, quando ela foi embora, se eles atravessassem o rio, eram capturados. Tinham que ficar aqui.”

Os escravos decidiram reunir-se na igreja, que antes da morte de Maria Joana já estava em construção. Ali formou-se o quilombo.

A igreja de barro batido e estrutura de madeira, iniciada pelos escravos a pedido de sua dona e terminada por vontade própria, ocupa o centro e a parte mais alta da comunidade. Levou o nome de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Nas ruas de terras não bem paralelas, mas concêntricas, estão as casas de alvenaria dos moradores. De um lado, margeiam o rio Ribeira; do outro, os paredões de mata que se estendem, intocados, morro acima.

“A maioria da Mata Atlântica está aqui”, diz Setembrino. “Falam que o Vale do Ribeira é o Nordeste de São Paulo, mas não é verdade. A gente é muito rico de tudo: de floresta, de água, de cachoeira.”

Para Setembrino, o que incomoda os críticos é o fato de os quilombolas serem pobres, pretos e terem terra.

“Estamos em dias de crise política, econômica, mas aqui não tem crise porque ninguém passa fome. Plantamos o que precisamos. Mas falar em dar terra para preto e pobre é difícil, porque terra é poder.”

O líder de Ivaporunduva não se recorda de nenhuma visita de Bolsonaro, mas diz ter certeza que o presidente se referia a este quilombo durante a palestra no Clube Hebraica.

“Ele falou que visitou uma comunidade que tinha maquinário e nós temos três tratores. Além disso, é a mais conhecida e organizada da região”, ele argumenta.

Contra as acusações de que “não fazem nada”, Setembrino diz que Ivaporunduva fornece de 600 a 800 caixas de bananas orgânicas por semana para as prefeituras de Embu, Campinas e Santo André. O alimento vai para merenda escolar. No total, diz, a comunidade gera quase R$ 33 mil por mês com o fornecimento da fruta, além de receber grupos de turista para conhecer a área.

Como a resposta sugere, sua tática é mais incisiva do que a de Leonila. Ele teme, sim, que Bolsonaro faça mudanças na região, como incentivar a construção de barragens ou abrir áreas de reserva para mineração, mas pretende manter a postura ofensiva.

Até 25 anos atrás, os quilombolas proibiam a entrada de pessoas estranhas ali, o que seus antepassados faziam há séculos, para evitar sua recaptura. Os motivos mudaram, diz Setembrino, mas a necessidade de fechar-se permanece.

“Eles ficaram aqui e deixaram isso pra nós. Não temos medo de lutar”, diz, arregalando os olhos negros.

Da BBC