Bolsonaro põe crianças e adolescentes LGBTs em risco e desrespeita ECA e ONU, diz associação

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A Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH) publicou uma nota criticando o risco que Bolsonaro coloca a população LGBT, em especial, crianças, adolescentes, trans e travestis, com as declarações desastradas de Damares Alves. Veja Abaixo:

Enquanto organização de caráter político-acadêmico, sem fins lucrativos, que congrega pesquisadoras e pesquisadores do campo dos estudos de diversidade sexual e de gênero de distintas áreas de conhecimento e regiões do Brasil desde sua fundação em 2001, a Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), vem a público manifestar seu posicionamento frente aos retrocessos apresentados nas medidas tomadas já nos primeiros dias do governo do recém empossado presidente Jair Bolsonaro e nas declarações da Ministra de Estado dos Direitos da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves.

A ABEH vem acompanhando com preocupação a ofensiva conservadora que vem atacando fortemente os avanços na inserção do combate à LGBTfobia na agenda pública governamental brasileira. Essas iniciativas compõe um conjunto de ações que visam: a) desmontar os direitos sociais, através de contrarreformas do Estado que têm atingindo especialmente os recursos orçamentários destinados à saúde, educação, assistência social, direitos humanos e cultura; b) criminalizar os movimentos sociais que questionam a desigualdade na distribuição socioeconômica no país, instaurando pânico social e moral; c) difamar, a partir de propagação de notícias falaciosas, sujeitos políticos que protagonizam a disputa de sentidos frente às hierarquias sexuais, raciais, de gênero e classe social; d) atacar a liberdade de cátedra na educação básica e superior pública, acionando o familismo e um suposto combate à “doutrinação” como justificativa para opor-se à autonomia do pensar central para o desenvolvimento humano.

Repudiamos veementemente as extinções do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), órgão responsável pelas políticas de combate à fome; do Ministério do Trabalho e Emprego; do Ministério da Cultura; e da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (SECADI/MEC), órgão criado em 2004 e responsável pela formação continuada de professoras e professores em gênero, sexualidade, relações étnicorraciais, educação especial e direitos humanos. Estes órgãos foram criados a partir de demandas da sociedade civil e pressão dos movimentos sociais, não obstante sua extinção demonstra descompromisso da nova gestão com acordos internacionais e desrespeito às demandas populares históricas.

A ABEH se solidariza politicamente com os povos das águas e das florestas, que têm sofrido com as estratégias de demonização dos ativismos sociais do atual presidente, que ao transferir a responsabilidade da demarcação de terras ao Ministério da Agricultura busca enfraquecer a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e fortalecer o projeto socioambiental dos setores ruralistas. Sabe-se que a defesa da tradição, da família e da propriedade não é um projeto novo e tampouco deve-se desconsiderar o que está em jogo no futuro brasileiro, posto que delineia-se, desde antes do período eleitoral, uma aliança entre ruralistas, armamentistas e fundamentalistas religiosos. As recentes declarações da Ministra Damares Alves demonstram que a centralidade da família será a tônica deste governo para justificar sua “necropolítica”, nos termos do sociólogo camaronês Achille Mbembe. Desta forma, o acirramento da política econômica neoliberal e suas estratégias discursivas neofascistas, que operam pelo extermínio de grupos sociais que não têm lugar neste sistema, tendem a justificar o injustificável – o genocídio da juventude negra, o feminicídio e os numerosos índices de assassinatos da população LGBTI.

Nos opomos de maneira intransigente a incisiva a fala da Ministra que aponta, de maneira acalorada, que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” e que “meninas serão tratadas como princesas e meninos como príncipes”. Embora sua fala se apresente de maneira caricata ou metafórica, a estratégia operada pela Ministra se alinha ao atual presidente na medida em que relativiza eticamente o efeito político de seu discurso, o que a filósofa Hannah Arendt nomeou de “banalidade do mal”. Assim, a Ministra e o que ela representa oficialmente, banaliza a letalidade da ordem de gênero estabelecida e reitera institucionalmente o binarismo de gênero, já observado pela filósofa Judith Butler enquanto valor moral e social estruturante das desigualdades em nossa sociedade. Ao reforçar a lógica binária, banaliza especialmente as vidas que não se conformam em identidades classificadas como “meninos/homens” e “meninas/mulheres”, especialmente a população transexual e travesti. Tomamos isso como um severo ataque aos direitos da população Trans, explícito ainda hoje na retirada de circulação da Cartilha sobre Saúde do Homem Trans, seis meses após ser lançada pelo Ministério da Saúde.

Não coadunamos com a ideia apresentada pela Ministra em entrevista a Globo News ontem, dia 03/01/2019, dizendo que espera “combater o preconceito, sem confundir as crianças sobre identidade” e afirmando que o governo irá “respeitar a identidade biológica das crianças”, pois para esta gestão “as crianças pertencem às famílias”, contrariando o que foi promulgado na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), onde partilha-se entre a sociedade, a família e o Estado, os cuidados e a proteção as crianças e adolescentes. De maneira eloquente, demoniza-se o ativismo feminista e LGBTI, através do combate ao que o campo conservador nomeia de “Ideologia de Gênero”. Uma visão frágil e hostil aos estudos e ativismos que têm contribuído para o enfrentamento às violências decorrentes das hierarquias sexuais e de gênero, como nos demonstra os recentes debates teóricos feitos na educação por Jimena Furlani e Rogério Junqueira. A “ideologia de gênero” é uma estratégia global, como demonstra a antropóloga colombiana Mara Viveros Vigoya, que está imbricada, inclusive em contextos de acordos de paz, em territórios permeados por conflitos armados. Não nos resta dúvida que o governo Bolsonaro está em consonância com este movimento mundial, todavia, nos somamos a outras organizações e associações em uma tentativa de construirmos alianças e políticas de solidariedade.

Deste modo, à Ministra afirmamos que a carne e o corpo são revestidos de cultura, não há espaço para interpretar-nos e controlar-nos por um viés biologizante e essencialista. Reverberamos a compreensão de que gênero, sexualidade, raça e etnia são estruturais e não envolvem somente “costumes sociais”, são determinantes nos processos decisórios de escolha de quem deve viver e morrer. Assim, adotamos uma postura crítica e de denúncia deste governo, que em menos de 5 dias de gestão mostra sua atitude reacionária e descumpre tratados internacionais de proteção aos direitos humanos contidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1945), com especial destaque quando esse afirma que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, e que por conta disso, o Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos (ACNUDH) publicou o guia sobre os direitos LGBT, intitulado “Nascidos Livres e Iguais: Orientação Sexual e Identidade de Gênero no Regime Internacional de Direitos Humanos“, definindo as obrigações legais fundamentais dos Estados-Membros, incluído o Brasil, baseado nos “Princípios de Yogyakarta para Aplicação de Direitos Humanos à Orientação Sexual e Identidade de Gênero” pela mesma ONU e as normativas tanto da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que institui a Convenção sobre a discriminação no trabalho e na profissão para a população LGBT, como da Organização dos Estados Americanos (OEA), através da Comissão Interamericana de Diretos Humanos, sobre violência contra LGBT nas Américas, o reconhecimento dos direitos de casais do mesmo sexo e a troca de identidade sexual nos registros civis, os quais o Brasil também é signatário.
Aos movimentos sociais do campo democrático e aos setores progressistas, conclamamos que não se seduzam aos discursos conciliatórios e ao “cripwashing (1)” que este governo pseudoinclusivo, através de sua primeira dama Michelle Bolsonaro, parece querer construir exclusivamente para as pessoas com deficiência, aniquilando ou hierarquizando direitos humanos de outros grupos sociais. Lutar, resistir e existir é uma tarefa necessária a que nos colocamos na defesa intransigente dos direitos humanos. Uma aliança em prol das vidas precárias e desprezadas também já brotou nas ruas. Sigamos, nenhum passo atrás!

Brasília, 04 de janeiro de 2019.

Associação Brasileira de Estudos da Homocultura – ABEH
Biênio 2019-2020

(1) Termo utilizado por estudiosos do campo dos estudos da deficiência e da teoria crip, como Melania Moscoso e Lucas Platero, em analogia a pinkwashing. Significa a apropriação dos discursos pró direitos das pessoas com deficiência para limitar ou barrar os direitos de outros grupos sociais, por exemplo, direitos reprodutivos das mulheres. A partir do entendimento do conceito de “pinkwashing” (lavar de rosa), onde Jasbir Puar explica o contexto de reconhecimento de Israel como uma país defensor dos direitos humanos por suas políticas LGBTI ao mesmo tempo em que dizima o povo da Palestina – “lavar de rosa” refere-se a lavar o sangue do Outro com o “pink” do ativismo gay e lésbico do Norte Global. No caso, o cripwashing indicaria assim, uma sobreposição da pauta deficiente em detrimentos de outros segmentos duramente perseguidos pelo Estado em questão.