Em 22 dias, cerca de 100 feminicídios ou agressões contra mulheres foram registrados

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Sexta-feira, São Fernando, oeste do Rio Grande do Norte. Danielle Medeiros, de 32 anos, leva de seu companheiro um tiro na cabeça. Após o crime, ele enrola o corpo da mulher em um lençol e a enterra numa cova rasa no quintal da casa onde moravam. No dia seguinte, deixa os filhos, de 5 e 12 anos, na casa da avó e sai para jogar futebol com os amigos. À noite, questionado sobre o sumiço de Danielle, confessa o assassinato.

O crime no interior potiguar é um entre os 107 casos de feminicídio registrados desde o início do ano. São, em média, cinco ocorrências por dia. Sessenta e oito terminaram em morte; as outras 39 foram tentativas. É uma tragédia nacional — há episódios conhecidos em 94 cidades, distribuídas em 21 estados.

O levantamento é assinado por Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela USP, com base no noticiário nacional. É possível, portanto, que o problema seja muito mais comum. Mas a crueldade empregada contra as vítimas está presente em todos os casos.

— A violência é tamanha que se tem a impressão de que, para o agressor, a vítima não é um ser humano — afirma Nascimento. — A mulher é vista como um componente social que pode ser descartado por qualquer razão fútil. Aí vemos um homem que afogou a companheira no vaso sanitário, outro que matou a golpes de machado, um terceiro que baleou e foi jogar futebol.

Segundo levantamento feito pelo GLOBO com base nos dados compilados por Nascimento, mais da metade dos episódios (55%) ocorreram entre sexta-feira e domingo, enquanto os demais foram registrados de segunda a quinta-feira. Uma hipótese aventada pelo especialista é a de que casais separados têm mais contato no fim de semana, por causa de seus filhos ou por encontrarem amigos em comum.

Para Bila Sorj, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, o elevado índice de homicídios atenta contra a “masculinidade tradicional”.

— Nas últimas décadas, os homens não se transformaram na mesma proporção que as mulheres. Há uma diferença cada vez maior na forma como eles e elas pensam o mundo — explica. — As mulheres ganharam autonomia para fazer suas próprias escolhas e valorizar sua individualidade. Querem que o casamento seja uma relação negociada, e não a palavra final do marido. O feminicídio é resultado da incapacidade dos homens de aceitar uma nova cultura.

O assassinato, diz Sorj, não costuma ser o primeiro conflito agressivo de um casal. Trata-se da etapa final de um ciclo de violência que não foi interrompido mesmo após a sanção, em 2006, da Lei Maria da Penha. A socióloga avalia que, com o texto, as mulheres deixaram de aceitar passivamente os confrontos — muitas pedem ações protetivas contra seus companheiros.

No entanto, Jolúzia Batista, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), indica que há cada vez menos ligações entre a legislação e a realidade. Prova disso é o gradual desmantelamento do projeto Casa da Mulher Brasileira, criado em 2015 pela então presidente Dilma Rousseff. O programa, que disponibiliza serviços como apoio psicossocial, contato com órgãos judiciais e cuidado das crianças, sofreu cortes orçamentários no governo de Michel Temer.

— Alguns estados nem sequer tiveram o programa; em outros, essas casas estão fechadas ou em uma situação muito precária — descreve Batista. — Eram centros que ajudavam as mulheres a deixar o local em que sofriam violência e a ter uma renda econômica para que seu sustento não dependesse de um agressor.

Jolúzia Batista diz acreditar que as mulheres, mesmo conscientes sobre sua vulnerabilidade ao feminicídio, ainda têm dificuldades de transmitir a sensação de perigo.

— Há muitos equívocos no atendimento às vítimas nas delegacias. Alguns inspetores e delegados recusam-se a registrar boletins de ocorrência por considerar que os relatos não têm importância — acusa. — Ignoram que o feminicídio é um crime hediondo, definindo-o apenas como um assunto passional que deve ser resolvido pela família.

Para a especialista do Cfemea, a sociedade parece cada vez mais disposta a ouvir discursos conservadores, onde as mulheres são vistas como pessoas que não se comportam nem buscam reconciliação com o companheiro.

O decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro que flexibiliza as regras para o posse de armas também preocupa as analistas.

— É uma medida de restauração do poder patriarcal. As mulheres não vão comprar armas para defender seus filhos, elas não serão as clientes da indústria armamentista. É uma forma de facilitar o feminicídio — destaca Sorj.

— As pesquisas mostram que as mulheres são as maiores vítimas de mortes por arma dentro de casa — acrescenta Batista. — Há 1.000% de chances de termos mais casos de violência.