Em outubro, quatro militantes do MST foram condenados por formar uma organização criminosa

Todos os posts, Últimas notícias

Em 2016 o acampamento Leonir Orbak, em Santa Helena de Goiás, interior do estado, era um terreno fértil em meio à aridez dos imensos canaviais da região. Ocupada pelo MST, parte da área era tomada por uma extensa lavoura de milho orgânico – que, nos tempos áureos, serviu de matéria-prima para mais de 20 mil pamonhas distribuídas em uma festa do movimento. Em março daquele ano, porém, a lavoura foi destruída.

Dezenas de agricultores assistiram, estarrecidos, a um trator despejando glifosato, um tóxico herbicida, que desfolhou a plantação de milho. Abalados, perseguiram o pulverizador com carros e motos até cercá-lo. Após tirarem o motorista de dentro dele, incendiaram o veículo, avaliado pelo proprietário em R$ 300 mil.

A destruição do pulverizador foi uma das bases da primeira condenação do MST como uma organização criminosa no país.

Visitei o acampamento Leonir Orbak em dezembro. A paisagem contrasta com os arredores. O assentamento abriga dezenas de cultivos diferentes – para os agricultores, plantar é uma das maneiras para manter a calma em um tempo de incertezas.

Em outubro do ano passado, o juiz Thiago Boghi condenou quatro militantes do MST por formar uma organização criminosa: Borges, Luis Valdir Misneroviz e outros dois, hoje foragidos. Num país onde o presidente diz que pretende acabar com todos os ativismos, a decisão parece o prenúncio dos novos tempos.

Foi a primeira vez em que a lei, sancionada em 2013 por Dilma Rousseff logo após os protestos de junho, foi usada para enquadrar militantes do movimento. Na época, o objetivo da presidente era combater organizações criminosas. Cinco anos depois – confirmando os alertas dos ativistas – a lei ganhou um novo alvo.

Viajamos até Goiás para entender como esse processo judicial se desenrolou e quais foram as suas consequências. Essa decisão envolve uma empresa que deve mais de R$ 1 bilhão ao governo federal, acusações do Ministério Público embasadas em citações da Wikipédia, um trator incendiado por agricultores revoltados e um juiz que citou Jair Bolsonaro para lastrear uma decisão.

Para entender tudo o que aconteceu, o primeiro passo é conhecer o grupo Naoum, antigo dono de diversas usinas de cana, inclusive do terreno que gerou a condenação.

Desde que entrou em recuperação judicial, em 2008, o Naoum se transformou em uma das maiores devedoras do governo federal. Hoje, deve uma sopa de letrinhas que inclui PIS/Cofins, FGTS, INSS e IPI, além de outros impostos e contribuições. A empresa, no total, tem uma dívida de R$ 1,2 bilhão com o governo, de acordo com os cálculos da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, o órgão do Ministério da Fazenda responsável por cobrar quem deve ao governo.

A empresa também deu calote em mais gente, inclusive seus trabalhadores, e foi condenada por apropriação indébita. Ainda responde processo por crime ambiental e milhares de reclamações trabalhistas.

Ao saber de parte dessa dívida, o MST decidiu ocupar o terreno da Naoum em Santa Helena de Goiás. Para a organização, já que os valores devidos pela empresa são maiores do que o valor da terra, o governo federal poderia tomar a área e destiná-la à reforma agrária. Desde 2014, o Incra pode criar assentamentos dessa forma, graças a um acordo entre a Advocacia Geral da União e o finado Ministério do Desenvolvimento Agrário.

Isso quase aconteceu com a terra da Santa Helena. Por um curto período de tempo, ela foi para as mãos do governo federal, quando a justiça de Anápolis determinou que a terra era da União. Mas outro juiz cancelou a decisão e, hoje, a terra é propriedade da empresa.

O MST argumenta que é o seu direito ocupar a terra. Diz que seu objetivo não é roubá-la, mas pressionar para que a justiça e o Incra façam aquilo que já está previsto na lei. “A pressão política causada pelas ocupações é a forma de participação popular do movimento social, e o protesto é a expressão do direito de cidadania, de manifestação do MST”, diz o movimento em sua defesa.

Já o juiz Thiago Brandão Boghi entendeu que a ocupação é, na verdade, um “esbulho possessório” – o nome pomposo para tirar alguma coisa de alguém. Para o juiz, os militantes “uniram esforços com intuito de tomarem para si propriedade alheia e utilizar dela como se sua fosse”.

Por isso, o movimento decidiu manter o acampamento em Santa Helena mesmo após reintegrações de posse. As famílias passaram a ocupar lugares diferentes dentro da fazenda, como costuma ocorrer no movimento. A vida dos agricultores seguiu normal: o MST chegou a plantar milho orgânico na fazenda e, nos tempos áureos, distribuiu mais de 35 mil pamonhas aos moradores da região – um recorde dentro do movimento, contam.

A rotina no acampamento foi interrompida na última reintegração de posse do terreno, marcada pela justiça no dia 16 de março de 2016. As relações do MST com a polícia local costumavam ser amigáveis, e os acordos para aquela quarta-feira não foram diferentes. O movimento combinou de desocupar a fazenda desde que a plantação fosse mantida.

Deu tudo errado.

“Nós falamos para eles: ‘nós sai, mas nós volta para colher’. Aí antes da gente sair da área, o lazarento do Toninho montou uma arapuca para nós”, diz um militante que, por razões de segurança, não será identificado.

O “lazarento do Toninho” é quem toma conta da terra da empresa no dia a dia, o agricultor Márcio Antônio de Oliveira. É ele quem move os processos pela empresa no local, alegando que é o dono da terra.

A confusão começou quando alguns barracos pegaram fogo. Até hoje, o MST e Toninho empurram a responsabilidade de um ao outro pelo incêndio, que fez todo mundo por ali ficar ainda mais nervoso.

Sobrou para um motorista contratado pelo fazendeiro, que estava recolhendo as placas com os nomes dos militantes do MST que dividiam as plantações. Ele foi liberado em seguida, enquanto a sua caminhonete permaneceu com os acampados. No final do dia, o veículo estava na mão do seu dono novamente. Parece um detalhe, mas a caminhonete se tornou o ponto central na condenação de Borges: para a acusação, o militante roubou o veículo do motorista.

Mas o pior ainda estava por vir. Militantes do MST contam que viram um trator de Toninho de longe, jogando glifosato sobre a plantação de milho. O agrotóxico, extremamente venenoso, é usado para matar ervas daninhas. A acusação diz que não havia plantação nenhuma. Os dois lados, no entanto, concordam sobre o que aconteceu depois: revoltados com a destruição de sua lavoura orgânica, os militantes incendiaram o trator.

“Não deu nem tempo dele fechar aqueles braços, o bicho veio quase capotando, e a gente atrás. Quando ele chegou na descida, nós pegamos ele”, lembra um agricultor envolvido.

Para os acusadores, a ação foi premeditada. Para a defesa, foi um ato espontâneo, justificado pela indignação das famílias que iam perder a sua terra. Essa tese também é defendida pelo coronel Mota, antigo comandante da Polícia Militar na região e testemunha de defesa do MST.

No seu depoimento, ele disse que não acredita que alguém tinha domínio sobre o que aconteceu naquele dia. “Ali são pessoas que muitas vezes perderam os valores pela miséria e muitas vezes eles nunca foram alcançados pelo poder público. Então, são pessoas um tanto quanto revoltadas,” disse o PM no seu depoimento.

O Ministério Público, no entanto, defendeu a tese de que o MST é extremamente organizado e de que a ação foi comandada. A referência para a acusação foi a própria página do movimento na Wikipedia. “Obviamente, por ser [um movimento] organizado, há determinações que partem dos líderes para serem observadas e cumpridas pelos demais. Se não houvesse tal hierarquia, não se trataria de uma organização, mas de um movimento totalmente caótico, que jamais conseguiria atingir seus objetivos”, disse o MP na ação.

Misnerovicz  cuidava da sua roça orgânica em Goiânia quando recebeu uma ligação dizendo que o acordo para desocupar a área pacificamente tinha dado problema. Surpreso, foi tentar entender o que acontecia e falar com os militantes.

Ele havia sido o porta-voz do movimento nas negociações com a empresa nas reuniões dos dias anteriores. No acampamento, Misnerovicz tinha estado quatro vezes para visitas pontuais. Embora seja membro do MST há duas décadas, ele nega ser uma liderança do movimento na região.

Não foi o que disse o MP. Por causa da teoria do domínio do fato, segundo a qual um comandante de um crime deve responder como se fosse seu autor, Misnerovicz foi acusado meses depois de ter comandado a ação. A teoria foi a mesma usada pelo Supremo Tribunal Federal para condenar José Dirceu no caso do Mensalão do PT.

Quando se sentou para conversar comigo, Luis Batista Borges limpava seus dedos com um canivete. O pedreiro carrega o instrumento para qualquer lugar que vá desde criança. Ele é analfabeto e sabe que não há nada de ilegal em se portar um canivete – pelo menos na teoria. O artefato de estimação é uma “arma branca” citada na sua condenação.

Borges, Misnerovicz e os outros dois militantes tiveram a prisão preventiva decretada a pedido do Ministério Público. Borges se apresentou à polícia, e Misnerovicz foi preso pouco mais de um mês depois, em Veranópolis, no Rio Grande do Sul. Os outros dois estão foragidos até hoje.

Durante o tempo em que esteve na cadeia, Borges perdeu o pai. Também se sentiu deprimido e tentou se matar. Com a repercussão da sua condenação, começou a receber visitas de políticos na prisão, como a deputada estadual Isaura Lemos, do PCdoB, o que incomodava os outros presos no local. Teve que pedir ao movimento que as visitas parassem, para que ele não tivesse problemas lá dentro.

Os dois militantes conseguiram sair da prisão temporariamente, mas acabaram condenados em primeira instância pelo juiz Thiago Boghi. Agora, aguardam o julgamento de novos recursos em liberdade. Misnerovicz foi sentenciado a seis anos e cinco meses em regime fechado. Borges foi condenado por roubo, com oito anos e oito meses, e por integrar a organização criminosa, com cinco anos e seis meses. O canivete que carrega para limpar as unhas foi uma das provas.

Enquanto os condenados aguardam o desenrolar jurídico, o acampamento se esvazia. “Daqui até a cidade dá cinco quilômetros, aqui era para estar apertado, cheio de gente”, lamenta um militante no local. “Mas aqui nós já colocamos fogo, teve três ônibus de gente detida, dois presos, dois foragidos, sete condenados a um salário mínimo. E não tinha ninguém ganhando terra nessa ocupação! Como é que o povo vai voltar?”

Condenações judiciais são uma estratégia eficiente para desmobilizar completamente um movimento, o que parece ter acontecido por ali. Nos tempos áureos, famílias faziam fila desde as 4h da manhã para se inscrever no acampamento. Hoje, há só três ou quatro inscrições por semana, e 300 famílias ocupam o local, onde já viveram mais de 3 mil.

Quando visitei o acampamento, numa sexta-feira à tarde, estava ainda mais vazio. Os sem-terra me explicaram que muitos fazem bicos na cidade para tentar se manter, e por isso a ocupação é maior no final de semana.

Apesar das poucas pessoas, o local ainda é varrido por roças de dezenas de culturas. De variedades criolas de maracujá até a criação de porcos, há uma produção bastante diversa por ali. Um contraste com o resto daquela região, onde um mar de cana domina a paisagem.

Os agricultores plantam para manter o seu cotidiano em tempos de Jair Bolsonaro, um presidente que, em sua primeira entrevista, disse que “não tem conversa”, com o MST. Em sua primeira semana de governo, Bolsonaro chegou a pedir que todo o processo de reforma agrária fosse interrompido, mas, como é de costume em sua gestão, recuou da decisão no mesmo dia. A relação do governo com o movimento, no entanto, é extremamente hostil. Luiz Antônio Nabhan Garcia, ruralista e secretário de assuntos fundiários, já disse até que quer fechar as escolinhas do MST, classificadas por ele como “fabriquinhas de ditadores”.

No acampamento em Santa Helena, o clima é de incerteza. Eles sabem que podem ser retirados daquela terra em breve, mas ainda fazem planos de longo prazo com a plantação.

Se depender da justiça local, as palavras do presidente devem ecoar nas decisões. Alinhado com o espírito do tempo, Thiago Brandão Boghi citou o então candidato como se fosse um jurista. “Parafraseando o presidenciável Jair Bolsonaro, era só o apenado não roubar, que não iria para o presídio”, diz outra de suas decisões.

Luís Borges diz que não roubou, mas foi preso. Na periferia de uma cidade próxima, Rio Verde, ele aguarda o julgamento dos seus recursos. Calmo, ele conta a sua história sem problemas. E só mostra indignação ao lembrar que a empresa, devedora, continua com sua terra.

“Todos nós aqui nessa terra somos errados de alguma forma. Eu não tenho revolta de ter sido preso, da justiça condenar a mim. Eu tenho, sim, da justiça não ter olhado pelo lado certo, o lado do fraco. Será que ela tá falando a verdade, ou é nós que está mentindo?”

Do The Intercept