Medidas agressivas contra criminalidade colocam direitos civis em perigo

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Sob o título “Uma solução penal que não se coaduna à Constituição”, o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.

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I – UMA PROPOSTA DE APLICAÇÃO DO “PLEA BARGAIN”

Em artigo publicado na Folha, em sua edição de 12 de janeiro de 2019, o advogado Luís Francisco Carvalho Filho disse:

“Repleto de ministros birutas, o governo Bolsonaro, pela voz aparentemente sóbria de Sergio Moro, quer instituir, por reforma legislativa, o chamado ‘plea bargain’, sistema existente na Justiça norte-americana e identificado por muitos como uma fábrica de presos, ainda que inocentes: para evitar vereditos extremos, o réu se declara culpado e ‘negocia’ a pena com o órgão acusador.

A proposta de Moro foi recebida com entusiasmo por juízes e promotores, como medida capaz de conter a criminalidade e desafogar o Judiciário. Mas a negociação da pena faz sentido teórico no sistema judicial caríssimo dos EUA: todo julgamento é realizado pelo júri, marcado pela oralidade e pelos rituais que o cinema difunde.”

O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini também manifestou sua preocupação, em artigo na revista Época.

“Se a ideia é enfrentar a morosidade, há outros meios”, observa Bottini.

“Tais instrumentos, largamente usados pelo juiz Sergio Moro na Lava Jato, poderiam ser incentivados pelo ministro Sergio Moro no Executivo, como intercâmbio de experiências e convênios com o Poder Judiciário. Parte do problema seria resolvido sem os riscos do ‘plea bargain’”, diz o advogado.

Não se trata de transação penal, instituto incluído na legislação constante dos Juizados Especiais Criminais, mas de “plea bargain”.

II – AS DISTINÇÕES ENTRE O “PLEA BARGAINING” E A TRANSAÇÃO

Lembra-se as lições de Ada Pellegrini Grinover, que traz diferenças entre a transação e o “plea bargaining” (“Direito intertemporal e âmbito de incidência dos Juizados Especiais Criminais”, Boletim do IBCCrim, São Paulo, 35:4, novembro, 1995). São elas:

a) no “plea bargaining” vigora inteiramente o princípio da oportunidade da ação penal pública, enquanto na transação o Ministério Público não pode exercê-lo integralmente;

b) havendo concurso de crimes no instituto alienígena, o Ministério Público pode excluir da acusação algum ou alguns delitos, o que não ocorre na transação penal;

c) no “plea bargaining” o Ministério Público e a defesa podem transacionar de forma ampla sobre a conduta, fatos, adequação típica e pena;

d) o “plea bargaining” é aplicável a qualquer delito, ao contrário do que ocorre com a transação;

e) no “plea barganing” o acordo pode ser feito fora da audiência; na transação, em audiência.

Por sua vez, no “guilty plea” não há transação, concordando o réu com a acusação. A defesa admite a imputação, com julgamento imediato e sem processo.

III – O “PLEA BARGAINING” E SEU PROCEDIMENTO

Fala-se que o instituto do “plea bargaining” é forma de negociação entre a pessoa indiciada por uma ofensa e o promotor do caso. É forma de justiça negociada em que o promotor oferece a oportunidade de uma sanção menor e mesmo que aquele caso seja levado ao tribunal do júri(Trial), onde haveria, via de regra, uma incerteza e um grau maior de dificuldade para se comprovar a inocência do indivíduo.

Aliás, nos Estados Unidos, o promotor pode, como resposta ao acordo, desistir de propor a actio.

Este sistema de “plea bargaining”, que nada mais é que uma negociação entre as partes para obtenção de uma declaração de culpa em troca de determinadas vantagens, é o resultado de fatores muito complexos, profundamente enraizados na dinâmica social do povo americano, como acentua Márcio Franklin Nogueira (“Transação Penal”, pág. 71), a partir das lições de Nocolás Rodriguez Garcia.

O procedimento do “plea bargaining” existe no direito norte-americano desde épocas mais romotas, mas de forma relativamente clandestina, no início sem aprovação legislativa ou dos tribunais.

Até o ano de 1960, a Suprema Corte não reconhecia o procedimento. A partir daí, tanto a Corte como o Congresso tomaram medidas para regulamentar o procedimento das declarações de culpa, objetivando reforçar sua viabilidade e imparcialidade.

Nos Estados Unidos, que tem 51 diferentes sistemas de Justiça Criminal, os procedimentos aplicados pelos Estados que compõem a federação em nível federal, o sistema do “plea bargaining” está regulamentado pelo artigo 11 das Regras Federais do Procedimento Criminal.

Assim, quando alguém é acusado de um delito realiza-se uma audiência prévia, ocasião em que ele –acusado– comparece perante o juiz. Neste momento é oficialmente informado da acusação que lhe é feita, recebendo uma cópia da peça acusatória. O juiz, após ter a acusação convida o acusado a se manifestar (“pleading”).

O acusado pode recorrer a três “pleas”: a) declarar-se inocente (“plea of not guilty”); b) declarar-se culpado (“plea of guilty”); c) declarar o “nolo contendere”, como explicou Harry I Subin (The Georgetown Law Jornal, 87/1.466).

Declarando-se inocente, tem início o processo penal, com a escolha dos jurados. Saliente-se que na maior parte dos casos (excetuados os crimes de morte) pode o acusado renunciar a seu direito de ser julgado por jurados, optando por um juiz imparcial.

Declarando-se culpado (“plea of guilty”), o juiz, depois de verificar que a declaração foi produzida livre e conscientemente, fixa data para a sentença, ocasião em que se decidirá a respeito da pena a ser imposta.

Na terceira hipótese o acusado declara o “nolo contendere”, isto é, que se não opõe a acusação (“I will not contest it”). O acusado renuncia ao direito de se opor ou discutir as acusações que lhe são feitas, mas não se reconhece formalmente culpado.

Trata-se de um artifício pelo qual o acusado manifesta sua vontade de que “não quer contestar”. É uma admissão dos fatos contidos no “indictment” ou na “information”, mas não é uma admissão de culpa. A admissão dos fatos não os converte em fatos certos. Aí a diferença com a “plea of guilty”, sendo que com ela o acusado se reserva expressamente o direito de apelar, não podendo esta “plea” ser levada em conta em processos posteriores que lhe sejam movidos.

Assente-se que as negociações de culpa devem se dar exclusivamente entre o promotor e a defesa. Não é permitido qualquer envolvimento da Corte nesta fase, como salientou Márcio Franklin Nogueira (obra citada, 2003, pág. 74).

Outrossim, para incentivar as declarações negociadas de culpabilidade, a Regra Federal de n. 11 estabelece que nenhum dos fatos que são objeto da declaração de culpa nem qualquer declaração feita durante este procedimento podem ser usados em qualquer outro processo civil ou criminal.

A decisão final pela aceitação ou não da declaração de culpa, com imposição de uma sentença condenatória, pertence à Corte. Por isso, todo e qualquer acordo celebrado entre as partes tem sua validade condicionada à aprovação da Corte.

Das negociações, ainda conforme ensinou Márcio Franklin Nogueira (obra citada, pág. 75), podem resultar dois tipos diferentes de “plea bargaining”.

O primeiro, conhecido como “sentence bargaining”, implica uma recomendação, por parte do promotor, no sentido de uma sentença “light” por acusações específicas, em troca da declaração de culpa do acusado e de não contestar a acusação.

O segundo, conhecido como “charge bargaining”, implica um acordo pelo qual o promotor suprime alguma ou algumas das acusações, ou reduz a acusação a uma menos grave, em troca da declaração de culpa do acusado, como exprimiram Paul Bergmann e Sara Berman Barret (“The Criminal Law Handbook”, pág. 20, 33).

Diverso é o “plea of guilty”, que implica uma confissão de culpa, denotando a renúncia a três direitos constitucionais assegurados no Direito norte-americano: a) o de não testemunhas contra o próprio; b) o de inquirir as testemunhas que o acusam; c) o de ser julgado por um corpo de jurados.

Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não é possível impor à transação penal, prevista na Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/1995), os efeitos próprios de sentença penal condenatória. Prevaleceu o entendimento do relator, ministro Teori Zavascki, de que as consequências jurídicas extrapenais previstas no artigo 91 do Código Penal (CP), como a perda ou confisco de bens utilizados na prática de crimes, só podem ocorrer automaticamente como efeito acessório direto de condenação penal, nunca em sentença de transação penal, de conteúdo homologatório, na qual não há formação de culpa.

Segundo o relator, apenas em caso de aceitação pelo beneficiário é que essas sanções poderão constar do acordo.

O “plea bargaining” em muito se distancia da condenação penal e não pode ter seus efeitos antecipados dessa última.

IV – AS CRÍTICAS AO INSTITUTO

Disse André Luiz Calllegari, em artigo no site Consultor Jurídico (“A injustiça do modelo americano de plea bargain”):

“É fato que nos Estados Unidos a severidade das penas é alta e o período de encarceramento é de cinco a dez vezes maior do que na França ou na Alemanha por casos similares. Além disso, alguns estados americanos adotam a regra do “three strikes”, na qual o sujeito que comete o terceiro delito pode ter prisão perpétua (um castigo especial para a reincidência não necessariamente pelo mesmo crime). Isso para demonstrar que a importação de um modelo traz regras implícitas não ditas por seus defensores. Num sistema prisional falido como o nosso, é fato que teríamos um colapso na administração carcerária, aliás, fato esse que já existe.

Sobre o sistema propriamente dito de negociar a pena, é a própria doutrina local que o critica, pois refere que o sistema de justiça penal não poderia sobreviver se a maioria dos acusados exigissem um processo para provar a sua culpa além da dúvida razoável, porque muitas das politicas e práticas americanas –-incluindo grande parte do Direito Penal substantivo-– estão desenhadas para facilitar a negociação da pena induzindo aos processados a renunciar ao processo e admitir a sua culpa. Por esse mecanismo se conseguiu o efeito esperado: aproximadamente 95 de cada 100 casos decididos foram por admissão de culpa.”

É um sistema perigoso que se quer implantar no Brasil que não se coaduna aos direitos e garantias individuais e serve para açodar de forma cruel o sistema persecutório no país.

Fica nítido que o atual governo flerta com medidas agressivas no chamado “combate à criminalidade” que deixam em risco direitos e garantias individuais.

Da FSP