O erro de Bolsonaro é acreditar no próprio personagem

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Leia a coluna de Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista e professor-titular do Instituto de Psicologia da USP; autor de “Reinvenção da Intimidade: Políticas do Sofrimento Cotidiano” (editora Ubu).

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O voo do herói

Qualquer político eleito precisa realizar um pouso gradual, descendo das nuvens das promessas de campanha para o chão da política real. Suas primeiras comunicações dão o tom do ajuste de contas com perdedores e ganhadores, assim como suas decisões inaugurais sinalizam como o poder será exercido doravante.

Neste céu de brigadeiro, os primeiros dias do governo Bolsonaro são uma mistura entre pouso forçado e arremetida furiosa. Bombardeio cego sobre a imprensa, Jerusalém e Mais Médicos deixam vítimas por toda parte. Ministros da barbárie com suas acrobacias aéreas em torno de globalização cristã, antiambientalismo, anti-imigração e limpeza étnica dos inimigos do Estado criam uma sombra ideológica contra a ciência e a história do país.

Flexibilizar a posse de armas é uma síntese dessa imprevidência. A maioria da população é contra, facilita o trabalho das facções criminosas, aumenta a violência doméstica e o risco de suicídios, sem ser eficaz como autoproteção. Mas deixa um lindo rastro de fumaça no céu …

Agora que nosso Sargento de Milícias foi promovido a Capitão do Ar, quem paga a conta de sua inconsequência discursiva somos todos nós. Sergio Moro na Justiça mobiliza alto capital simbólico e moral, mas levanta a suspeita sobre seu comportamento pregresso como magistrado. Vem o teste de realidade. O primogênito delfim pede “passe livre” para Queiroz e “chiniqueiro livre” para si.

Moro se atola em morosidade. O desperdício de capital político cresce a cada recuo, a cada arremetida, a cada depósito mal explicado. Criar um mito sobre si mesmo não é um problema, desde que você não acredite nele, nem boicote seu personagem.

Quem tem obrigado o pouso forçado é, ora Guedes e sua loja de conveniências, ora Mourão e sua esquadrilha da fumaça. O controle aéreo parece estar com os militares neoliberalizados, enquanto nosso herói brinca no seu parque de diversões ideológico. Se a Previdência não incluir os militares, se a reforma tributária e fiscal não acontecer rápido e se a lista de inimigos incluir o perigo vermelho chinês, a tática de negociar diretamente as pautas no Congresso ficará pelo caminho.

Rota alternativa: um novo tipo de nepotismo, com certificação verde-oliva, envolvendo emergência de monopólios e “mamatas familiares” na Previdência e educação.

A decolagem de Bolsonaro é precária porque a tripulação foi convocada de última hora. A complexidade real é substituída por falha moral, fraqueza de caráter ou falta de fé.

Pesquisa do Datafolha mostrou que muitos eleitores do presidente não o apoiam em temas como armamento, estupro, educação sexual e política, desigualdade de renda, leis trabalhistas, ambientalismo, povos indígenas e alinhamento com os EUA.

Muita gente pergunta se realmente faz sentido ver Cristo atrás de uma arma, em cima de uma goiabeira ou desculpando corrupção banal. Talvez os mesmos que perdoaram os excessos do discurso de campanha, acreditando que ele não pudesse estar falando sério. A licença mito-poética, suturada pelo ódio e pelo colchão das fake news, não é infinita.

O hiato entre crenças eleitorais e a extensão dos problemas reais aumenta rapidamente. Enquanto isso, os passageiros torcem para que o herói acorde da metáfora que criou para si mesmo: taokei?

Na psicologia de governo em vigor até aqui, baseada na exploração do medo e da insegurança, a intervenção federal não basta. É preciso um milagre real. A crença de que recuperação de empregos e retomada de investimentos acontecerá assim que soltarmos os cintos de segurança jurídica, trabalhista e estatal, precisa de mais gasolina.

Sem saída de emergência, o dilema destes primeiros dias é descobrir como pousar este Boeing-Embraer, lotado de convicções delirantes, na pista curta e acidentada chamada Brasil. Se é que isso acontecerá antes de o piloto pular de paraquedas.

Da FSP