O verdadeiro inimigo de Bolsonaro é sua agenda moral

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Hoje (3), Fernando Canzian, repórter da Folha, defendeu em coluna que Bolsonaro reúne todas as condições para ser duplamente cruel com as esquerdas. Segundo o texto do colunista, o maior desafio do governo do capitão reformado do Exército será o de encontrar recursos para tapar o rombo de R$ 300 bilhões nas contas públicas. Caso isso ocorra, o ciclo de crescimento da economia tende a ser longo e fortalecer o projeto de poder do atual ocupante da Presidência da República, alijando as esquerdas por muitos anos do poder.

Até aí, a análise é perfeita. Mas, na sequência, Canzian argumenta que o caminho mais rápido para a redução do déficit passa pela redução da máquina pública e que, se esta redução for efetivamente realizada, ela afetaria a base de sustentação sindical da esquerda, reforçando o seu isolamento e o seu enfraquecimento.

Olhando pela economia, o texto de Fernando Canzian é provocativo e coloca na mesa, de fato, os riscos corridos pela esquerda brasileira (não muito diferentes do que ocorre nos EUA e na Europa). Também coloca um cenário de oportunidades para o novo governo que, se aproveitadas, reverterão o quadro de crise sistêmica em nosso modelo de organização econômica.

Todavia, se olharmos na perspectiva de quem tem exercido o papel de fiadores da ordem e da narrativa bolsonarista, veremos que a redução do déficit público enfrentará estamentos de poder, para utilizar um conceito clássico da Sociologia, na administração pública que em nada são simpáticos à esquerda e que acumulam enorme capacidade de pressão e reação político-institucional.

Estou falando dos militares federais, dos policiais, dos juízes e dos integrantes do Ministério Público. Na verdade, o duplo risco para a esquerda identificado pelo colunista também se apresenta, na mesma intensidade, ao governo Bolsonaro. No caso, o maior desafio de Jair Bolsonaro será equilibrar interesses econômicos e corporativos antagônicos sem desequilibrar a sua base de sustentação política e, com isso, retroalimentar o cenário de falta de confiança dos agentes econômicos.

Em um exemplo nítido, as maiores resistências à reforma da previdência, em última instância, virão destas carreiras públicas, que nunca foram base sindical das esquerdas, e cujos benefícios têm um impacto nas contas públicas muito maior do que qualquer outro segmento. A discussão sobre o aumento dos salários e a proibição/recriação do auxílio moradia de juízes segue na mesma direção. A leitura do colunista desconsidera, portanto, que a máquina pública não é homogênea e é perpassada por inúmeras disputas e culturas organizacionais.

Dito de outra forma, o desmonte da máquina, para ter legitimidade social, exigirá, entre outras frentes, um debate transparente sobre eficiência e custo do sistema de justiça e segurança e de manutenção da ordem que talvez o governo Bolsonaro, por suas alianças e opções ideológicas, não queira e/ou não consiga levar adiante.

Ao contrário, se analisarmos as primeiras medidas do novo governo, veremos que a sua estratégia de ação desenhada passa pela aposta dobrada na captura de tais instituições para a guerra cultural que o clã Bolsonaro, Ônix Lorenzoni, Damares Alves, Vélez-Rodrigues e Ernesto Araújo instituíram visando a desconstrução da agenda da quarta onda de direitos fundamentais (onda que deságua no reconhecimento de identidades e no pluralismo democrático), esta sim muito cara aos movimentos sociais e principal eixo de atuação da esquerda até agora (o foco sindical perdeu força faz algum tempo e não é mais a base de sustentação principal da esquerda, a meu ver).

Bolsonaro está fazendo um esforço enorme para anunciar ou se apropriar de medidas que julga de restabelecimento da ordem e da moral sem se dar conta que, no modo pragmático petista de governar, muitas delas ou foram criadas nas gestões petistas ou são consequência da tentativa lulista de compor o tempo todo (assistência jurídica para policiais envolvidos em ocorrências com resultado morte, medida já vigente no Maranhão e na Bahia, redutos da esquerda; sistema prisional lotado em função da lei de drogas aprovada em 2006 durante a gestão Lula e que pode ser vista como uma das responsáveis pelo aprisionamento crescente no país de jovens e pelo fortalecimento das facções criminais; regulamento das Operações de GLO – Garantia da Lei e da Ordem, que mobilizam as Forças Armadas para funções de segurança pública; aprovação da lei que tipifica o terrorismo, entre várias outras medidas que muitos imaginam necessárias de setem postas em prática pelo novo governo mas já em vigor).

O fato é que seu governo está se escudando na agenda moral e ideológica para se blindar dos profundos dilemas econômicos que o país vive; está usando o discurso de ordem para manter o controle da narrativa, evitando que os riscos postos se avolumem. E, para isso, ele precisa do apoio das instituições acima mencionadas. Aliás, narrativa que tem encontrado eco em muitos políticos oriundos das fileiras de tais instituições.

Em suma, eu concordo que as esquerdas vivem um enorme vácuo de liderança e que seus projetos políticos precisam passar por profundas transformações caso queiram reconquistar corações e mentes da população. Os dilemas por elas vividos são intrínsecos a elas próprias e fruto de opções equivocadas quando acreditavam que eram as porta-vozes dos pobres e oprimidos. A ênfase no reconhecimento de direitos, na voz e nas identidades é corretíssima mas precisa vir acompanhada por um projeto de inclusão político amplo o suficiente para ser admirado e desejado pelos milhões de brasileiros e brasileiras órfãos das políticas públicas e reféns do medo e da violência.

A direita soube explorar o medo e venceu. Porém, o que o Fernando Canzian não coloca é que as contradições ideológicas e econômicas do governo de Jair Bolsonaro estão em uma etapa de precário equilíbrio (não à toa simbolizadas nas figuras “indemissíveis” de Sérgio Moro e Paulo Guedes), e que o maior inimigo de sua gestão, no curto prazo, é ele próprio. Identificar os problemas da esquerda é central, mas não podemos minimizar os dilemas do novo governo.

No curto prazo, a esquerda não é o maior inimigo ideológico e econômico do governo Bolsonaro. Sua agenda moral é que pode colocar as oportunidades econômicas em risco real e imediato, por mais que seja ela que, paradoxalmente, o fortaleça e o blinde em um primeiro momento. Que as instituições do sistema de justiça e segurança saibam manter a autonomia e o pensamento estratégico que as têm marcado nos últimos anos.

Da FSP