Rio de Janeiro é um retrato do racismo no Brasil

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Leia a coluna de Arnaldo Bloch

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Rio: 40 graus de racismo

Nos dias de hoje é difícil, para um branco, escrever sobre racismo sem ser acusado de invadir o lugar de fala alheio. Isso inibe testemunhos vitais numa luta que deve ser coletiva, compartilhada, multicultural e multiétnica. Por isso, não me calo. Prefiro assumir o risco a pecar por omissão. Talvez pelo fato de integrar, também, um povo perseguido historicamente.

Foi numa mídia social que li a queixa do cidadão caucasiano sobre a falta de brancos no Arpoador: dizia que os racistas fugiram daquela ponta da praia, que, a seus olhos, hoje é quase 100% negra. Ele terminava o textão dizendo que isso precisava mudar, que os brancos tinham que voltar ao Arpoador para restabelecer o equilíbrio e a convivência entre pares que se querem iguais.

Fiquei pasmo. Primeiro, porque não é verdade. Brancos racistas que tenham fugido daquela praia já foram tarde. O Arpoador, hoje, é, simplesmente, mestiço, democrático. Pretos, brancos, pardos, amarelos, vermelhos, heteros, gays, bi, trans, do Rio, do Brasil, do mundo, se misturam, veem e aplaudem juntos o pôr do sol, banham-se lado a lado naquelas águas, de Deus, de Iara ou do caos.

A impressão que me ficou é de que o sujeito, aparentemente bem intencionado, resvalava, ele sim, num racismo distorcido pelo autoengano: enxergava, na pluralidade, um excesso da diferença. Inconscientemente, ele desejava “embranquecer” o lugar.

A história me voltou quando, após um mergulho no Arpoador, destravei a tranca de minha bicicleta e avistei o homenzarrão muito branco, careca, ao mesmo tempo musculoso e muito barrigudo, caminhando no calçadão a passos gigantes atrás de um homem magro, negro, usando boné. Durante a perseguição, o fortudo berrava, possesso:

— Tu é vagabundo! Abusado! Bandido! Vou te pegar! Vou f&d$%r com a tua vida! Vou levantar tua ficha! Sou bacharel em Direito e faixa-preta de jiu-jítsu! Sou nascido e criado aqui!

— Ué, eu também sou nascido e criado aqui! — reagiu o outro, caminhando num passo atento para evitar a agressão, mas sem partir em fuga.

— É da favela! Bandido! Sou faixa preta!

Uma senhorinha que via tudo estranhou:

— Com esse barrigão? É ruim, hem?

Como muitos, ela andava na direção do evento, que já formava muvuca. Os dois, enfim, ficaram cara a cara. O ultimate fighter chamou o rapaz para sair no braço, punhos fechados, louco para triturá-lo, quando guardas municipais resolveram agir, separando-os.

Montei na bicicleta e pedalei na direção do Leblon. Até que, lá pela altura do Country Club, vi cinco guardas cercarem, na calçada, um outro rapaz. Sim. Negro. Franzino. Que, simplesmente, caminhava. Parei a bike e, a uma distância segura, vigiei o procedimento.

Um dos cinco guardas (por que cinco, se era só um passante?) pediu os documentos do jovem, que apresentou a papelada. O interrogatório durou uns cinco minutos, até liberarem o cidadão. Imaginem se fosse num lugar ermo, sem ninguém olhando.

Ao perceber que eu os observava de perto, um dos guardas me fulminou com a cara amarrada, mas virei o rosto em outra direção e voltei a pedalar. Fiquei pensando: por que ele não me interpelou nem pediu os meus documentos? Que, aliás, eu havia deixado em casa.

Do O Globo