TV pública direcionada à população surda exclui vídeos sobre esquerda e filósofos

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Há pouco mais de duas semanas, uma lista de “programas proibidos” começou a circular entre os funcionários da TV Ines. Mantido com dinheiro do governo federal, o canal na internet exibe programas para a população surda.

A lista apontava programas que deveriam ser retirados do site por abordarem autores “de esquerda”, “socialistas”, de conteúdo “relacionado à ditadura militar” e que de alguma maneira mostravam um olhar crítico, segundo o censor, à religião.

Na limpa ocorrida dos dias seguintes, foram retirados do ar 16 biografias de filósofos e acadêmicos, como Antônio Gramsci, Walter Benjamin e Karl Marx. Nem Emile Durkheim e Stuart Hall foram poupados e foram tachados “de esquerda”.

Friederich Nieztsche foi banido por não ser “muito ligado a valores religiosos”, assim como Jean Jacques Rousseau, “que entendia religião fora da teologia”. Especialista em formação de professores e ex-reitor da Universidade de Lisboa, António Nóvoa também foi vetado por ser de esquerda.

Sobrou ainda para o cineasta Cacá Diegues e o clássico “Bye Bye Brasil”, que assim como o documentário “Uma longa viagem”, de Lúcia Murat, é vinculado à ditadura militar, conforme a lista censora.

Outros programas com conteúdo sobre a população indígena, negra, sobre feminismo e sobre a luta contra a Aids foram retirados do ar.

A limpeza ficou restrita às instalações da TV Ines, no Rio de Janeiro, até a semana passada, quando usuários descobriram que uma entrevista concedida pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) também havia sido limada.

Uma das campeãs de audiência da TV na internet, a entrevista voltou a ser acessada com a notícia de que Wyllys está deixando o Brasil e desistirá do mandato após sofrer ameaças. Os que tentaram acessá-la não a encontraram no site da TV pública. A informação foi antecipada pelo jornal O Globo.

A TV Ines é mantida com um orçamento de cerca de R$ 10 milhões por ano do Ministério da Educação. Neste mês, a pasta passou ao comando de Ricardo Vélez Rodríguez, auto-declarado adversário do que classifica de “marxismo cultural”.

A TV é vinculada ao Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines) e a produção de conteúdo do canal é feita pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, a mesma que produz a TV Escola.

Segundo uma pessoa ligada às instituições, a lista de censura teria sido apenas uma das que foram produzidas pelo diretor-geral da Roquette Pinto, Fernando Veloso, em associação com o diretor de programação, Cláudio Jardim. Ambos negam que tenham confeccionado a lista, mas Veloso admite que a decisão de retirar o conteúdo do ar partiu dos dois.

“Na nossa opinião [o conteúdo] já veiculou demais e não tem porque continuar”, afirmou.

Ele não soube citar, no entanto, algum conteúdo excluído que tratava de autores que não os considerados de esquerda.

O ministro Vélez chegou ao MEC por uma indicação do escritor Olavo de Carvalho, considerado ideólogo do governo Bolsonaro e crítico de um suposto predomínio do pensamento de esquerda na academia.

Apesar da nova cabeça no ministério, tanto a equipe do MEC quanto a direção da Associação Roquette Pinto negam que houve pedido do ministro para as exclusões.

Fernando Veloso disse à Folha que o conteúdo foi retirado do ar antes da virada do ano porque haveria mudança na grade de programação. Essa foi a mesma resposta que a Roquette Pinto encaminhou ao Ines em ofício na terça-feira (29), ante o pedido de explicações do novo diretor do Ines, Paulo André Martins de Bulhões.

“Não tem nada a ver com o MEC nem do governo”, disse Veloso.

Após a repercussão, Cláudio Jardim afirma que os programas produzidos pela TV Ines voltarão ao ar em cerca de dois a três dias e que a retirada ocorreu em razão de mudanças no site para acelerar a velocidade de navegação pelos usuários.

“Quando aumenta o número de ‘views’, precisa de um sistema mais robusto. Por isso, está mexendo na qualidade do site, para ficar mais rápido, para [o usuário] achar o programa com mais rapidez”, disse. “Não se retirou nada por censura”.

Veloso e Jardim sustentam que é prática comum tirar do ar materiais do acervo quando há mudança na grade de programação. Mas isso não é confirmado por pessoas ouvidas pela reportagem.

A programação muda, mas o acervo é mantido disponível para consulta.

A educadora Monica Gardelli Franco, ex-diretora-geral da Associação Roquette Pinto, diz que isso jamais ocorria no passado.

“A não ser que houvesse problema técnico ou materiais com alguma licença específica”, diz. A série de perfis de pensadores e filósofos que saíram do ar são produções da TV Ines.

Franco explica que toda a programação da TV Ines é pensada em cima de um currículo.

“Embora não seja uma TV educativa, tem uma proposta de produção que possibilite a ampliação do repertório da população surda”, diz ela, atual superintendente do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária).

“Uma das queixas dessa população é que há dificuldade de compreenderem o que está acontecendo no campo da informação jornalística porque falta repertório para entender. O desafio sempre foi levar o máximo de conteúdo de toda ordem.”

A queixa da população surda está ancorada na baixa oferta de conteúdo traduzido para Libras (Língua Brasileira de Sinais). Também há deficiências no sistema educacional para acesso e permanência de estudantes surdos.

Em nota, o Ministério da Educação informou que o Ines abriu sindicância para obter informações relacionadas à retirada, sem autorização, de alguns vídeos. Os materiais, segundo a nota, seriam reinseridos no site. Reforçou, ainda, que a decisão não teve participação do ministro da Educação.

O ministério diz, no entanto, que apuração preliminar aponta que os vídeos foram retirados em abril e em novembro do ano passado, ainda no governo anterior.

A nota do ministério critica o jornalista de O Globo Ancelmo Gois, que noticiou o caso primeiramente. Afirma que o ministro Vélez se recusa a “adotar métodos de manipulação da informação, desaparecimento de pessoas e de objetos que eram próprios de organizações como a KGB”, o serviço secreto da antiga União Soviética. Diz ainda que Góis “foi treinado em marxismo e leninismo” pelo Partido Comunista Soviético.

A TV Ines encaminhou nota afirmando que “faz parte do dia a dia do canal a saída de conteúdo e entrada de novos”. “Esses ajustes são necessários, para o rodízio da programação.”

Da FSP