Cientista político diz que, com Bolsonaro, BR teve retrocesso do ponto de vista civilizatório

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Ainda que seja cedo para julgar se as instituições democráticas brasileiras estão em risco, já é possível afirmar que houve, após as eleições de 2018, um retrocesso do ponto de vista do “salto civilizatório” que havia ocorrido no país.

Essa foi a avaliação do cientista político Carlos Melo à pergunta que intitula o livro “Democracia em Risco?” (Ed. Companhia das Letras; R$ 55; 328 págs.), coletânea lançada em janeiro com ensaios de 24 acadêmicos sobre as reviravoltas da política brasileira e as perspectivas do novo governo.

“Houve um período em que pensamos ‘agora vai’, e de fato os governos cumpriram uma agenda, o país ia em uma direção interessante, e não só na economia. Discutimos pautas muito importantes”, disse Melo durante debate organizado pela Folha e pela Companhia das Letras com autores da obra na última quinta-feira (21).

“O que se discute hoje é terrível, coisas bizarras do ponto de vista civilizatório. Houve [retrocesso] mais nesse sentido do que efetivamente em relação às instituições democráticas, que ainda precisam ser testadas.”

O professor do Insper e autor de um dos ensaios diz não saber se as instituições correm risco em relação à democracia, mas “há um aspecto em relação a direitos e liberdades em que houve retrocesso”.

Já para o cientista político André Singer, que também participou do evento, a democracia brasileira já não é uma democracia plena, e corre risco de caminhar na direção de um regime autoritário.

Isso porque, segundo ele, o país é governado por um presidente frágil, tutelado por militares sem uma agenda clara.“A democracia está em risco. Para que não estivesse, era preciso que o campo popular tivesse as mesmas condições de disputar a eleição que o campo da classe média”, afirmou Singer.

Ele avalia que isso não aconteceu porque o ex-presidente Lula está preso. “Isso desequilibra [o sistema]”, disse Singer, que é professor de ciência política da USP e colunista da Folha. “E quem ganhou foi o anti-Lula, já que um dos lados se radicalizou [para a direita].”

Para ele, apesar desse desequilíbrio, se o calendário eleitoral continuar a ser respeitado, se houver liberdade de expressão, e as eleições forem confiáveis, uma parte importante da democracia ainda será preservada. “Por isso vale a pena continuar apostando nela.”

O professor de sociologia da USP Gustavo Venturi, que escreveu com Singer um dos ensaios que compõem a obra, avalia que, de no plano formal institucional, não há risco iminente. “Mas outra coisa é o desenrolar desse governo, que tem um núcleo militar muito forte e articulado. É necessário observar de que maneira os desdobramentos disso no cotidiano e nas instituições podem ir minando a democracia.”

Na avaliação de Esther Solano, professora de relações internacionais da Unifesp que também esteve no evento, a estrutura social brasileira, racista e desigual, já é incompatível com os valores da democracia. “Nós, brancos de classe média, não percebemos que vivemos em uma sociedade que não é democrática para milhões de brasileiros.”

“Parece que nos últimos anos houve uma fragilização democrática institucional, com o impeachment e o enlouquecimento do poder Judiciário com a Lava Jato”, completou a professora. “Talvez o que esteja acontecendo hoje seja um alargamento dessa não-democracia para uma parcela da população que estava acostumada a usufruir dela.”

Em seu artigo, Carlos Melo trata da eleição de Bolsonaro como uma “marcha à insensatez”, que teria resultado na volta de uma direita reativa que sempre existiu no país. De acordo com ele, essa ala, que esteve presente de formas diversas em outros momentos da história, seja com o movimento integralista ou o malufismo, por exemplo, não encontrava representação há muito tempo.

“O PSDB nunca foi isso. Até que chegou Bolsonaro, com um discurso mais duro, favorecido por uma onda de conservadorismo, e se estabeleceu”, afirmou.

“Houve uma radicalização da classe média à direita, e por isso o PSDB foi o principal prejudicado, perdendo a base do eleitorado dele. Mas a base lulista não foi”, disse Singer, cujo ensaio relativiza a ideia de que o deslocamento dos setores populares para a direita seria um realinhamento permanente.

Singer afirma que, Embora o lulismo tenha saído obviamente derrotado nas eleições, sua base principal se manteve. “Não houve uma adesão a teses de extrema direita”, disse.

De acordo com ele, isso aconteceu por uma mistura de fatores, como o desencanto com a política econômica de Dilma Rousseff e o fato de Lula, que está preso em Curitiba, não ter sido o candidato do PT. “Há uma certa parcela de eleitores que votaria no Lula, mas não em quem ele indicou – o que já não deu certo no passado.”

Se essa mudança será definitiva ou não, dependerá do sucesso do novo governo. “Essas pessoas querem emprego, segurança, saúde e educação. Se Bolsonaro não entregar, terá dificuldade nas eleições municipais de 2020, para não dizer as gerais de 2022”, disse. “Por isso achamos que o fenômeno não é profundo, olhando pelo ângulo eleitoral.”

Para Carlos Melo, a guinada da classe média para a direita também não significa necessariamente um movimento permanente. “Essa classe média tem que ser relativizada, ela não está toda contra o campo popular. Na pior das hipóteses é um campo em disputa, e que tem que ser disputado.”

Há também uma parcela de culpa da esquerda nesse processo, disse Melo. Para ele, a partir do momento em que chegou ao poder, a esquerda deixou de se preocupar em promover mudanças estruturais e ignorou anseios legítimos da população, alimentando o sentimento de “nós contra eles”.

“Houve uma incompreensão em relação às manifestações de 2013, por exemplo. Havia uma crítica ali que precisava ser compreendida, mas foi vista pela esquerda que estava no poder como o descontentamento da classe média com os avanços dos últimos anos. Foi arrogante, um erro brutal que levou à intolerância.”

André Singer reconhece erros cometidos pela esquerda, como a política econômica neoliberal adotada por Dilma, mas disse não enxergar qualquer responsabilidade do campo popular ou da esquerda na divisão do Brasil. “A ideia de que o PT tenha dividido o país é uma mitologia que a direita criou. Houve uma radicalização de direita.”

Nesse sentido, a esquerda, em especial o PT, peca ao não adotar um discurso para classe média, disse Esther Solano. “Se há um antipetismo entre esse grupo, precisamos entender como ele se elabora para podermos conversar com eles. A classe média tem poder de criação de discurso na opinião pública.”

O debate, mediado pela jornalista da Folha Úrsula Passos, aconteceu no auditório da livraria Martins Fontes da avenida Paulista, em São Paulo.

Da FSP