O homem comum tenta esconder a fragilidade que o faz humano

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Leia a coluna de Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidade”. É doutora em psicologia pela USP.

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Homens e outros mal-entendidos

Meu pai era um homem dos anos 1950, não homofóbico, que costumava dizer: “Fulano é tão gentil e educado que até parece uma moça”. A frase simpática e bem intencionada esconde, no entanto, um erro crasso. Um dos equívocos no reconhecimento de um modelo viril não violento é a ideia de que um cara legal é feminino. Isso equivale a dizer que uma mulher num cargo de liderança é competente por ter traços masculinos. As mulheres não perdoam esse tipo de comparação misógina, pois querem ver reconhecida a potência feminina. Elogiar os homens a partir da paleta de qualidades “femininas” tem sido recorrente e incorre no mesmo engano.

Homens e mulheres podem ser fortes, generosos, altruístas, parceiros, leais, líderes, gentis, emotivos, sem que tenham que mudar de gênero ou sexo para isso.

Muitos ainda acreditam que só as mulheres têm a ganhar lutando por liberdade e pelo fim da desigualdade, enquanto os homens só teriam a perder. No entanto, a luta por uma sociedade mais humana e igualitária jamais poderia ser ruim para qualquer cidadão que queira viver em paz. Os homens ficaram para trás em relação a conscientização das mulheres porque foram criados para agir primeiro e pensar depois, para não compartilhar suas experiências afetivas entre si, dificultando as relações fraternas.

A revista Cult acabou de lançar um dossiê sobre o tema, o qual tive o prazer de debater. Nesse dossiê encontramos uma miríade de experiências da masculinidade: negra, periférica, homossexual, transexual. Os artigos trazem discussões importantes sobre a fantasia de um modelo de virilidade, que assombra os homens e cuja busca incessante cria violências. Oprimidos por um ideal supostamente alcançável –branco, rico, saudável, heterossexual, do hemisfério norte— o homem comum tenta esconder a fragilidade que o faz humano. Como todo modelo onipotente que acaba por levar à impotência, a violência aparece como resposta à dura realidade de que não existem mitos, apenas seres humanos.

A masculinidade tem sido erroneamente associada à violência, estupro e feminicídio. É preocupante confundir masculinidade tóxica com a masculinidade em geral. Não podemos confundir masculinidade com machismo, patriarcalismo, racismo ou colonialismo. Esse ideal masculino danoso se refere ao mito ariano, que serve de inspiração para o nazismo e para o fascismo.

Susana Muszkat, uma das autoras do dossiê, que trabalhou durante dez anos com homens que haviam cometido violência contra mulheres, retira dessa experiência o fato de que é por se sentirem ameaçados por um “desamparo identitário” que homens acabam por se afirmar violentamente. Livrá-los desse imperativo, que gera a barbárie, é fundamental.

E os pais? Recentemente tive o prazer de ouvir o relato de Tiago Queiroz, pai blogueiro com um bebê de dois meses, sobre “colo de pai”. Quando sua bebê está no colo da mãe, fica dando cabeçadas à procura do peito. Quando está no colo dele, ela sossega, conformada de que ali é só colo mesmo, e dos bons. Nesse singelo relato, mais do que tentar adivinhar o que se passa na cabeça de um recém-nascido, trata-se de ouvir como esse homem se apodera de sua paternidade sem ter que ser “quase uma mãe” ou “um pãe”. Essas comparações podem soar inofensivas, mas revelam nossa dificuldade de entender como as qualidades humanas não são divisíveis entre as cores azul e rosa.

O feminismo não existe sem os homens, mas os homens não precisam ser nem femininos, nem super-homens. O desamparo humano compete a todos nós.

Da FSP