STF lava a alma do país votando contra a LGBTIfobia

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O Supremo Tribunal Federal (STF) lavou a alma da nação no mês de fevereiro de 2019, quando foram proferidos os primeiros quatro votos sobre a criminalização da LGBTIfobia no Brasil. Qualquer pessoa que queira falar sobre o assunto, precisa ter conhecimento do teor desses magníficos votos que sistematizaram uma história de luta de muitas pessoas e instituições.

Dandaras, Alexandre Ivos, Renildos, Rayssas, Kellys, Marias… Todos devem estar se perguntando, do além, por que isso não aconteceu anos atrás.  Vou explicar a importância desses votos e dessa decisão, a partir da minha vivência.

Como ativista e militante pelos direitos humanos da comunidade LGBTI+, acompanhei todo o processo desde a impetração do Mandado de Injunção 4733, em 2012, e agora estive presente durante toda a votação no STF.

Sou Toni Reis, tenho 54 anos e me dedico desde os 19 anos à promoção e defesa do respeito à comunidade LGBTI+. Sou formado em Letras pela UFPR e em Pedagogia pela Uninter. Sou especialista em Sexualidade Humana pela UTP e especialista em Dinâmica dos Grupos pela SBDG. Sou mestre em Filosofia pela UGF, com dissertação na área de sexualidade e ética, doutor em Educação pela UDE/UFU, com tese sobre LGBTIfobia na educação. Tudo comprovado, com diploma. Mas, acima de tudo isso, sou gay, casado há 29 anos com outro homem. Somos pais de dois filhos e uma filha.

Desde tenra idade sempre me percebi “diferente”, mas somente na adolescência, entre os 12 e 14 anos, percebi a dor do preconceito, da discriminação, do estigma e da violência física e psicológica. À época “confessei” para minha mãe, com a minha LGBTIfobia internalizada, que eu era “doente, “pecador” e “anormal”, e pedi-lhe ajuda para sair “dessa”. Daí em diante procurei professores, médicos, psicólogos, padres,  pastores, pais-de-santo, simpatias, na busca idealizada de uma sexualidade “sadia”, heteronormativa e cisgênera. Foi um período da minha vida a que chamo de busca da “cura”. Não encontrando a “cura” (lógico), foi aí que fui em busca de informações, conhecimento e leituras.

Comecei a me preparar para o ativismo LGBTI+ aos 19 anos. Percebi que a LGBTIfobia no Brasil era um problema cultural. Fui buscar outras culturas: morei na Europa (Espanha, Itália, França e Inglaterra), onde encontrei comigo mesmo. Encontrei também o amor da minha vida, o David, com quem estou casado há 29 anos.

Estudei e  estudo. Nós nos organizamos, nos somamos a outras pessoas no trabalho de organização e advocacy nos âmbitos local, nacional e internacional. Foram anos e anos – décadas – batendo nas portas e levando, entre dez respostas, nove nãos e um sim. Com persistência, determinação e foco no objetivo da vida que é ser feliz, chegamos ao Supremo Tribunal Federal. Tudo de forma jurídica, política, acadêmica, organizada e sistematizada. Valeu a pena a luta, porque eu e muitas outras pessoas tivemos que dedicar todo esse tempo e esforço a paradas, entrevistas, reuniões, congressos, encontros, audiências públicas, artigos, ofícios sem fim…

No acompanhamento dos votos no STF eu revivi toda a minha vida. Os três primeiros votos – dos ministros Celso de Mello, Edson Fachin e Alexandre de Moraes – escutei atenta e racionalmente. Mas foi o voto do ministro Luís Roberto Barroso que tocou fundo no meu inconsciente e nas minhas emoções. Revivi as dores e as tristezas. Foram horas de choro, por mim, pela minha família, por muitas mortes, pelas muitas brigas e muitas famílias destruídas, pelos desamores.

“Não escapará a ninguém que tenha olhos de ver e coração de sentir que a comunidade LGBT no Brasil é um grupo vulnerável, vítima de discriminações e violência” (ministro Roberto Barroso); “Para termos dignidade com respeito a diferenças é preciso assentar que a sexualidade possui caráter inerente à dignidade humana” (ministro Edson Fachin); “Apesar de dezenas de projetos de lei, só a discriminação homofóbica e transfóbica permanece sem nenhum tipo de aprovação” (ministro Alexandre de Moraes); “Atos de homofobia e transfobia constituem concretas manifestações de racismo, compreendidas em sua dimensão social, o racismo social” (ministro Celso de Mello).

Pensei comigo: não estou no STF, estou fazendo uma viagem no tempo. Como é importante você lutar por aquilo que é certo, justo e equitativo. Nossa comunidade não quer a exploração sexual infanto-juvenil, não quer a pedofilia, não quer a sexualização precoce das crianças, não quer a destruição da família, não quer fechar as igrejas. Queremos a educação para o respeito a todas as crianças e todos os adolescentes, para que não haja bullying e violência nas escolas; queremos a educação em sexualidade, científica, laica e apropriada para a idade; queremos respeito para todas as composições familiares, queremos a igualdade entre mulheres e homens. Por tudo isso, o que queremos é que a mais alta Corte conclua esse julgamento tão importante.

Como bem disse o ministro Barroso e os outros três ministros, o STF não está legislando, não está usurpando; está, sim, interpretando a Constituição Federal – que é seu papel – e apontando soluções para que sejam consagrados os seus artigos 3º e 5º. Em especial o inciso XLI do artigo 5º: […] “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.

Mais importante que o direito ao casamento civil e à identidade de gênero é vivermos em um mundo civilizado, respeitoso e sem discriminação. Quanto sofrimento, quantas famílias desfeitas, quantas Dandaras mortas, quantas pessoas tristes em suas próprias casas por não poderem ser o que são. Toda família de todas as classes sociais e de todas as religiões tem uma pessoa LGBTI+ – geralmente dentro do armário, porque a LGBTIfobia internalizada é um segredo de cofre difícil de abrir e uma chave perdida num emaranhado de desinformação e preconceitos.

Sobre a situação-problema da comunidade LGBTI+, não vou dissertar aqui. É só fazer uma busca no Google: mortes, assassinatos, discriminação… Faça uma visita também ao site “Quem a homofobia matou hoje”, entre outros.

Aos religiosos, afirmo que não estamos pedindo que nos aceitem, e sim que nos respeitem. Afinal, a interpretação de textos fora de contexto geralmente é pretexto para agir com preconceito. Não é objetivo da comunidade LGBTI+ prender, calar ou cercear a liberdade de expressão na interpretação de Gênese, Levítico, Reis, Paulo… Cada um com a sua “hermenêutica” e a sua “exegese”. Vamos viver e deixar as pessoas viverem. A Suprema Corte Celestial fará o juízo final, ou não.

Sou terrivelmente gay e cristão. Como cristão, sempre aprendi nas classes dominicais que Deus é amor, compreensão e respeito. Li e leio na Bíblia Sagrada 20 vezes que não se pode fazer “acepção” às pessoas. Quem prega o amor poderia pregar o respeito, sem que isso seja “propaganda”, sem que seja um incentivo à promoção de uma orientação sexual e/ou identidade de gênero hétero e cisnormativa.

Para aliviar o tom desta reflexão, um fato pitoresco ocorreu nestes quatro dias no STF. Encontrei-me com o deputado federal, pastor e autointitulado ex-gay, do Avante da Bahia, com a Bíblia na mão. Eu disse a ele, brincando: “O senhor não é um ex-gay, o senhor é um desertor. Volta para o reduto, volta para o vale”. E ele respondeu: “Volta você para o vale. Vou orar para encontrar duas mulheres, uma para você e outra para o David”.

Continuei brincando: “Sou casado há quase 30 anos com meu marido. O senhor vai querer destruir minha família?”. Papo vai, papo vem e o deputado comentou: “Nossa, como o presidente Dias Toffoli é bonitão!”… E riu. Falei: “O senhor não é ex-gay, não está curado”? Ele respondeu: “Sou ex-gay por milagre, mas o milagre é recente”! Colocou à disposição o gabinete dele, no 8º andar do Anexo IV da Câmara. Cada um na sua. Se o pastor está feliz com a sexualidade dele, e eu estou com a minha, o importante é se respeitar e ser feliz. Dialogar e brincar não arranca pedaços.

Os quatro votos foram históricos porque foi feita pelo ministro Celso de Mello – uma recapitulação histórica falando, inclusive, da Terra de Vera Cruz e das leis manuelinas e filipinas, com explicações aprofundadíssimas que pareciam até com uma tese de doutorado. Foram civilizatórios porque o STF deixou registrado para sempre votos que descrevem perfeitamente a situação-problema vivenciada pela comunidade LGBTI+ no Brasil e deram embasamento inquestionável para a solução que deve ser dada, contribuindo para sensibilizar e educar a sociedade para o respeito às diferenças. Foram terapêuticos porque ajudaram a curar algumas cicatrizes e feridas abertas por séculos e séculos de ignorância e preconceito.

O debate não é mais uma questão de teses acadêmicas. Agora, nada mais, nada menos a Suprema Corte do país jogou luz de forma enfática sobre o assunto e pede apenas o respeito. Que as pessoas mal intencionadas que ficam espalhando fake news sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 e sobre o Mandado de Injunção nº 4733 escutem e leiam intensamente os quatro votos já preferidos.

#NãoàPós-verdade! #NãoàsFakeNews!

Segue o baile e bola para frente! STF dando um incentivo à racionalidade, dando um empurrão na história. Para chegarmos ao patamar dos direitos iguais, nem menos, nem mais. Além deste, temos outros temas emergentes no nosso país a serem discutidos: uma reforma justa e igualitária da Previdência; uma educação pública de qualidade; uma saúde decente para todos…  Vamos ser felizes, com ou sem permissão.

Do Congresso em Foco