Comunicação do Exército troca ‘solenidade comemorativa’ por ‘solenidade alusiva’ ao golpe de 64

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O comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, alterou em sua agenda o termo usado para se referir ao evento do qual participará para lembrar o golpe de 31 de março de 1964. Na primeira agenda da semana divulgada na última segunda-feira, consta a presença de Pujol em “Solenidade comemorativa ao Dia 31 Mar 1964”.

Às 14 horas desta quinta-feira, a expressão foi alterada: o comandante do Exército estará em “Solenidade alusiva ao Dia 31 Mar 1964”. A mudança foi confirmada pelo Centro de Comunicação Social do Exército, que atribuiu a troca à necessidade de deixar a expressão mais “adequada” ao que ocorrerá nos comandos e quartéis.

Pujol, a exemplo dos comandantes de Aeronáutica e Marinha, foram oficiados pelo Ministério Público Federal (MPF) no Distrito Federal com uma recomendação para que se abstenham de qualquer tipo de comemoração do golpe de 64. Eles foram alertados sobre a possibilidade de configuração de ato de improbidade administrativa, caso a comemoração seja levada adiante.

O MPF deu prazo de 48 horas para uma explicação sobre a realização dos atos referentes ao aniversário de 55 anos do golpe que implantou por 21 anos uma ditadura militar. Providências devem ser adotadas para que militares subordinados deixem de promover ou fazer parte de qualquer manifestação pública que se configure comemoração ou homenagem.

Punições disciplinares devem ser aplicadas e o MPF deve ser comunicado, caso se identifiquem atos de comemoração do golpe de 64, conforme a recomendação expedida.

Depois da ofensiva do MPF, que incluiu recomendações a comandantes de comandos e quartéis em outras 17 unidades da federação, o comandante do Exército mudou o tom para se referir à solenidade da qual participará nesta sexta-feira, em Brasília.

No Espírito Santo, o MPF ingressou com ação civil pública contra a União, com pedido de liminar que impeça que os comandos das Forças Armadas no Estado façam manifestações públicas para “comemorar, rememorar, homenagear ou fazer apologia ao golpe militar de 1964”. A ação foi ajuizada na Justiça Federal nesta quinta-feira.

A mudança do comandante do Exército vai na linha do que fez o próprio presidente da República. Jair Bolsonaro determinou que os quartéis comemorem o golpe militar, conforme informação repassada à imprensa por seu próprio porta-voz, general Otávio do Rêgo Barros, na última segunda-feira. Barros disse que Bolsonaro determinou que houvesse as “comemorações devidas”. Nesta quinta-feira, o presidente recuou:

— Não foi comemorar. (Foi) rememorar, rever o que está errado, o que está certo e usar isso para o bem do Brasil no futuro.

Os principais atos nos comandos e quartéis estão previstos e mantidos para esta sexta-feira. O Ministério da Defesa e os comandos das Forças fazem uma análise jurídica sobre as recomendações do MPF, mas mantiveram os atos.

Está prevista uma cerimônia, distinta do que era feito em anos anteriores. Os atos devem contar com tropas em forma em quartéis; aviso pelo mestre de cerimônia de que os militares estão ali para relembrar um fato histórico; execução do Hino Nacional; leitura da chamada ordem do dia, que é um texto elaborado pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva; e desfile para encerrar o evento. No Exército, houve quem sugerisse tiros de canhão ao fim da cerimônia, o que acabou descartado por líderes dos comandos militares.

O texto de Azevedo, assinado também pelos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica, fala em “transição para uma democracia” no fim da ditadura, contrariando o tom adotado pelo próprio presidente em relação ao período de regime militar, entre 1964 e 1985.

“Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis”, cita a chamada ordem do dia. “As lições aprendidas com a História foram transformadas em ensinamentos para as novas gerações. Como todo processo histórico, o período que se seguiu experimentou avanços”, prossegue o texto.

“As Forças Armadas participam da história da nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações. O 31 de Março de 1964 foi um episódio simbólico dessa identificação, dando ensejo ao cumprimento da Constituição Federal de 1946, quando o Congresso Nacional, em 2 de abril, declarou a vacância do cargo de presidente da República e realizou, no dia 11, a eleição indireta do presidente Castello Branco, que tomou posse no dia 15”, afirmam ministro e comandantes das Forças no primeiro parágrafo do texto, sem citar a movimentação de militares para derrubar o presidente João Goulart, que precedeu os atos do Congresso.

“Enxergar o Brasil daquela época em perspectiva histórica nos oferece a oportunidade de constatar a verdade e, principalmente, de exercitar o maior ativo humano — a capacidade de aprender.”

Na quarta-feira, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), colegiado que funciona no âmbito da Procuradoria-Geral da República (PGR), divulgou uma nota pública em que diz que “festejar a ditadura é festejar um regime inconstitucional e responsável por graves crimes de violação aos direitos humanos”.

“Essa iniciativa soa como apologia à prática de atrocidades massivas e, portanto, merece repúdio social e político, sem prejuízo de repercussões jurídicas”, diz a nota. Coube à PFDC coordenar a expedição de recomendações a comandantes em pelo menos 18 unidades da federação, para que não comemorem ou homenageiem o golpe de 64.

O colegiado vinculado à PGR lembra que a Comissão Nacional da Verdade foi instituída por lei e seu relatório final, concluído no fim de 2014, é a versão oficial do Estado sobre o que aconteceu nos 21 anos de ditadura militar. “Nenhuma autoridade pública, sem fundamentos sólidos e transparentes, pode investir contra as conclusões da comissão, dado o seu caráter oficial”, diz a nota da PFDC.

Agentes da ditadura mataram ou fizeram desaparecer 434 opositores do regime e 8 mil indígenas, como cita a PFDC. Entre 30 mil e 50 mil pessoas foram presas ilicitamente e torturadas, afirma o colegiado.

“Esses crimes bárbaros (execução sumária, desaparecimento forçado de pessoas, extermínio de povos indígenas, torturas e violações sexuais) foram perpetrados de modo sistemático e como meio de perseguição social. Não foram excessos ou abusos cometidos por alguns insubordinados, mas sim uma política de governo, decidida nos mais altos escalões militares, inclusive com a participação dos presidentes da República.”

De O Globo