Documentos provam que Nathalia Queiroz – assessora de Bolsonaro – nunca pisou na Câmara

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Um crachá parece pouco, mas, para entrar na Câmara dos Deputados, o plástico pendurado no pescoço é essencial. Quem não é funcionário nem credenciado (como os jornalistas, por exemplo) não escapa de um burocrático registro que exige entregar um documento e tirar uma fotografia antes de ganhar o acesso como visitante.

Nathalia Queiroz, segundo Jair Bolsonaro, era funcionária de seu gabinete de deputado federal, mas nunca teve o crachá. Ela também não tinha vaga de garagem no prédio e nem mesmo consta dos registros de visitantes da Câmara, como mostram documentos obtidos com exclusividade pelo Intercept.

Nathália é filha de Fabrício Queiroz, ex-assessor e amigo dos Bolsonaro desde a década de 1980. Ele movimentou milhões de reais, de origem obscura, de dezenas de assessores e ex-assessores do filho do presidente, Flávio Bolsonaro. Queiroz também depositou R$ 24 mil na conta da primeira dama, Michele Bolsonaro.

O caso tem contornos de um esquema de funcionários fantasmas que repassavam integralmente, ou em parte, seus salários a Queiroz, que aparentemente não usufrui desse dinheiro.

Os documentos que mostram que Nathalia jamais pisou na Câmara são fortes indícios de que também ela era funcionária fantasma, no caso, do então deputado federal e hoje presidente da República, Jair Bolsonaro.

Nathalia teve um cargo no gabinete de Bolsonaro entre dezembro de 2016 e outubro de 2018, o que lhe rendia um salário de R$ 10 mil mensais, fora benefícios. O problema é que não há qualquer registro de que ela tenha pisado uma única vez na Câmara dos Deputados durante esse período.

A Procuradoria Geral da República recebeu, esta semana, representações que apontam suspeitas de desvio de dinheiro público e improbidade administrativa cometidos por Jair Bolsonaro justamente na contratação de Nathalia.

Os documentos, obtidos via Lei de Acesso à Informação, confirmaram que Nathalia jamais teve um crachá funcional após consulta ao banco de dados da Polícia Legislativa, responsável por confeccionar as peças. O nome dela tampouco consta do Sistema de Identificação de Visitantes, que registra entrada e saída de quem não trabalha no Poder Legislativo mas faz visitas esporádicas.

Eu também perguntei à Câmara se Nathalia recebeu permissão para estacionar seu carro nas garagens da Casa – algo comum para funcionários. A resposta foi a mesma: não, nunca teve.

Nathalia é citada no relatório do Coaf que identificou as movimentações suspeitas na conta de seu pai na época em que ele era assessor de Flávio Bolsonaro na Assembleia do Rio. Curiosamente, pai e filha foram exonerados de seus cargos no mesmo dia: 15 de outubro de 2018.

Quem já visitou algum dos prédios da Câmara dos Deputados, em Brasília, deve ter reparado na burocracia a que é preciso se submeter antes de entrar.

Eu estou lá toda semana e sei que é impossível circular pelas dependências sem apresentar identificação com foto e nome visíveis a cada uma das inúmeras barreiras de segurança – equipadas, inclusive, com detectores de metais.

Se os dados dos sistemas de pessoal e de segurança da Câmara indicam que Nathalia nunca pisou no gabinete de Jair Bolsonaro nos 22 meses em que supostamente trabalhou nele, então temos um problema, já que em janeiro, o gabinete do ex-deputado Jair Bolsonaro atestou a presença integral dela, sem registro de faltas ou licenças.

Esses indícios se somam a outros já revelados pela imprensa de que, é muito provável, Nathalia era mesmo funcionária-fantasma. Suas redes sociais contêm imagens dela trabalhando como personal trainer no Rio de Janeiro durante o horário comercial. A “assessora” de Bolsonaro, inclusive, atendia a celebridades como Bruna Marquezine e Bruno Gagliasso.

Segundo a Câmara, Nathalia era responsável por “redação de correspondência, discursos e pareceres do parlamentar, atendimento às pessoas encaminhadas ao gabinete, execução de serviços de secretaria e datilográficos, pesquisas, acompanhamento interno e externo de assuntos de interesse do deputado, condução de veículo de propriedade do parlamentar, recebimento e entrega de correspondência, e outras atividades afins inerentes ao respectivo gabinete”.

Seria até possível imaginar que Nathalia trabalhasse para Bolsonaro no Rio de Janeiro, base eleitoral dele, e não em Brasília. Isso é comum e legal. Mas fica difícil acreditar que ela daria conta das atribuições listadas em seu cargo sem estar no gabinete do político. Como poderia fazer “atendimento às pessoas encaminhadas ao gabinete” se jamais pisou no gabinete, por exemplo?

Não se trata da primeira suspeita de que Nathalia Queiroz tinha um cargo público em gabinetes da família Bolsonaro mas não aparecia para trabalhar. Ela também foi nomeada quando Flávio Bolsonaro era deputado estadual no Rio de Janeiro. De alguma forma, ela conseguia estar na Assembleia Legislativa ao mesmo tempo em que dava expediente como atendente numa academia e fazia faculdade de Educação Física.

Nathalia ganhou sua primeira chance aos 18 anos. Era, então, um cargo no gabinete da vice-liderança do PP, partido de Flávio Bolsonaro à época. Hoje, Nathalia tem 29 anos. Nesses 11 anos, a moça nunca deixou de trabalhar para a família Bolsonaro, nem de ser paga com dinheiro público.

Jair Bolsonaro se irritou quando foi questionado sobre Nathalia, em dezembro passado. “Ah, pelo amor de Deus, pergunta para o chefe de gabinete. Eu tenho 15 funcionários comigo”, despistou. Jornalistas fizeram exatamente isso: procuraram Pedro Cesar Nunes Ferreira Marques de Sousa, hoje chefe de gabinete de Bolsonaro no Palácio do Planalto. Mas ele manteve um silêncio sepulcral sobre o assunto.

Nathalia fez várias transferências para a conta do pai no período investigado, entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. Ao todo, somam R$ 84 mil na conta do ex-assessor de Flávio Bolsonaro.

Eleito senador, Flávio era candidato à prefeitura do Rio em 2016, época das movimentações atípicas de Queiroz. Segundo o Coaf, as movimentações financeiras são “incompatíveis com o patrimônio, a atividade econômica ou ocupação profissional” do ex-assessor.

Queiroz disse que as transações se referem à “compra e venda de carros”. Mas nós já mostramos que ele tem apenas dois, um Voyage 2010 e uma Belina 1986. O valor dos dois, juntos, não chega a R$ 25 mil.

Está nas mãos da procuradora-geral Raquel Dodge decidir se abre ou não inquérito para investigar o caso. Bolsonaro não pode ser denunciado por fatos de antes de seu mandato como presidente, mas Dodge pode seguir a tese de que ele pode ser investigado e, se for o caso, denunciado, ao deixar o cargo de presidente.

Procurei a assessoria de imprensa do Palácio do Planalto por e-mail, telefone e celular de plantão na noite de quinta-feira, para ouvir o presidente sobre o caso. Quando receber a resposta, este texto será atualizado. Não consegui contato com o advogado da família Queiroz.

Do The Intercept