Cientista político de Harvard diz que é preocupante depender de militares para manter estabilidade do governo

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O cientista político Yascha Mounk construiu sua carreira estudando um tema que ganha cada vez mais importância no mundo e na academia: o apoio cada vez menor à democracia, e o surgimento de líderes populistas que, em diferentes níveis, à esquerda e à direita, minam instituições democráticas.

Para ele, líderes como Recep Erdogan (Turquia) e Viktor Orbán (Hungria) têm uma característica em comum: estão tentando (ou conseguindo) suprimir características fundamentais do regime democrático, como liberdade de imprensa, justiça independente e respeito a quem pensa diferente.

“Mounk diz que Jair Bolsonaro (PSL) tem semelhanças “impressionantes” com os mandatários da Turquia e da Hungria, e uma grande diferença: o político do PSL “não tem controle completo sobre o sistema político”, o que, segundo ele, “talvez limite sua habilidade de enfraquecê-lo”.

Nascido na Alemanha e filho de pais judeus poloneses, Mounk graduou-se em História em Cambridge (Reino Unido), e cursou o doutorado na Universidade Harvard (EUA). Como cientista político, especializou-se no estudo teórico da democracia: quais são as suas causas; o que caracteriza este regime político; e principalmente, quais são os sinais do seu declínio.

Aos 36 anos, Mounk é às vezes descrito como um “rockstar” da Ciência Política – além do trabalho acadêmico, costuma colaborar com jornais e revistas e mantém um podcast sobre política.

Mounk está no Brasil esta semana para o lançamento da edição em português de seu novo livro, intitulado O Povo Contra a Democracia (Companhia das Letras, R$ 79,90). Fez palestras na Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade de São Paulo (USP) nos últimos dias. Na sexta-feira, esteve no Rio de Janeiro para um evento na Pontifícia Universidade Católica.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista de Mounk à BBC News Brasil:

BBC News Brasil – A ciência política acreditava que, acima de certo nível de renda, era impossível que um país democrático retrocedesse a uma ditadura. Isto acabou?

Yascha Mounk – Nós herdamos essa sabedoria antiga. (…) Era a ideia de que, em certos países, a democracia estava assegurada.

Uma formulação famosa disso era a tese Francis Fukuyama sobre o “fim da história”. Outra menos famosa, mas igualmente importante, era a de um artigo acadêmico escrito nos anos 1990 pelos cientistas políticos Adam Przeworski, um polonês-americano, e por Fernando Limongi, brasileiro. Eles argumentavam que, uma vez que um país tivesse trocado de governo por meio de eleições livres algumas vezes, e tivesse atingido um PIB per capita maior que US$ 4 mil, você não precisava se preocupar mais.

Bom, agora nós temos uma série de casos que contrariam esta observação.

Eu estava na Hungria há cerca de um mês, e observei a forma como as pessoas nas ruas estavam com medo de falar sobre política. Reparei na forma como a mídia local tinha sido cooptada para apoiar o governo de Viktor Orbán. Entrevistei ativistas que descreveram a forma como Orbán capturou o Estado húngaro, e que tornava difícil para eles continuarem com suas atividades. Então nós estamos vendo que esta antiga verdade não se aplica mais.

BBC News Brasil – O Brasil pode estar neste caminho?

Yascha Mounk – Há semelhanças impressionantes entre Bolsonaro e figuras como Viktor Orbán e Recep Erdogan, que basicamente destruíram as democracias de seus países.

Assim como eles, Bolsonaro diz que a fonte de todos os problemas é uma elite política corrupta, que se importa mais consigo mesma do que em resolver os problemas dos “verdadeiros brasileiros”. E, assim como estes outros, Bolsonaro expressa alguma admiração por alternativas autocráticas à democracia – no caso brasileiro, pela ditadura militar. Assim como estes outros, Bolsonaro também não reconhece o papel da imprensa livre, da oposição política e de instituições independentes, como tribunais, como parte legítima do sistema político.

Ele acredita representar “o povo” e, portanto, qualquer pessoa que discorde dele é um traidor, um inimigo do povo. Todas essas coisas me preocupam intensamente.

Também gostaria de enfatizar que, diferente de Erdogan na Turquia e Orbán na Hungria, Bolsonaro não tem controle completo sobre o sistema político. Ele não tem, por exemplo, maioria no Congresso. E isso talvez limite sua habilidade de enfraquecer o sistema político.

Qual será o resultado dessa correlação de forças, nós ainda não sabemos.

BBC News Brasil – Embora o Brasil tenha saído de uma ditadura militar, no governo atual os militares são vistos como uma espécie de contrapeso a uma ala mais ideológica, liderada pelo professor Olavo de Carvalho e por um dos filhos do presidente, Carlos. Os militares mudaram?

Yascha Mounk – Eu não conheço muito bem estes militares que agora fazem parte do governo, para julgar o papel que eles cumpriram no governo até agora.

O que é chocante para mim é o quanto os líderes políticos no Brasil parecem confiar nesses militares como “os únicos adultos da casa”. Não consigo dizer se eles são os únicos adultos do governo ou não.

Mas o que eu posso dizer, como cientista político, é que um país no qual muita gente influente acredita que a última esperança de alguma estabilidade são os militares, este país não está num bom caminho.

Esteja este julgamento correto ou não, só o fato de termos chegado a esse ponto já é bastante preocupante.

Um país como o Brasil, que teve uma ditadura militar há relativamente pouco tempo, deveria tentar manter a distinção entre civis e militares a mais clara possível. Muitas pessoas que não são simpatizantes da ditadura militar agora dizem ‘bom, talvez nós precisemos dos militares para manter as coisas mais ou menos normais’… Bom, isto é um sinal de crise democrática.

BBC News Brasil – Há entre algumas pessoas no Brasil uma percepção de que a Nova República (1988 – atualmente) gerou corrupção sistêmica no governo. A corrupção não é em si um risco para a democracia?

Yascha Mounk – Sim. Em primeiro lugar a corrupção é uma injustiça grave, que rouba da maioria das pessoas em benefício de uns poucos. Então há muitos motivos para ter raiva da corrupção e de seus efeitos no sistema político.

Depois, é claro que a corrupção mina a fé que as pessoas possam ter no sistema democrático. Ela torna muito mais provável que elas queiram destruir o status quo. E em terceiro lugar, há evidências de que o momento em que os esquemas corruptos vêm a público podem criar grandes oportunidades para populistas.

Eu compreendo que os magistrados que descobriram esquemas massivos de corrupção no Brasil nos últimos anos tenham se inspirado na investigação Mani Pulite (Mãos Limpas), na Itália. E eles estavam certos, pois ambas as investigações tiveram sucesso. Mas na Itália, após a Mani Pulite, (Silvio) Berlusconi chegou ao poder. De início com a promessa de combater a corrupção, mas, no fim das contas, a aprofundando.

Talvez também não seja uma surpresa que no Brasil, depois de todos esses escândalos de corrupção virem à tona, depois dos partidos mais moderados do establishment político serem deslegitimados, que isso tenha permitido a ascensão de Jair Bolsonaro. A julgar pelo desempenho dos demais populistas em outros lugares do mundo, ficarei surpreso se ele realmente ajudar a resolver o problema que ele prometeu atacar (da corrupção).

BBC News Brasil – Quais seriam os sinais de alerta para ficar atento em governos populistas, de que estão começando a desmantelar o sistema?

Yascha Mounk – Quando você olha para países como a Hungria ou como a Venezuela, os líderes populistas concentraram o poder em suas mãos através de uma série de medidas legais ou semilegais. E a maioria dessas medidas, quando olhadas isoladamente, poderia ser cabível numa democracia.

É a combinação de todas elas: são regras que garantem que a oposição já não tenha condições de competir efetivamente pelo poder; que a mídia não seja mais livre para se manifestar (que caracterizam o início de um regime autocrático).

Estas são áreas-chave às quais é preciso estar atento.

Ninguém passa uma lei óbvia atribuindo a si mesmo todo o poder. Só um líder populista muito incompetente faria isso.

BBC News Brasil – A maioria dos governantes que você menciona são de direita. E populistas de esquerda?

Yascha Mounk – Quando você olha para a Venezuela, por exemplo, acho que é óbvio que é um país que se tornou uma ditadura violenta, que levou muita gente a passar fome. Tudo como resultado da ascensão de um populista autoritário de esquerda, Hugo Chávez, e de seu sucessor, Nicolás Maduro.

Como cientista político, eu observo este fenômeno de uma forma comparativa. Então, há alguns meses atrás, em parceria com um colega, Jordan Kyle, eu compilei uma base de dados com todos os governos populistas desde 1999.

E o que descobrimos, em primeiro lugar, é que muitas vezes mais provável que um governo populista cause dano às instituições democráticas que um governo que não seja populista.

Mas, em segundo lugar, também concluímos que não há virtualmente nenhuma diferença entre os danos causados por populistas de esquerda e de direita. Então existem sim populistas de esquerda e, como vimos no caso da Venezuela, são muito perigosos.

O que eu chamo de populista é alguém que não reconhece o papel da oposição; que trabalha para minar as normas e as leis básicas do sistema democrático.

Há um outro sentido para o termo “populista”, que historicamente é bastante forte na América Latina, e que tem suas origens em alguns movimentos políticos da metade do século 19 nos Estados Unidos. Nesse outro sentido do termo, populistas são apenas políticos que usam uma retórica inflamada contra os ricos, contra as grandes corporações, e não representam necessariamente um risco para a democracia.

BBC News Brasil – Alguns destes políticos, como Orbán, não eram populistas a princípio. Isto é algo que já estava presente neles ou é uma jogada oportunista?

Yascha Mounk – Há alguns casos em que políticos são atraídos para um comportamento mais populista, de forma oportunista. Talvez o melhor exemplo seja o de políticos que estão sob investigação da Justiça – como (Benjamin) Netanyahu em Israel, ou o primeiro ministro da República Tcheca, Andrej Babiš.

É uma forma muito tentadora de explicar prováveis casos de corrupção.

De forma geral, porém, eu tenho a impressão de que a maioria das pessoas são os heróis das histórias que criam para si mesmas. E que elas realmente acreditam – e isso é muito interessante – elas realmente acreditam estar dizendo a verdade.

Falando de fora (do governo), eu acho que Donald Trump age mais no próprio interesse do que do país. Mas duvido que ele vá dormir todos os dias pensando que está prejudicando o povo americano. Acho que ele realmente pensa que seus interesses e os interesses dos Estados Unidos são sinônimos.

BBC News Brasil – Se você tivesse que resumir o seu novo livro em poucas palavras, o que você diria?

Yascha Mounk – Eu diria que é uma tentativa de entender partidos e políticos populistas, como Jair Bolsonaro num contexto global.

Vários países passaram por fenômenos parecidos. E em cada um desses lugares, as pessoas tendem a explicar o que está acontecendo em termos do seu próprio sistema político, ou do discurso de cada um desses personagens. O que eu tento fazer neste livro é olhar para Bolsonaro, Trump, Recep Erdogan (Turquia) e Hugo Chávez na Venezuela, trazendo os elementos que conectam esses diferentes casos, de forma a entender suas causas e como podemos lutar contra isto.

BBC News Brasil – Por que isto está acontecendo?

Yascha Mounk – Essa é a grande questão. É o que tento abordar neste livro, mas eu te daria três razões de longo prazo, estruturais.

Tem a ver com a frustração das pessoas com o desempenho econômico e a corrupção; com mudanças demográficas e culturais na sociedade, e com a ascensão da internet e das redes sociais.

BBC News Brasil – Que livro o senhor apontaria como fundamental para entender o mundo hoje?

Yascha Mounk – Há vários livros que tentam explicar o mundo hoje em dia. Mas uma das tarefas mais importantes para nós é lembrar os valores básicos que nos guiam no meio desta crise. Um dos livros que traz estes valores de forma mais clara e mais persuasiva, para mim, é On Liberty (A Liberdade, em tradução livre), de John Stuart Mill (publicado em 1859).

Da BBC