Cortes de Bolsonaro evidenciam a intenção de interditar a produção independente

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O Ministério da Cidadania pretende criar um novo fundo de apoio à cultura, concentrando na pasta 20% dos investimentos das estatais brasileiras no setor. Isso equivaleria, conforme dados de 2018, a cerca de 36 milhões de reais.

Segundo fontes do ministério, tal fundo vai servir, teoricamente, para irrigar pequenos e médios projetos artísticos e culturais em diversas regiões do País que atualmente não recebem atenção de investidores privados e do Estado. Acontece que o governo já tem, na lei, um mecanismo para tal tipo de ação: o Fundo Nacional de Cultura.

Até hoje, a decisão das estatais de investir em projetos culturais tem arbítrio interno e passa por refinados processos de seleção e comissões independentes. As triagens levam meses. Sem lastro e carente de credibilidade na classe artística, a atual política governamental para o setor tem grande probabilidade de ser composta e orientada apenas por apaniguados.

Além de acender o alerta do dirigismo cultural e da seleção ideológica, o projeto do governo Bolsonaro é nitidamente a expressão de um neomacarthismo: o Estado tem intenção manifesta de expulsar da política de incentivo os críticos da gestão bolsonarista e, em contrapartida, aliciar apoios dóceis, acríticos, chapas-brancas. Reativar o grande balcão de favores da era Sarney.

Há indicativos claros dessa intenção da Presidência: na semana passada, em uma transmissão pela internet, Bolsonaro jactou-se de ter demitido Teté Bezerra, diretora da Embratur, a empresa estatal de turismo, por ela ter contratado o cantor pernambucano Alceu Valença para cantar em um jantar promocional de 290 mil reais. Alceu, que evitou envolver-se na discussão, é crítico do atual presidente (aliás, como 99,99% da classe artística).

Este mês de abril marca também a primeira investida do governo bolsonarista na legislação de incentivo à cultura, a conhecida Lei Rouanet. Será publicada nos próximos dias uma Instrução Normativa (IN) modificando aspectos da lei. A expectativa em torno dessa mudança é grande e reuniu, no fim de março, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, alguns dos maiores produtores de cultura do País.

Estiveram lá, entre outros, Itaú Cultural, Instituto Tomie Ohtake, Fundação Bienal de São Paulo, Fundação CSN, Sociedade de Cultura Artística, Associação Paulista de Amigos da Arte (APAA), Japan House, Sergio Ajzenberg (representando a BM&A e a Divina Comédia), Joanna Savaglia (da Flupp, Festa Literária das Periferias), Eneida Soler, do Congresso Brasileiro das Entidades Culturais, e o produtor João Candido Portinari (filho do pintor).

Os produtores estão apreensivos porque, segundo informou o ator Odilon Wagner, do Fórum Brasileiro pelos Direitos Culturais (organização de caráter multipartidário, ressaltou), é a primeira vez no período pós-redemocratização que o setor cultural não está sendo ouvido para opinar sobre as questões relativas a um texto que modifica uma lei que lhe diz respeito.

Está tudo concentrado no primeiro escalão do governo, e a Instrução Normativa deve ser editada sem conhecimento prévio de nenhum setor da cultura.

Em reunião com Henrique Pires, Secretário Especial de Cultura do Ministério da Cidadania, em Brasília, produtores explicaram que alguns dos pontos anunciados como passíveis de mudança na legislação não são exequíveis. Por exemplo, a gratuidade, que subiria de 10% para até 40% nos ingressos de espetáculos incentivados pela Lei Rouanet, não será factível, porque já existe uma política de acessibilidade, a Lei da Meia-Entrada, que retira substancial parte da receita dos produtores. “Seria uma quebradeira total, aumenta a dependência do Estado permanentemente”, afirmou um produtor.

Quanto à mudança de tetos, os limites de investimento por projeto, os produtores concordam com o Estado. O governo fala em baixar o atual teto, de 60 milhões, para 10 milhões por projeto. “Esse ponto tem posição favorável do Fórum. Nós achamos que é democrático”, afirmou Wagner. Ele lembrou que, desde a instituição da Lei Rouanet, já foram distribuídos 3,3 bilhões de ingressos e que, portanto, a contrapartida tem sido realizada com sucesso.

O setor cultural espera com ansiedade pelo início das ações do novo governo – ou, ao menos, pelo estabelecimento dos seus princípios. Porque, a priori, nada está funcionando ainda – só há poucos dias o governo formou sua primeira Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, para analisar projetos que pleiteiam recursos incentivados. “O início deste governo foi de desarticulação.

É comum no início, mas este está se especializando”, disse Wagner. O motivo é cristalino: está tudo sendo concentrado na Presidência da República, que desenvolveu uma espécie de fetiche pelo setor – no sentido negativo, obsessivo.

O espírito do retrocesso parece ter contaminado todas as áreas. No setor audiovisual, área muito sensível ao humor de Bolsonaro, as notícias são aterradoras. No último dia 28, o Tribunal de Contas da União determinou em acórdão que a Agência Nacional de Cinema (Ancine) interrompa imediatamente todo o fluxo de investimentos na cadeia audiovisual brasileira.

O tribunal analisou o processo de prestação de contas do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) em uso pela agência e vê possibilidade de irregularidades se ele persistir. A decisão é um baque para o fluxo de produção da indústria nacional, que tem crescido 9% ao ano.

Somente as tevês públicas tiveram 289 projetos aprovados no último dia 28 e estão à espera de recursos neste momento. O TCU afirma que as autoridades do setor “só podem celebrar novos acordos (…) quando dispuserem de condições técnico-financeiro-operacionais para analisar as respectivas prestações de contas”.

A subjetividade do termo “quando” chama atenção: como não fixa um prazo nem condições, o tribunal reserva para si o direito de decidir o momento em que o setor voltará a funcionar.

A Ancine rebateu o TCU dizendo que já aceitou a determinação de um novo modelo de prestação de contas e elevou o rigor e o controle sobre as contas. Também já apresentou um plano de ação ao tribunal, ainda não analisado. A Ancine, que atribui a responsabilidade pelo passivo de contas à gestão anterior, compromete-se a “implementar uma série de medidas que visam dar maior segurança, transparência e celeridade aos processos” e que a cadeia produtiva do cinema é complexa e longa – haveria tempo suficiente para fazer as correções de rumo necessárias sem paralisar o setor e sem prejuízo ao Erário.

“Neste momento é importante que o mercado regulado tenha calma”, diz a nota, interpretando que não houve um “comando direto de interrupção” do TCU.

A Associação dos Servidores da Ancine (Aspac) informou que o quadro vem se agravando desde maio de 2018, quando a entidade foi notificada pelo Tribunal de Contas, e o passivo de processos aumentou significativamente – em junho de 2018, era de 2.935 processos e estima-se que até o fim deste ano seja de 4 mil. Só no ano passado, a agência liberou 1,13 bilhão de reais com a prestação de contas facilitada (a chamada Ancine+Simples, cuja constitucionalidade é questionada pelo tribunal).

Em outra frente de aceleração do vácuo na cultura, o ministro da Economia, Paulo Guedes, promove uma guerra pessoal contra o chamado Sistema S (Sesc, Senai, Sesi, Senac, Sebrae, Senar, Senat, Sest, Sescoop). Ele pretende abocanhar 30% dos recursos do bloco e se movimenta para assumir um orçamento estimado em 18 bilhões de reais. Sesi e Senai estimam que a redução dos recursos representa um corte de 1,1 milhão de vagas e o fechamento de 162 escolas de formação profissional (ao todo, deverão ser eliminadas 498 mil vagas para alunos de ensino básico somente no Sesi).

O efeito Bolsonaro na cultura está se alastrando, impulsionado por notável esforço de alguns governos de interesses simétricos. É o caso de João Doria Jr., do PSDB paulista. Doria e seu secretário de Cultura e Economia Criativa, Sérgio Sá Leitão (de lamentável memória no MinC durante o governo Michel Temer), cortaram 150 milhões de reais no orçamento da secretaria (23% dos recursos), comprometendo as ações mais importantes, como a Osesp, o Theatro São Pedro, a Pinacoteca e as Fábricas de Cultura.

O Projeto Guri chegou a colocar 600 funcionários em aviso prévio, o que levaria praticamente à extinção do programa, com 50 mil crianças e adolescentes atendidos. A repercussão foi tão intensa que Doria recuou, dizendo que vai manter a destinação de 21 milhões.

Enquanto alardeia contenção de despesas, Doria contratou a decoradora Joia Bergamo (a mesma do muro de vidro da USP, que custou 30 milhões de reais e dá prejuízo diário) para uma reforma de quase 2 milhões de reais no Palácio dos Bandeirantes. A decoradora pintou uma mesa de madeira de lei e descaracterizou patrimônio tombado. É uma metáfora do impulso de repaginação da História que move a extrema-direita, do revisionismo ao terrorismo de décor – e de decoro.

Da Carta Capital