Favela de SP sofre com descaso do poder público

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Um eucalipto de mais de 20 metros de comprimento jaz no chão de terra batida na favela da Tribo, na zona norte de São Paulo. Em uma ponta, a raiz para fora do solo aponta para o céu, em meio a escombros. Na outra, um barraco destruído pela queda da árvore, caída há quase um mês.

A ventania da tempestade daquele dia causou um efeito dominó nas árvores na comunidade. A primeira que caiu atingiu outra, que derrubou uma terceira. As quedas arrasaram dez casas. Uma pessoa morreu. Outros barracos foram invadidos pelas águas da chuva e 71 famílias ficaram desabrigadas.

O fato foi no dia 7 de março, quatro dias antes dos temporais que deixaram 14 mortos na Grande São Paulo. Mas passou despercebido na cidade que, no Jardim Damasceno, os barracos perderam para as árvores. O descaso do poder público e as condições geográficas do terreno, em disputa judicial, fazem desse bairro na zona norte da capital um local de risco para os cerca de 4.000 moradores.

A comunidade da Tribo é uma amostra das condições de vida de 11,4 milhões de brasileiros, que, segundo o IBGE, vivem em favelas. Na região metropolitana de São Paulo, são 2,2 milhões de pessoas nessa situação.

​A favela fica em uma pequena parte ocupada de uma área de 461 mil m² de terreno acidentado e íngreme às margens da serra da Cantareira. Vivem ali cerca de mil famílias.

Estão presentes as condições que, conforme o IBGE, definem os “aglomerados subnormais”, as favelas: ocupação sem título de propriedade —o terreno está invadido desde idos da década de 1970—; irregularidade de vias, tamanho e formas dos lotes; e carência de serviços públicos essenciais, como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica e iluminação pública.

“A gente mora assim não é porque gosta, é porque tem necessidade”, diz a vigilante Lucilene C​arvalho Malaquias, 31.

A vulnerabilidade é flagrante nas construções irregulares, aglomeradas em uma área verde de encosta. Além das quedas de árvores, a favela está sujeita a deslizamentos, alagamentos e incêndios, uma vez que há um número considerável de casebres de madeira e a fiação é ilegal, portanto mais sujeita a curtos.

Em 2018, foi o fogo, não a água, que matou moradores. Um incêndio matou um casal e os dois filhos pequenos. “Nessa rua não entra caminhão de lixo. O bombeiro teve que vir por baixo. Tudo fica difícil para a gente lá em cima [do morro], não tem acesso à nada”, disse a líder comunitária Irani da Silva Guedes à Folha, na época. A dificuldade de acesso também foi relembrada agora, na demora do socorro ao homem que morreu, Valter Ferreira Miranda 44.

Na hora da chuva, Valter estava com a mulher, Adriana, e uma de suas netas pequenas em um dos barracos atingidos. Os dois foram internados às pressas, Valter com uma parada cardiorrespiratória. No Twitter, o Corpo de Bombeiros comemorou o sucesso em reverter seu quadro. Internado, Valter, no entanto, morreu horas depois por nova parada, na madrugada. ​​

Vizinha, Lucilene estava em sua casa em meio às árvores na hora da tempestade. “Quando começa a ventar, eles [os eucaliptos] ficam naquele balé clássico”, diz, com um gesto rodando o dedo. “Sempre venta aqui, mas naquele dia estava fora do comum.” Por volta das 15h30, ouviu os eucaliptos caindo sobre os barracos de madeira. “Deu um estrondo. A gente sabe que está caindo mas não sabe a direção. Dá vontade de correr, mas a perna trava”, conta. “A gente se abraçou e ficou falando com Deus”, lembra Lucilene, que mora com dois filhos, de 14 e de 10 anos.

Filho de Valter e Adriana, Clayton, 20, conta que estava na casa de uma irmã —são três filhos e três netas— na hora da queda. “Deu para ver de lá”, diz o rapaz, tímido. Sem casa desde então, dorme na da namorada. “Elas [irmãs, sobrinhas e a mãe] estão todas na Cantídio [avenida próxima à favela]. Não voltam mais.”

Valter era conhecido na Tribo por ser prestativo. Era tido como um homem simples e reservado. “Tudo o que precisasse de manutenção, ele fazia”, diz Lucilene. Parte da árvore foi serrada pela Defesa Civil para manter a passagem que serve de ruela entre os casebres. “Foi muito difícil ver ele passar por aqui desfalecido”, lembra a vizinha.

Em conjunto com a Defesa Civil, a Subprefeitura da Freguesia do Ó/Brasilândia fez a remoção de mais três árvores que apresentaram risco de queda e ameaçam a comunidade. Diversas outras foram marcadas pelos funcionários da prefeitura, mas não há previsão de poda. “Qualquer morador sabe que essa daqui está oca”, diz a líder comunitária Irani, mostrando um eucalipto seco. Em outra área, aponta uma árvore com a raiz aparente, em uma parede de terra escavada. “Essa daqui só precisa de uma chuva [para cair]”.

A gestão Bruno Covas (PSDB) diz que a área é particular, ou seja, de responsabilidade do proprietário, mas que ainda assim fez uma força-tarefa para prevenir novos acidentes.

As 71 famílias desabrigadas com as chuvas foram para a casa de familiares. Passada a tempestade, voltaram.

“A água vai comendo”, diz Irani, apontando a erosão da terra embaixo de uma casa na comunidade. “Quando vê que está assim, a gente tira a pessoa. Depois volta e constrói de novo.”

Apesar da baixa presença do poder público, algumas ações oferecem esperança.

Sem entrar no mérito da disputa pela posse do terreno, a Sabesp está em processo de instalação de 1.100 ligações de água até o fim de abril, para regularizar o fornecimento. Quer incluir esses moradores no seu sistema de cobrança, que será sob a tarifa social de R$ 8,48 para o consumo de até 10 mil litros por mês. Os demais serviços avançam a conta-gotas.

Da FSP