Reverenciado na Alemanha: método Paulo Freire ajuda integração de refugiados

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Alvo de críticas do presidente Jair Bolsonaro, dos filhos dele, de Olavo de Carvalho e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, além de outros membros do governo, o educador brasileiro Paulo Freire ainda inspira pesquisadores europeus e tem seu legado preservado na Alemanha, 22 anos após a sua morte.

Com sedes em Berlim, o Instituto Paulo Freire e a Sociedade Paulo Freire mantêm projetos educacionais na Alemanha e em países da América Latina, guiados pelos ideais do brasileiro de que a educação é um ato político, humanizador e de mudança social.

Também difusora do legado de Freire, a Cooperação Paulo Freire, no norte da Alemanha, se define como uma associação internacional de pessoas guiadas pelas ideias de Freire e que querem seguir o caminho de uma sociedade orientada para o diálogo.

Na Alemanha, o método Paulo Freire também é usado atualmente na integração de refugiados ao país, na orientação de pessoas que trabalham com pacientes com Alzheimer e serviu de inspiração para um modelo de aprendizagem empregado em jardins de infância.

Há, ainda, uma escola primária, na cidade de Parchim, e uma escola profissionalizante em Berlim, que levam o nome do educador brasileiro. E em novembro do passado, o Congresso Paulo Freire reuniu pesquisadores na Universidade de Hamburgo.

“A influência de Paulo Freire na Alemanha é muito grande. Ele é visto como um dos grandes nomes da pedagogia, ao lado de Immanuel Kant, Jean-Jacques Rousseau, Rudolf Steiner e Maria Montessori. Ainda hoje os livros dele são muito usados em universidades, há inúmeros trabalhos universitários que utilizam as obras dele”, afirma o professor Heinz-Peter Gerhardt, doutor em Educação pela Universidade de Frankfurt e professor visitante da Universidade Católica de Macao, na China.

“Até aqui na China se fala em Paulo Freire. Eles têm interesse em saber quem é esse brasileiro que citou Mao Tsé-Tung em seus livros”, diz Gerhardt.

O professor conviveu com o brasileiro em São Paulo e em Genebra e pôde conferir de perto seus ensinamentos. Ainda na faculdade, no começo dos anos 1970 – em meio a uma geração motivada pela ideia de que a mudança não viria dos grandes centros, mas das periferias –, Gerhardt escreveu seu trabalho de conclusão de curso sobre Paulo Freire. Em razão dessa pesquisa, recebeu uma bolsa de estudos da Universidade de Frankfurt e embarcou para o Brasil, onde ficou quatro anos estudando a obra e o método do brasileiro.

“Estive em Angicos, no Rio Grande do Norte, onde ele aplicou, na década de 1960, pela primeira vez seu método de alfabetização”, conta o professor.

Em plena ditadura militar, Gerhardt diz que, como estrangeiro, tinha mais liberdade para pesquisar Freire do que os próprios brasileiros. Ele acabou sendo convidado pela Unesco a escrever o capítulo sobre Paulo Freire na enciclopédia da entidade, que foi traduzida para várias línguas e até hoje está disponível para consultas.

Paulo Freire na prática

Gerhardt destaca que, além do respeito e relevância acadêmica, as visões do educador brasileiro são hoje aplicadas na prática na Alemanha. “Atualmente, há tentativas de utilizar os métodos de Paulo Freire especialmente no ensino do idioma alemão para refugiados”, afirma.

“Parte-se do pressuposto de que todo mundo já passou por uma escola, ‘a escola da vida’, como afirmava Freire. Então, o melhor caminho é verificar o que essas pessoas já sabem e partir desse ponto, utilizando palavras que elas já conhecem, mas não sabem o conceito”, explica.

Segundo Gerhardt, a ideia é investigar o contexto em que vive o refugiado, para que ele precisa utilizar a língua. “É para resolver burocracias? Para arrumar um emprego? Ao ensinar um alemão simplificado, mais prático, as pessoas se sentem motivadas a aprender mais e a evoluir”, explica.

Em Berlim, o Instituto Paulo Freire utiliza, desde 2012, a metodologia do educador brasileiro em um projeto para a integração e ensino da língua alemã para imigrantes no bairro de Moabit. O programa é financiado com recursos do governo alemão.

Uma vez por semana, durante as aulas, crianças de oito a 12 anos de idade de duas escolas realizam atividades durante as quais podem conversar sobre suas experiências e sentimentos.

“No dia a dia da sala de aula, o professor está preocupado em passar os conteúdos formais. Mas, nesse encontro semanal, são propostas atividades multidisciplinares, quando cada aluno pode falar de sua experiência, como era a vida no país natal, como está sendo a vida aqui e ocorre uma troca de ideias, de ensinamentos. Os imigrantes se sentem acolhidos, e as crianças alemãs passam a entender melhor a realidade dos colegas”, diz Gladys Ayllón, doutora em Educação pela Universidade Livre de Berlim, professora da Universidade Católica no Peru e integrante do Instituto Paulo Freire desde 2014.

Ayllón esclarece que não se trata apenas de aprender o idioma alemão, mas de entender a sociedade e aprender a ser crítico e que outra parte fundamental do projeto são as famílias dos alunos.

“Em três meses, as crianças já estão falando alemão. Com os pais, o aprendizado é mais lento. As famílias precisam se sentir acolhidas, entender como funciona o sistema alemão”, explica.

A cada cerca de 15 dias, ocorrem encontros para que os pais também possam compartilhar seus sentimentos e anseios. “Somente quando eles se sentirem confortáveis é que vai ocorrer a integração de fato”, afirma Ayllón.

A terceira frente do projeto é centrada nos professores, que passam por uma capacitação para conhecer ferramentas para conduzir esses encontros.

Outro exemplo do uso dos métodos de Freire na Alemanha atual é na comunicação com pessoas com Alzheimer. Frequentemente, quem cuida de pacientes com a doença têm muitas frustrações, pois não observa avanços no quadro.

“Hoje, alguns institutos de formação já ensinam esses profissionais a ver a situação a partir da realidade do paciente. Se ele se comunica pelo olhar, deve-se tentar corresponder a isso, reagir a isso. Não ter tantas teorias, mas focar a prática, a comunicação entre profissional e paciente”, comenta Gerhardt.

A utilização das ideias de Freire na vida prática alemã não é novidade. No começo da década de 1990, após a reunificação do país, jardins de infância das regiões de Berlim e da antiga Alemanha Oriental utilizaram a linha de pensamento Situationsansatz, de Jürgen Zimmer, que também se inspirou em Freire. No conceito pedagógico, situações-chave da vida do aluno são abordadas e transformadas em objeto de aprendizado.

“O método foi utilizado para reintegrar as crianças, principalmente as da antiga Alemanha Oriental, onde tinha reinado antes a educação em prol da personalidade socialista. Percebeu-se que era necessário observar mais o contexto de onde elas vinham, o estudo da realidade delas, para saber como ensiná-las”, pontua Gerhardt.

Paulo Freire na América Latina

Além de realizar capacitações e programas na América Latina, há cerca de dez anos, o Instituto Paulo Freire em Berlim recebe, também, estagiários de diversos países latino-americanos, que, por vezes, não conhecem o educador brasileiro ou o conhecem superficialmente.

Em julho, por exemplo, um grupo de 30 professores chilenos, financiados pelo Ministério da Educação do Chile, passará um mês em Berlim para estudar o tema integração e visitar alguns jardins de infância onde o Situationsansatz é empregado.

“O que se busca é uma pedagogia crítica, que o aluno saiba entender o contexto em que vive e questioná-lo”, afirma Ayllón.

Para a pesquisadora, as ditaduras latino-americanas do século passado fizeram com que que Freire se tornasse mais conhecido na Europa do que o no próprio continente.

“Não era permitido ter um pensamento crítico, que era justamente o que sempre pregou Paulo Freire”, diz.

Apesar do reconhecimento em outros países, Gerhardt ressalta que, infelizmente, o método de Paulo Freire nunca foi realmente empregado no Brasil.

“Ele estava implantando as ideias dele [no governo de João Goulart], mas daí começou a ditadura militar, ele foi acusado de ser subversivo, foi preso e, depois, exilado, e o Programa Nacional de Alfabetização, é claro, foi interrompido. Nem quando foi secretário da Educação da Prefeitura de São Paulo (1989-1992), na gestão de Luiza Erundina, ele conseguiu implementar o método dele. Ele fez o possível com o que havia disponível”, comenta Gerhardt.

De DW