Defesa de Bolsonaro contra multa ambiental foi feita por funcionários do gabinete de Flávio

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A única lancha da equipe de fiscais do Ibama percorria os entornos das 29 ilhas que formam a Estação Ecológica de Tamoios, na Baía da Ilha Grande, no sul do estado do Rio de Janeiro, num dia do verão de 2012.

Tentava impedir que atividades humanas maculassem a área de proteção ambiental, quando deparou com um barco praticando pesca ilegal na Ilha da Samambaia. Ao ser abordados, os pescadores se recusaram a se identificar. Um deles, no entanto, era conhecido: o então deputado federal Jair Bolsonaro.

O parlamentar alegou que não havia placa indicativa da proibição. Tinha uma vara de pescar na mão. “Eu não tinha arpão nem rede de arrastão. Só estava pescando umas cocorocas”, justificou Bolsonaro à época, em referência a uma espécie de peixe pequeno e abundante na região.

A Baía da Ilha Grande é a mais preservada do Estado. Seus 800 quilômetros quadrados — o equivalente à área territorial de Cingapura — são ricos em biodiversidade Marinha. Possui sete Unidades de Conservação. A Estação Ecológica de Tamoios é a única que abrange o espelho d’água. É uma Unidade de Conservação federal de proteção integral. Representa 6% da área da Baía, onde a atividade humana precisa ser autorizada.

Situada entre Angra dos Reis e Paraty, encravada no Mosaico da Boicana, em plena Mata Atlântica, Tamoios é formada por um conjunto de 29 ilhas, ilhotas, lajes e rochedos e seu entorno marinho. É um paraíso habitado por espécies raras, como o boto-cinza, e peixes de grande porte que atraem a indesejada e proibida caça submarina.

Começava naquele verão uma batalha pessoal de Bolsonaro em favor da pesca em Tamoios. O então parlamentar chegou a recorrer à Justiça para que fosse autorizado a pescar ali. Afirmou que havia 15 mil pescadores na região sendo “humilhados e proibidos de trabalhar”.

Ele foi multado em R$ 10 mil, menos da metade do salário que recebia mensalmente na Câmara dos Deputados. Peixe grande que era, nunca mais se esqueceu do chefe da equipe que o autuou.

O processo do Ibama que trata da multa de R$ 10 mil aplicada a Jair Bolsonaro é um compilado sobre o estilo do político. Investido no papel de presidente da República, Bolsonaro quer agora transformar a área de preservação ambiental na Cancún brasileira, alterando por decreto as regras de conservação, como anunciou no último dia 8.

No decorrer do processo administrativo no Ibama em que tentou se livrar da multa, Bolsonaro distorceu a informação sobre onde estava no dia em que foi flagrado dentro de um bote; pediu investigação do fiscal do órgão por falsa comunicação de crime; e acusou o servidor de prevaricar. A defesa nos autos foi conduzida por três funcionários do gabinete de seu primogênito, Flávio (PSL-RJ), os três remunerados pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e, agora, pelo Senado.

Os assessores de Flávio, deputado estadual por quatro mandatos consecutivos e eleito senador com 4,3 milhões de votos, advogaram pela derrubada da multa aplicada ao chefe do clã. Eles não usaram os serviços de nenhum escritório de advocacia — pelo contrário, forneceram como número de contato o telefone fixo do gabinete de Flávio na Alerj.

Assim fizeram a advogada Lygia Regina de Oliveira Martan, que foi assessora parlamentar do deputado Flávio, e o suboficial da Marinha Juraci Passos dos Reis, que chegou a chefiar o gabinete da liderança do PSL na Alerj. Reis foi nomeado para representar Bolsonaro no processo do Ibama, mas seu nome não aparece no cadastro público de advogados da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O principal defensor no processo é o coronel da Aeronáutica e advogado Miguel Ângelo Braga Grillo, chefe de gabinete de Flávio na Alerj pelo menos desde 2014. Martan, Reis e Grillo foram levados por Flávio para o Senado.

Até o último dia 8, não havia no processo qualquer transferência da defesa a outros advogados, mesmo com a eleição de Bolsonaro para a Presidência da República e com a ida de Flávio ao Senado. A advogada Karina Kufa disse que passou a centralizar a defesa de todos os processos relacionados a Bolsonaro, inclusive o procedimento administrativo no Ibama.

“Desde que o presidente assumiu, os processos estão centralizados em mim. Isso demora muito, estou esperando os subestabelecimentos, que já foram enviados”, afirmou. Kufa foi designada pelo gabinete de Flávio para responder aos questionamentos de ÉPOCA. Ela não soube dizer se houve contrato de remuneração entre Bolsonaro e os três assessores do filho. “Provavelmente o contrato é ad exitum (quando o pagamento é feito após eventual êxito no processo).” Os assessores não responderam se existe contrato de remuneração e se receberam algum pagamento do presidente.

O êxito já ocorreu. Bolsonaro obteve três importantes vitórias no processo, todas elas alcançadas depois de ter sido eleito presidente. Primeiro, o Ibama anulou a multa aplicada, revertendo uma decisão que havia sido tomada na primeira e na segunda instância do órgão. O caso voltou à estaca zero, com a necessidade de que seja praticamente instruído outra vez, mais de sete anos depois do flagrante da infração ambiental.

A segunda vitória foi a constatação pelo próprio Ibama de que o caso pode estar prescrito. Um parecer diz que a prescrição ocorreu há mais de um ano. Um terceiro êxito ocorreu fora dos autos: o Ibama exonerou o servidor José Olímpio Morelli do cargo de chefe do Centro de Operações Aéreas. Morelli foi quem multou Bolsonaro na área de preservação em Angra dos Reis. Funcionário público por 17 anos, ele afirmou, em entrevista à Agência Pública, que seu afastamento foi uma “vingança pessoal” do agora presidente.

Agora, o presidente pretende retirar o status de área de preservação da Estação Ecológica de Tamoios, onde foi flagrado com farto material de pesca.

Os defensores de Bolsonaro no Ibama têm um longo histórico político com Flávio e com o partido da família, o PSL. Grillo é vice-presidente do partido no Rio; Flávio é o presidente. Agora no Senado, recebe salário de R$ 22.900. Na Alerj, o salário era semelhante.

O Ministério Público no Rio convocou o coronel da Aeronáutica a depor sobre o caso de Fabrício Queiroz, o ex-assessor e ex-motorista de Flávio que retinha parte dos salários do gabinete. Reis, por sua vez, é suplente da comissão executiva do PSL no estado. Na Alerj, ganhava R$ 12.600.

No Senado, mais especificamente no escritório de apoio no Rio, recebe R$ 8.900. Já Martan segue figurando como advogada de Flávio e do pai em diversos processos, como no inquérito do “Você não merece ser estuprada”, frase dirigida à deputada Maria do Rosário (PT-RS), no Supremo Tribunal Federal (STF). No gabinete na Alerj, recebia quase R$ 10 mil. No Senado, como assessora parlamentar, recebe R$ 22.900.

A primeira defesa de Bolsonaro no processo no Ibama foi feita por ele mesmo. São duas páginas em que o então deputado usou a data escrita no auto de infração como a data da infração. Ele alegou que, no dia em que aparece no registro dos fiscais, ele havia viajado para Brasília.

A infração, porém, ocorrera dois meses antes. Ainda em 2012, o então deputado confere a Grillo e Reis a possibilidade de o representarem nos autos. O primeiro ato de defesa do chefe de gabinete de Flávio Bolsonaro registrou que “o requerente cabalmente demonstrou que não se encontrava na localidade referida no ato infracional”.

E que o Ibama havia deixado de adotar ações por mais de 90 dias para encerrar a instrução do processo. Por fim, a defesa disse existir “confessa prática de crimes funcionais por parte do agente autuador” e pediu a abertura de processo administrativo disciplinar. O documento foi assinado por Bolsonaro e Grillo.

A defesa mais consistente foi apresentada um ano depois, com assinatura de Bolsonaro, Grillo e Martan. Eles alegaram descumprimento de prazos legais, inconsistência de documentos anexados aos autos, incoerências de declarações e falta de critérios na fixação de multas.

“Os fatos ora descritos deixam claro que o agente José Olímpio Morelli agiu com a intenção deliberada de atingir o autuado e não a de exercer sua função pública”, afirmaram, em relação ao fiscal que anos mais tarde seria exonerado de cargo de chefia do Ibama, nos primeiros meses do governo de quem ele multara por pesca ilegal.

Bolsonaro e seus defensores pediram na mesma peça a anulação da multa e uma investigação sobre a atuação de Morelli “ante a confessa prática de crime de prevaricação e de outras condutas incompatíveis efetuadas pelo agente autuador”.

Ao anular a multa e determinar que o caso volte à estaca zero, o Ibama, já após a eleição de Bolsonaro para a Presidência, concordou com o argumento de que houve um cerceamento da defesa. O argumento foi expresso num parecer da Advocacia-Geral da União (AGU).

Um novo parecer, agora da área técnica do Ibama, apontou a prescrição da infração. A decisão caberá ao superintendente do órgão no Rio, alinhado ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Salles e Bolsonaro costumam repetir que existe um “excesso de multas” por parte do Ibama e dão cabo a uma flexibilização nas regras de fiscalização ambiental.

Bolsonaro foi flagrado dentro de um bote, com vara, material de pesca e peixes dentro de um cesto, numa área onde a presença é proibida. Conseguiu reverter e subverter toda a acusação formulada a partir do flagrante, inclusive com punição ao fiscal e promoção de seus defensores, agora servidores de confiança no gabinete do filho no Senado.

Em março, o Ministério Público Federal em Angra dos Reis abriu um inquérito para investigar possíveis atos de improbidade administrativa na anulação da multa aplicada a Bolsonaro.

A defesa do agora presidente decidiu-se por uma linha menos combativa. “Antes, havia uma orientação dos outros advogados de que ele deveria processar todo mundo. Essa não é minha orientação”, disse a advogada Karina Kufa.

Da Época