Governo Bolsonaro é feito por “gente a favor das trevas”

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Um cronista 100% ensino público, praticamente um Xicobras do primário até a bravíssima Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sou obrigado a defender cada pão com ovo que comi na CEU, a Casa do Estudante Universitário daquele campus da Várzea, defender cada assembleia em peleja permanente contra os cortes do senhor reitor, defender cada passeata contra os coices do general João Baptista Figueiredo -o derradeiro dos ditadores do golpe militar de 64-, sou obrigado a defender a memória contra o obscurantismo tropical da nova ordem.

Óbvio que falo desse cego facão bolsonarístico que decepou 30% das verbas das federais. Inicialmente sob a desculpa da “balbúrdia” da UFF, UnB e UFBA -sexo, drogas e rock´n´roll?- e depois, quando a carapuça oficial da hipocrisia caiu, por uma “cuestão” de tremenda sacanagem contra qualquer facho de iluminismo e saber. Eis uma gente a favor das trevas. Um governo que não ensaia a cegueira, é a própria, um governo que venda (“literalmente’) a vista de quem não pode pagar caro por educação ou diploma.

Por cada bife de fígado que tracei no Restaurante Universitário (delícia de R.U.), gracias a la vida, eram bifões conquistados com política & poesia, com o médico e poeta Wilson Freire no martelo agalopado e este desditoso cronista com haikais e textos pornopunks. Vivíamos basicamente de manifestos e pão com ovo.

Poesia e política são demais para um só homem, dizia o cineasta Glauber Rocha naquele momento. A gente teimava em misturar as duas coisas. A causa era nobre: estava em jogo o próprio estômago e defender a gororoba do bandejão era proteger a universidade pública dos facões dos tecnocratas e militares.

O presente de horrores pede mais uma canfungada na memória. Agora estamos diante de um show da banda Mundo Livre S/A, Fred 04 manda “Samanta Smith”, um hino recifense sobre a Guerra Fria, o pau canta no campus, o senhor reitor manda recolher “A Brecha”, nosso potente veículo de imprensa rodado no mimeógrafo a álcool.

A universidade pública vivia sob ataque permanente desde 1964. O que a nova ordem bolsonarística põe em prática não tem ainda a violência militar de forma explícita, mas o golpe nas verbas é um dos maiores da história. Corta, corta, corta.

No que me vejo, flahsback, adentrando as salas de aula da UFPE na companhia do destemido bode Bakunin, nas mobilizações pelo ensino público. Óbvio que tirei a ideia de recitar poemas com caprino à tiracolo do Pablo Neruda. Acabara de ler “Confesso que vivi”. Tudo bem, havia sim algo a considerar no protesto da zoologia fantástica: o poeta chileno andava com um boi, um touro, nas suas apresentações. Humildemente reconheço a inferioridade na comparação animal, mas não deixei de cumprir a minha parte com meu bodinho representante-mor da resistência da Nação Semiárida.

Obrigo-me, novamente, ao grito mínimo contra essa mesquinhez de castigar o ensino em nome do nada, pior, em nome do ódio a quem aprende, pesquisa e colabora com o desenvolvimento do país. Triste quem acha que governa na lousa do ressentimento. Esse quadro de borrões fascistas é a visão de um desmaio patriótico.

Tristes trópicos obscurantistas, donde muita gente boa largou de vez a ideia da coisa pública e, mesmo formado nas velhas universidades federais ou estaduais de guerra, agora defende o não-acesso, o muro. Que gente é essa?

Pelo visto, a ideia de governo é que ninguém passe do Mobral, o movimento brasileiro de alfabetização criado pela Ditadura, uma espécie de anticartilha Paulo Freire, cujo bê-a-bá decorativo não respeitava sequer as diferenças regionais das palavras. Lembro dos meus parentes, lá no grupo escolar do sítio das Cobras, município de Santana do Cariri (CE), tentando soletrar a palavra mandioca diante do que, para todos nós, se tratava de uma macaxeira. Tudo, tudo menos consciência do seu lugar na vida e no significado das raízes do Brasil.

Será preciso um festival nacional de “balbúrdia”, meu caro bode Bakunin, para barrar a destruição da universidade pública no Brasil. Pena que você não está mais entre nós. Seria um mascote extraordinário. Se não temos o bravo caprino, antes de tudo um pai-de-chiqueiro da potência erótica, recorremos ao não menos mitológico Serafim Ponte Grande: “A felicidade do homem é uma felicidade guerreira. Tenho dito. Viva à rapaziada! O gênio é uma longa besteira!”

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Big Jato” (editora Companhia das Letras), entre outros livros. Comentarista do programa “Redação Sportv”.

Do El País