Governo federal fechou R$ 140 milhões em contratos sem licitação para a intervenção no Rio

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Onze empresas privadas de segurança e tecnologia nacionais e internacionais assinaram cerca de R$ 140 milhões em contratos sem licitação com o governo brasileiro, todos destinados à intervenção federal no Rio de Janeiro.

O valor — resultado de um levantamento inédito da Pública — foi contratado pelo governo federal sob a justificativa de que era preciso pôr em prática ações emergenciais de curto prazo no estado. A intervenção no Rio foi decretada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) em fevereiro de 2018, teve início já no mês seguinte e seguiu até dezembro.

Com cerca de R$ 46 milhões contratados, a empresa que mais irá receber do governo federal é a austríaca Glock, famosa pela produção de pistolas usadas por polícias e forças armadas de diversos países – estima-se que ela tenha 65% do mercado de pistolas leves nos Estados Unidos. O Gabinete da Intervenção no Rio fechou um contrato de compra de 15 mil pistolas Glock para a Polícia Militar, 9.360 para a Polícia Civil, 3 mil para agentes da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) e mais 64 para militares do Corpo de Bombeiros. O preço médio de cada uma das armas é de R$ 1,6 mil.

No processo que dispensou a licitação para a compra das armas, o coronel da reserva Francisco de Assis Reis Fernandes se baseou no artigo 24, inciso III, da Lei das Licitações, que libera compras sem licitação “nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem”. O governo também argumentou que o contrato com a Glock atendia ao plano estratégico da intervenção e observava os critérios de “urgência, eficiência e economicidade”.

A Glock vem ganhando espaço no mercado nacional há anos, na esteira de mudanças na legislação brasileira sobre produção e comercialização de armas — em 2017, a empresa anunciou interesse em abrir uma fábrica no Brasil, logo após Temer ter liberado a instalação de uma indústria da suíça Ruag em Pernambuco.

No mesmo ano, o Senado havia aprovado a compra de cem pistolas Glock sem licitação para uso da Polícia Legislativa da casa. No contrato, no valor de R$ 161 mil, o argumento para dispensar a licitação foi que as armas da empresa eram as únicas no mundo com “um mecanismo de segurança passivo, denominado safe action” que previne “disparos acidentais, em caso de quedas ou choques bruscos”, diz o texto.

Ainda em 2017, a Glock venceu um contrato para vender 10 mil pistolas para a Polícia Rodoviária Federal (PRF) — novamente com dispensa de licitação. A compra, no valor de R$ 18,5 milhões, justificou a falta de licitação por “inviabilidade de competição”.

A decisão foi polêmica: diversas outras empresas de armas que disputavam o contrato questionaram a decisão do governo em fechar o contrato diretamente com a Glock. Em audiência pública, um representante da brasileira Taurus afirmou que o edital foi “direcionado a um produto específico de fabricação exclusiva por determinada empresa do ramo, limitando a competição”. Já o representante da Indústria de Material Bélico do Brasil (Imbel) acusou as especificações do edital de impedir fabricantes brasileiras de participar da competição e levantou a questão que, “se ao final do processo restarem poucas empresas, deixará de ser atendido o princípio da Competitividade”. A estrangeira Sig Sauer questionou diversos pontos do contrato afirmando que as especificações traziam vantagens competitivas à Glock. Todos os questionamentos foram rebatidos pelos técnicos da PRF.

A Glock vende para o governo brasileiro ao menos desde 2005, quando firmou contratos com a Polícia Federal. A Pública procurou a empresa, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria.

Em segundo lugar entre os maiores contratos com o governo brasileiro está a CTU Security, uma empresa de segurança baseada na Flórida, nos Estados Unidos. Ela foi citada nas revelações do WikiLeaks em 2015 sobre a Hacking Team, uma empresa italiana conhecida por desenvolver ferramentas de vigilância e espionagem cujos programas foram acusados de roubar senhas de jornalistas e espionar ativistas de direitos humanos em países como os Emirados Árabes Unidos e Marrocos. O vazamento do WikiLeaks mostrou que a CTU buscou a Hacking Team para tentar vender projetos conjuntos de vigilância para o governo do México, revelando interesse, inclusive, na implantação remota de softwares espiões em computadores.

Com o governo brasileiro, a CTU fechou um contrato de venda de 9.360 coletes à prova de bala para a Polícia Civil. O custo médio de cada colete é de R$ 4,3 mil. De acordo com o Portal da Transparência, o governo federal já pagou R$ 35,9 milhões à CTU. O pagamento coloca a CTU como o quinto maior fornecedor do governo federal na área de segurança até este momento em 2019.

A terceira colocada é a empresa mineira de vigilância e segurança privada Emive Patrulha 24 Horas, que se apresenta como a maior do ramo na América Latina. Ela fechou um contrato de mais de R$ 27 milhões para instalação de sistema de videomonitoramento nos edifícios de 54 unidades prisionais e hospitalares da Administração Penitenciária do Estado.

A dispensa para a licitação da Emive teve a mesma justificativa utilizada para a Glock: o inciso III da Lei de Licitações, que libera compras sem licitação nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem.

A dispensa de licitação para as compras do Gabinete de Intervenção foi um pedido do interventor general Walter Souza Braga Netto feito em maio de 2018 . Ele questionou o Tribunal de Contas da União (TCU), que autorizou, em junho, a compra sem licitação sob uma série de condições.

Uma delas era caracterizar a urgência da compra, nas palavras do tribunal, quando “seja impossível aguardar o tempo necessário a uma licitação convencional”. O TCU determinou também que os contratos deveriam ser restritos a atender essa demanda emergencial e não poderiam incluir compras habituais, periódicas ou programadas para atender às necessidades básicas do estado do Rio. Por fim, o gabinete precisaria explicar a razão da escolha da empresa contratada e do preço contratado.

“O fato do Estado do Rio de Janeiro estar sob intervenção não é um cheque em branco para dispensa de licitação. A intervenção não pode ser utilizada para dispensar licitação se é possível fazer o procedimento normalmente. Qualquer compra fora dessa situação é um ato de improbidade administrativa”, questiona o professor de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-RJ), Manuel Peixinho.

Na visão do especialista, a intervenção federal — um ato planejado e que durou cerca de oito meses — não pode ser utilizada como situação de exceção para dispensar licitação, como ocorreria em caso de desastres naturais imprevistos, como enchentes e deslizamentos de terra. “Nós não estamos em guerra e o que é grave perturbação da ordem? É quando o estado não consegue funcionar com normalidade, como paralisação dos serviços, greve generalizada, quando o estado não tem condição de funcionar. Essa fundamentação da intervenção para dispensar licitação não se aplica”, critica.

Segundo o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Guilherme Jardim Jurksaitis, contratos sem licitação não podem ser entendidos como sinônimo de corrupção. Ele explica que diversos escândalos de corrupção ocorreram em contratos licitados, por exemplo, os expostos pela operação Lava Jato. Na visão de Jurksaitis, a Lei de Licitações poderia ser menos burocrática e mais simples, nos casos de contratações licitadas, para facilitar esse tipo de contrato; porém ser mais criteriosa para as compras sem licitação, a fim de evitar prejuízos ao poder público. “A lei é muito rigorosa para fazer licitação, mas absolutamente aberta para contratações sem licitação nos casos que autoriza. O procedimento para contratar sem licitação é muito flexível. A lei poderia exigir algo mais, sem transformar a contratação direta em uma minilicitação — poderia impor ao gestor algumas condições, como ter mais transparência no processo de escolha para que não haja abuso”, pondera. Jurksaitis acrescenta que a modalidade de compras através do pregão — sobretudo o eletrônico, feito à distância — é mais simples, rápida e aberta ao escrutínio da sociedade, e poderia ser priorizada no lugar das contratações sem licitação.

O próprio interventor no Rio, o general Walter Braga Netto, afirmou que foi preciso capacitar funcionários do estado do Rio para realizarem processos licitatórios. “Muitas vezes eles não sabiam o que queriam. Precisavam, por exemplo, de pistolas. Mas não sabiam a marca, há necessidade de especificar o modelo […]. Se eu fizesse a licitação deles, teria problemas com o TCU. Paguei para eles cursos de contratos, processo licitatório, projetos… Recebi projeto que não era nem projeto”, afirmou ao Globo.

O dinheiro para custear a intervenção — um total de R$ 1,2 bilhão — foi garantido pelo ex-presidente Temer através de um crédito extraordinário aberto pela Medida Provisória 825.

Da Pública