Mesmo com Trump no comando, os EUA gozam da democracia e dizem não a Bolsonaro

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Desde o anúncio de que Jair Bolsonaro seria homenageado como a “Personalidade do Ano” pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, em cerimônia em Nova York, as empresas e instituições apoiadoras e patrocinadoras do evento passaram a ser alvos de críticas, reclamações e protestos. Nesta sexta (3), o presidente informou que, diante dos “ataques” não irá mais receber seu galardão.

Apesar de, lamentavelmente, o governo dos Estados Unidos praticar atos violentos e arbitrários em nome da democracia em outros países, internamente parte dos norte-americanos conta com plena liberdade para se expressar contra aquilo que considera injusto. Bolsonaro deve ter percebido, nos últimos dias, que a concepção de democracia de Donald Trump não é a mesma defendida pela sociedade civil – que, ainda hoje, finca os pés contra o racismo e o preconceito cometidos pelo Estado.

Além disso, o fato de ele ter recebido o apelido de “Trump dos Trópicos” e sido visto como um grande admirador do presidente dos EUA, durante a visita que fez ao colega, em março, é um fato negativo em uma sociedade predominantemente liberal e democrata como Nova York. O mesmo vale para Washington DC, muito mais cosmopolita do que a Casa Branca. Vale ressaltar que, em ambas cidades, direitos humanos é tema defendido por quem é de esquerda, mas também de direita – ao contrário do que acontece aqui, em que são considerados “coisa de comunista”.

O Museu de História Natural, que hospedaria inicialmente o evento, voltou atrás, devido às posições de Jair Bolsonaro sobre o meio ambiente, o desenvolvimento sustentável e as mudanças climáticas – que vão contramão daquilo que é defendido pela instituição. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, do Partido Democrata, disse que Bolsonaro não era bem-vindo, chamando-o de “um homem perigoso”, racista e homofóbico e elogiando a decisão do museu.

Deputados e congressistas norte-americanos passaram a criticar tanto o hotel Marriott Marquis, substituto escolhido para receber o jantar de gala, quanto as empresas patrocinadoras. Na pauta de reclamações, estavam as históricas declarações homolesbotransfóbicas, machistas, racistas e preconceituosas de Bolsonaro. A Delta Airlines, a Bain & Company e o Financial Times tomaram o mesmo rumo do Museu de História Natural e caíram fora. Permaneciam – por enquanto – outras do setor financeiro, como Itaú, Bradesco, Merrill Lynch, Credit Suisse, Morgan Stanley, Citigroup.

Em reportagem nesta sexta (3), Ricardo Balthazar, da Folha de S.Paulo, revelou que o próprio Banco do Brasil, controlado pelo governo federal, estava ajudando a bancar o evento, tendo aceitado pagar 12 mil dólares por uma mesa no jantar. Bolsonaro já havia sido acusado de ingerência e de preconceito ao mandar tirar um comercial de TV do Banco do Brasil, que retratava a diversidade, com jovens atores brancos e negros e uma atriz trans. Para ele, o vídeo ia de encontro ao interesse da família brasileira.

A sociedade civil conta com vários instrumentos para pressionar governos e empresas a respeitarem a democracia e os direitos humanos não só no próprio território, mas em outros países. Através do “naming and shaming” (nomear e envergonhar), empresas são colocadas sob os holofotes da imprensa e da população e questionadas por sua relação com atores que causam danos aos direitos humanos. Afinal, como essas empresas afirmam durante todo o tempo que apoiam a população LGBTQ e patrocinam um evento que premia um governante que deu declarações contra esse grupo?

Ameaças de boicote, como instrumento de pressão econômica, também são usadas para causar desconforto simbólico ou financeiro. A prática não é nova, claro. Ironicamente, foi usada pela sociedade civil de países democráticos para pressionar os dirigentes de nossa ditadura militar décadas atrás.

O objetivo final desses instrumentos não é a punição em si, mas garantir que o constrangimento – principalmente o internacional – ajude a mudar o comportamento de empresas e administradores públicos. Tem sido usado em questões envolvendo crimes contra populações tradicionais, crimes ambientais, trabalho infantil, tráfico de pessoas, escravidão moderna, entre outras, ao redor do mundo.

Claro que isso tende a funcionar em países onde a sociedade civil consegue protestar sem ser atacada pelo governo. Ou seja, não adianta na Venezuela. Mas, espera-se, que continue adiantando nos Estados Unidos e no Brasil – onde a democracia tem se tornado perigosa.

“Em face da resistência e dos ataques deliberados do prefeito de Nova York e da pressão de grupos de interesses sobre as instituições que organizam, patrocinam e acolhem em suas instalações o evento anualmente, ficou caracterizada a ideologização da atividade”, afirmou, em nota, o porta-voz da Presidência da República, general Otávio Rêgo Barros.

“Ideologização da atividade.” Em um país em que o governo vende o educador Paulo Freire como autoritário, é claro que a defesa dos direitos fundamentais e o exercício da liberdade de protestar democraticamente é visto como “ideologização”.

Em tempo: Paulo Freire, se vivo, seria bem recebido de Nova York a Pequim, de Londres a Nova Deli.

Do UOL