Viviane Mosé: ‘O Brasil vai sair desse buraco primeiro e ensinar ao mundo’

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Uma importante pensadora da educação e da contemporaneidade no Brasil, a psicóloga, filósofa e poetisa Viviane Mosé foi a convidada para palestrar durante a cerimônia de 65 anos de aniversário da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). “A base de tudo que desenvolvo até hoje vem desta universidade, deste chão”, declarou, lembrando não só das aulas mas da atuação política, relações humanas, convivência e artes.

Numa extensa palestra no Teatro Universitário com o tema Educação Pública e Sociedade em Rede, ela falou da atual crise, que é internacional, mas na qual vê o Brasil afundar.

“Estamos demonstrando nossa cara horrorosa para nós mesmos. Somos esse lixo que estava escondido. O que a sociedade em rede fez foi permitir que qualquer um atrás de um login pudesse dizer os maiores absurdos que quisesse. A internet é a consciência social, reflete nosso corpo social homofóbico, racista, fascista, explorador, que odeia pobres”.

No entanto, ela acredita que enfrentando essa imagem horripilante é possível que o país saia como um lugar melhor. “O mundo inteiro ainda não entrou nesse horror que estamos entrando. Somos o primeiro país a entrar nesse horror. Infelizmente não sei quando vai parar, quanto falta descer no que a gente tá descendo. Mas o Brasil vai ser o primeiro país do mundo a cair com todos modelos e aí reconstruir novos modelos. Eu tenho certeza que vamos sair desse buraco primeiro que o mundo. E vamos ensinar ao mundo. Com coragem, ousadia intelectual. E não com passividade, com aluno sentado decorando o que o professor está falando para repetir numa prova”.

Viviane Mosé considera os tempos em que vivemos como difíceis e delicados, com uma crise social, humana e ambiental, fruto do modo exploratório e destruidor que o ser humano vem agindo, contando com contribuição da ciência.

O mal-estar se evidencia com dados de aumento dos casos de suicídio e depressão. “Somos uma sociedade deprimida, suicida e medicada. Adultos toma fluxetina e crianças ritalina. Estamos drogando nossa crianças para que fiquem passivas enquanto o professor dá aula”.

Com uma metáfora que lembra a que utilizava na época de movimento estudantil na Ufes, explicou o interregno que vivemos: “Nada se parece mais com um prédio em ruínas do que um prédio em construção”. Enquanto há um sistema desmoronando, há outro sendo erguido.

“A pergunta que nós temos que fazer é: para qual prédio estamos olhando? Dependendo do seu foco, vai ver tudo se desintegrando ou vai perceber outra sociedade que já está nascendo e se coloca intensamente no mundo”.

Para a pensadora, essa transição é da passagem de uma sociedade material para uma sociedade virtual, de uma sociedade de raciocínio em linha para uma sociedade em rede, onde todos os conteúdos estão disponíveis ao mesmo tempo. A horizontalidade pela qual todos podem acessar a todo tipo de conteúdo arrebentou as estruturas existentes, levando a uma sociedade da pós-verdade, onde imperam as fake news.

“Essa passagem é descontínua, não há continuidade entre uma coisa e outra, há um abismo. Vivemos uma transição de modelos em que o caos predomina”, diz, considerando que a nova ordem teria um modelo de ordenação mais amplo e plural.

Para a nova realidade, seria necessário estimular seres autônomos e independentes, que possam distinguir e diferenciar os conteúdos. No entendimento de Viviane, nessa sociedade, o que diferencia uma pessoa da outra é a capacidade de ler, interpretar, a ética e sua ação, que determinam o seu poder. Nesse sentido, considera necessário avançar na educação, que, para ela, precisa de uma formação humana, geral, ampla, e não apenas preparação para o mercado de trabalho.

Mosé acredita que a educação brasileira vinha crescendo significativamente nos últimos 30 anos. “Hoje nosso problema não é acesso, é qualidade. Não é necessariamente dinheiro, é coragem, modelo de desenvolvimento”. Ela entende que mudanças pedagógicas dificilmente virão de escolas particulares, pois os pais as brecam, já que pagam pelo serviço.

“Quem pode fazer revolução pedagógica é a escola pública porque ela tem liberdade para isso. Temos escolas da educação infantil ao ensino médio que não têm aula, não têm salas de aula. Os alunos se reúnem por projetos de pesquisa, possuem projetos de vida”, exemplifica.

A educadora realizou uma série para o canal Futura no qual apresentou 40 escolas do Brasil que desenvolvem atividades inovadoras, sendo 90% escolas públicas. “O eixo da transformação é o desenvolvimento da autonomia, a criança pode decidir. Ouvir os alunos não é necessariamente atendê-los, é considerá-los. Os alunos podem decidir e escolher, e isso leva a experiências inacreditáveis”.

Apesar do crescimento que vinha acontecendo ao longo do tempo, Viviane Mosé aponta as manifestações iniciadas em junho de 2013 como um marco do retrocesso na área. “Foi todo mundo pra rua movido por um efeito viral, por manipulação e fake news. Vai todo mundo pra rua ser feliz. Eu não estava, fui contra. Por isso fui destruída, chamada de direitista o tempo inteiro”, reclamou. “Ficou todo mudo feliz, tudo lindo. Mas não é com lindeza que se muda o Brasil”.

Ela alega que o principal discurso girava em torno da educação, com os manifestantes considerando que a educação era péssima. A filósofa considera que o Brasil estava no auge dos avanços e da luta pela educação antes das manifestações e que a partir dali vivemos um retrocesso.

“Nós não podemos colocar todo mundo na rua junto, não. Sabe por que? Porque ente nós tem gente que é a favor do regime militar, tem gente que odeia negros. Vamos nos dividir por aquilo que a gente defende e acredita. Hoje todos que participaram das manifestações de junho de 2013 estão entendendo o que é retrocesso, o que é não valorizar a educação, como nesse corte de 30% nas universidades federais. As pessoas acreditam que o que o Brasil precisa é acabar com os comunistas, isso é tão arcaico. O alvo é ideológico, não é educacional”.

Em sua página no Facebook, Viviane comentou a emoção da noite, em que foi aplaudida de pé: “Não há honra maior do que ser reconhecida em sua própria casa. Ufes te amo. De verdade, eu te amo. Obrigada por tudo. Te devo esta vida que hoje carrego comigo. Conte comigo nesta luta contra o desmonte da educação brasileira. Viva a Universidade pública e gratuita para todos”.

Ela terminou a palestra recitando versos de sua autoria, Poemas presos:

A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos
Abscessos, tumores, nódulos, pedras…
São palavras calcificadas, poemas sem vazão.
Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado, prisão de ventre…
Poderiam um dia ter sido poema, mas não…
Pessoas adoecem da razão, de gostar de palavra presa.
Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima.
Lágrima é dor derretida, dor endurecida é tumor.
Lágrima é raiva derretida, raiva endurecida é tumor.
Lágrima é alegria derretida, alegria endurecida é tumor.
Lágrima é pessoa derretida, pessoa endurecida é tumor.
Tempo endurecido é tumor, tempo derretido é poema.
E você pode arrancar os poemas endurecidos do seu corpo
Com buchas vegetais, óleos medicinais, com a ponta dos dedos, com as unhas.
Você pode arrancar poema com alicate de cutícula, com pente, com uma agulha.
Você pode arrancar poema com pomada de basilicão, com massagem, hidratação.
Mas não use bisturi quase nunca,
Em caso de poemas difíceis use a dança.
A dança é uma forma de amolecer os poemas endurecidos do corpo.
Uma forma de soltá-los das dobras, dos dedos dos pés, das unhas.
São os poemas-corte, os poemas-peito, os poemas-olhos,
Os poemas-sexo, os poemas-cílio…
Atualmente, ando gostando dos pensamentos-chão.
Pensamento-chão é grama e nasce do pé,
É poema de pé no chão,
É poema de gente normal, de gente simples,
Gente de Espírito Santo.
Eu venho de Espírito Santo.
Eu sou do Espírito Santo, eu trago a Vitória do Espírito Santo.
Santo é um espírito capaz de operar o milagre sobre si mesmo.

Do Século Diário