Representante do grupo Policiais Antifascismo discute sobre novas políticas de segurança

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A percepção da opinião pública sobre as forças policiais — heróis ou bandidos, a depender da ideologia de cada um — exemplifica a atual polarização política brasileira. O Brasil soma mais de 60 mil mortes violentas por ano o que torna a segurança pública uma preocupação constante para a população.

Desde o final de setembro de 2017, um movimento comandado por policiais civis e militares — além de outros profissionais da área de segurança pública, como agentes penitenciários – busca discutir novas políticas de segurança inserindo o policial no debate público — inclusive no que diz respeito aos seus direitos. O investigador da Polícia Civil de São Paulo Alexandre Felix Campos, 43 anos, é dos representantes do movimento, denominado Policiais Antifascismo, que conta com 10 mil membros e representações nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal.

As nove páginas do movimento no Facebook – incluindo a geral e as estaduais – somam cerca de 20 mil seguidores. Em seu manifesto, o Policiais Antifascismo defende, entre outros pontos, a reestruturação da carreira policial, o fim da política de guerra no combate ao crime e às drogas, e uma política de segurança pública que ouça os policiais da base, ou seja, aqueles que estão nas ruas todos os dias. O Policiais Antifascismo realiza seu primeiro congresso nacional, gratuito, nos dias 27 e 28 de maio, na Universidade Federal de Pernambuco.

Por que ‘antifascismo’ e não ‘antifascista’?
Nós somos contra uma manifestação social, que é o fascismo, uma reação violenta às diferenças e não contra pessoas. O fascismo está sempre sustentado naqueles três pilares: uma tradição qualquer, a coisa do cidadão de bem — a família, determinada religião — e sempre considerando o que é diferente um desequilíbrio, uma doença a ser combatida. Para o fascismo não há condição de conviver com a diferença. É uma manifestação que segue ao longo da história. Todas as vezes que o fascismo se apresenta, ele o faz dessa forma. Nós entendemos que a luta deve seguir contra essas manifestações.

Vocês são críticos a essa política de guerra ao crime e às drogas. De que maneira isso repercute na vida dos policiais?
Não é guerra ao crime e às drogas. É impossível fazer guerra contra coisas. Guerra se faz contra pessoas. O termo não combina com a ação policial. Essa ideia acaba gerando um desequilíbrio social que vai aumentando cada vez mais a violência e coloca em risco, principalmente, a vida do próprio policial. Toda vez que um deles vai para a rua e sai preparado para atirar em alguém para matar é porque ele foi convencido de que o ‘outro lado’ — acreditando-se que exista um outro lado — vai atirar para matar o policial. E ele reage de forma violenta. Acaba-se tendo uma ação violenta, que pode levar à morte de ambos.

O que deveria ser a ação policial?
O policial é um garantidor de direitos. A própria palavra polícia significa “gestão da polis”. Ele deve atuar na cidade garantindo direitos. Ele tem que entender que os direitos básicos de um cidadão são os direitos humanos e fundamentais: o direito à vida, à liberdade de expressão. O policial deve garantir que isso ocorra. E não entrar de uma forma beligerante, guerreando contra aqueles que pensam diferente.

Pesquisas mostram que muitos policiais são mortos fora do horário de trabalho. Por que isso acontece?
Esta é uma forma que o Estado tem de divulgar um dado para tentar se isentar da culpa da morte daquele policial. Policial é policial 24 horas por dia. Quando ele morre em seu horário de folga normalmente ele está fazendo o quê? Bico de segurança para complementar renda. E ele é morto ali. Foi uma ação do Estado que o colocou ali. Se o policial ganhasse bem não estaria fazendo segurança privada. O policial morre como policial.

O fato de muitos policiais morarem em regiões dominadas por traficantes ou milícias não contribui para a morte de policiais?
A polícia é dividida: existe uma casta superior – que é a dos dirigentes da Polícia Militar ou os delegados da Polícia Civil —, que não são policiais, nunca agiram como um e nunca estiveram nas ruas. Eles nunca passaram o que passa um praça da PM ou um agente da Polícia Civil [que compõem a base da polícia].

Esse cara que entra na base da polícia, ele sai da periferia. Você vai encontrar muito raramente alguém de situação mais abastada. Então, pela lógica que você me passa, seria muito fácil entender que essa gama de policiais deveria estar morrendo. Eu sou da periferia e nunca recebi uma ameaça na área que eu nasci e fui criado. Para mim, é uma forma de jogar a culpa das mortes no policial e na periferia.

O Policial Antifascismo defende a reestruturação da carreira dos policiais. Como funcionaria isso?
Hoje nós temos duas entradas para a polícia: uma feita pela base, e quem entra por ali vai permanecer nela durante toda sua vida profissional — nunca será um chefe de polícia. E você tem a entrada lateral, num degrau acima, que seriam os comandantes. É um equívoco muito grande ter alguém tratando da segurança pública sem nunca ter sido policial. Quem pensa, quem elabora e quem manda executar as políticas de segurança pública são pessoas que nunca estiveram nas bases policiais. Quando a gente defende a carreira única é justamente para acabar com essa entrada dupla.

A polícia entrou no centro da polarização política. De um lado, temos a direita glorificando os policiais — sobretudo militares —, fazendo selfies. Do outro lado, temos a esquerda defendendo a extinção da PM, criticando e, muitas vezes, criminalizando as ações policiais. Como a polícia deveria ser tratada?

Os dois lados estão errados. Nós não somos nem heróis e nem bandidos. Somos única e exclusivamente trabalhadores. A direita, com o discurso do herói, nos coloca como cães de guarda para cuidar e servir uma determinada elite. E isso castiga o policial: faz com que ele não possa ter medo, não possa adoecer, não possa ter questões pessoais a serem resolvidas porque fica envergonhado.

E aí você tem a esquerda: ela nunca se apropriou do debate de segurança. Ela simplesmente se coloca a uma distância muito grande. As esquerdas têm falas que massacram ainda mais o policial que já é massacrado pelo sistema que está servindo. Por incrível que pareça, a esquerda só bate no policial da base. Eles não nos querem por perto, só nos querem como segurança.

A esquerda atrela a violência e da criminalidade à questão da desigualdade social. Porém, o que se observou ao longo dos anos Lula e Dilma foi uma redução da pobreza e da desigualdade e um aumento na taxa de homicídios. Falta compreensão em entender que a violência tem uma dinâmica própria?
Não falta, não. Eles sabem. Falta brio. Convites para sermos jagunços da esquerda aparecem também. Eles sabem que a violência tem uma dinâmica própria e que as ações da polícia são necessárias e têm uma caracterização muito peculiar. Porém, na hora em que eles estão em um lugar de poder, que eles podem promover o debate sobre segurança pública, eles se afastam. Sabem que é espinhoso. Eles abrem mão da grande preocupação do cidadão, que é a violência.

Muitos policiais aderiram à candidatura atual presidente Jair Bolsonaro, em 2018, e ao seu partido, o PSL. É correto entender que essa ética da guerra é majoritária dentro das forças policiais?
Sem dúvida.

Mesmo com os danos que causa aos policiais?
A direita nos quer como cães de guarda. Eles vêm, nos dão petiscos e nos mantêm sob seu comando. Só que falam bem da gente, nos tratam como heróis. O policial não percebe que ele vai se alienando de tal forma que não entende que está nessa situação, defendendo interesses pessoais.

Quando a esquerda se coloca no debate, além de nos enxergar como cães, ela ainda tira os petiscos e quer arrancar nossos dentes. Como é que você vai convencer o policial de que ele não pode seguir aquela grande massa, que aquela grande massa está alienada e está causando mal para ele mesmo? Ele vai dizer: “Pelo menos eles falam que gostam de mim, eles falam que eu sou herói. Toda vez que aparece um representante da esquerda é para bater em mim, para falar que eu sou bandido.”

A ação da esquerda pelo afastamento, pelo abandono da base, é que jogou a polícia na mão da direita. A grande adesão dos policiais aos partidos e às candidaturas da direita se deu por total ausência de outra hipótese, de outra forma de pensar a segurança pública.

Como o Policiais Antifascismo vê a questão das duas polícias – civil e militar? Como funciona e como deveria funcionar?
Hoje nós temos o ciclo de polícia fragmentado: a prevenção e a repressão. A parte preventiva é a Polícia Militar, a polícia que age ostensivamente para prevenir que o crime ocorra. Ocorrendo o crime, esse crime será apurado por outra polícia, a civil. Nós entendemos que esse ciclo deve ser completo. O policial deve ter conhecimento de todo o trâmite policial. O policial que chega primeiro ao local de um homicídio tem muito mais chance de conseguir informações que vão levar à elucidação do crime do que a equipe que vai atender esse local às vezes 12, 14 horas depois, que é a Polícia Civil.

Nós temos três pontos que defendemos como a nova polícia: a desmilitarização, o ciclo completo e a carreira única, com entrada única. Hoje você tem duas polícias com duas carreiras: o peão e quem manda.

O presidente Jair Bolsonaro ampliou, em janeiro, o direito à posse de armas e, recentemente, o direito ao porte de armas, estendendo-o a uma série de profissionais, como caminhoneiros e jornalistas. Como fica a situação da polícia no trabalho de zelar pela segurança pública e combate ao crime com uma população mais armada?
É a ideia da guerra: o policial vai sair para a guerra e vai haver enfrentamento. Esse não deveria ser o papel dele. Com essa ideia de aumento da posse de armas, do porte de armas, o policial vai sair cada vez mais preparado para a guerra. Porque vai começar a entender o seguinte: “Eu vou sair e se tiver que abordar um caminhoneiro eu já vou imaginar: ‘esse cara pode estar armado e atirar em mim, então vou atirar nele primeiro.'” Essa política desse governo só poderia sair da cabeça de quem nunca foi policial. Nenhum policial que está na rua concordaria com isso, só que a base não está sendo ouvida.

Como vocês vêm a questão do armamento no campo e como a polícia poderia atuar no campo?
A situação do campo é distinta da situação urbana. Toda vez que a gente tenta resolver as coisas com uma simplicidade total a gente está cometendo um erro. Armar o fazendeiro não vai garantir a segurança dele. Só vai acender um rastilho de pólvora para esse cara ser atacado de uma forma muito mais violenta do que seria. Com essa resolução a partir do decreto presidencial, você está dando condições do fazendeiro criar sua própria milícia. Só que o invasor pode pensar em atacar essa mesma fazenda com mais armas. O confronto só vai aumentar o potencial letal.

No Rio de Janeiro, há uma percepção de que as milícias são um problema maior que o tráfico. Essa visão é correta?
O que existe no Rio de Janeiro existe em qualquer lugar no Brasil. O que ocorre nos morros do Rio de Janeiro ou nas quebradas de São Paulo é exatamente a mesma manifestação: alguém está ocupando esse espaço porque o Estado não chega lá. O problema do tráfico não deixou de existir e tornou-se da milícia. O poder gerado pela ocupação desse espaço trocou de mãos. Antes o problema era o traficante – essa figura abstrata que criaram no nosso imaginário -, bandido, nascido no morro. Hoje continua tudo acontecendo do mesmo jeito só que nas mãos de pessoas diferentes. No caso do Rio de Janeiro está nas mãos de policiais ou de pessoas ligadas a policiais.

Esse é um problema mais grave, mais difícil de se resolver do que a ocupação dos morros pelo tráfico?
Eu entendo que não. É uma expressão diferente. É só o Estado se colocar nesses espaços, que deveria estar ocupando, que isso acaba. O problema não é a milícia, não é o tráfico, o problema é o Estado [ausente].

Vocês são favoráveis à descriminalização das drogas. Em que termos seria o fim dessa criminalização?
Essa guerra contra às drogas mata mais do que elas. O que a gente entende como legalização é que o Estado tem que se fazer presente aí. Legaliza-se as drogas e se controla a produção, a distribuição e o consumo, como é feito com o álcool. A diferença entre as drogas lícitas e ilícitas é apenas o ato estatal de dizer qual é qual.

Em São Paulo, entre 2006 e 2016, houve uma redução de 46,9% da taxa de homicídios por 100 mil habitantes (10,9 por 100 mil, a menor do Brasil). O que aconteceu no estado?
Em São Paulo, o estado fecha os olhos, não se faz apenas ausente. A vivência do dia a dia [policial] é saber que não existe mais guerra de facções, porque existe uma só [o Primeiro Comando da Capital, PCC]. Isso gerou uma diminuição da guerra entre essas quadrilhas e diminuiu o número de homicídios. O governo lança mão desse fato social e o apresenta como uma estatística própria de melhora da segurança. Sendo que essa estatística pura e simples da diminuição do número de homicídios não representa a diminuição de violência. A violência se expressa não só pela morte: você tem muitas pessoas que são escravizadas, exploradas sexualmente, que sofrem lesões graves. É um dado muito cru. Mas, ainda assim, grande parte disso [da diminuição dos homicídios] tem relação com a “não guerra”. O poder paralelo ao Estado está nas mãos de uma única quadrilha.

Da Época