Folha mostra que parceria com Intercept continua

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Foto: José Cruz/Agência Brasil

A nova matéria da parceria Folha de SP – The Intercept Brasil revela que falhou, em seu objetivo primordial, a espalhafatosa prisão dos hackers que Sergio Moro tentou instrumentalizar para impedir a continuidade da divulgação de seus métodos.

O procurador da República Deltan Dallagnol fez uma palestra remunerada no valor de R$ 33 mil para uma empresa que havia sido citada em um acordo de delação em caso de corrupção na própria força-tarefa da Lava Jato, mostram mensagens e documentos obtidos pelo The Intercept Brasil e analisados em conjunto com a Folha.

A firma do setor de tecnologia Neoway, que contratou Deltan, foi mencionada pela primeira vez em um documento de colaboração que foi incluído em um chat dos procuradores da operação em março de 2016, dois anos antes da palestra.

Além de participar do evento remunerado da companhia, em março de 2018, Deltan aproximou membros da Procuradoria e representantes da Neoway com o objetivo de viabilizar o uso de produtos dela em um trabalho da força-tarefa, da qual é coordenador em Curitiba.

O procurador também gravou um vídeo para a firma no qual enaltece a utilização de ferramentas tecnológicas em investigações, além de ter acionado um dos assessores do Ministério Público para avaliar seu desempenho na gravação.

Procurado, o Deltan disse à Folha que, antes de dar palestra remunerada para a empresa Neoway, não teve conhecimento de que a companhia já havia sido citada na Lava Jato. “Não reconheço a autenticidade e a integridade dessas mensagens, mas o que posso afirmar, e é fato, é que eu participava de centenas de grupos de mensagens, assim como estou incluído em mais de mil processos da Lava Jato. Esse fato não me faz conhecer o teor de cada um desses processos.”

Quatro meses após a palestra, em um chat, Deltan afirmou a outros procuradores que havia descoberto a citação à empresa na delação premiada do lobista do MDB Jorge Luz, que atuava em busca de vantagens em contratos da Petrobras e subsidiárias.

“Isso é um pepino pra mim. É uma brecha que pode ser usada para me atacar (e a LJ), porque dei palestra remunerada para a Neoway, que vende tecnologia para compliance e due diligence, jamais imaginando que poderia aparecer ou estaria em alguma delação sendo negociada”, afirmou o procurador na conversa.

As mensagens são reproduzidas tal qual aparecem nos arquivos obtidos pelo Intercept, mantendo eventuais erros de digitação e normas da língua portuguesa.

A situação levou Deltan e outros procuradores que haviam mantido contato com a Neoway a deixarem as investigações relativas a Jorge Luz.

Os diálogos examinados pela Folha e pelo Intercept também mostram outras ocasiões em que convites recebidos por Deltan levaram a discussões sobre potenciais conflitos de interesses.

O procurador chegou a perguntar aos colegas sobre eventual participação em um evento organizado pela Odebrecht Ambiental, empresa do grupo que fez a mais extensa delação da Lava Jato. Deltan foi advertido pelos procuradores e não aceitou o convite.

Em outra oportunidade, o procurador teve que cancelar a presença em um evento organizado pela empresa distribuidora de combustíveis Raízen, logo após ler a notícia de que a companhia havia sido alvo de uma operação da Polícia Civil do Paraná.

DELAÇÃO DE JORGE LUZ

Os procuradores da Lava Jato criaram um grupo no aplicativo Telegram em fevereiro de 2016 para tratar do acordo de delação premiada de Jorge Luz, inclusive com a participação de Deltan.

Em 22 de março daquele ano, circulou no chat um documento no qual o delator afirmou que atuou em favor da Neoway em um projeto de tecnologia da BR Distribuidora, subsidiária da Petrobras. Luz contou que recorreu ao então deputado federal Cândido Vaccarezza (PT-SP) e ao atual deputado federal Vander Loubet (PT-MS) para aproximar a Neoway da BR Distribuidora.

No dia 24 de abril de 2017, um outro documento da colaboração premiada foi enviado nesse diálogo com um relato mais categórico de Jorge Luz: “Paguei ao Vaccarezza para arrumar o negócio”.

O delator afirmou que, após uma reunião na BR Distribuidora para apresentação de sua ferramenta tecnológica, a Neoway foi contratada. Jorge Luz disse ainda que os contratos com a empresa foram executados por volta de 2011 ou 2012 e não houve pagamentos a funcionários da Petrobras, apenas repasses a Vaccarezza e Loubet.

O colaborador não indicou os valores dos contratos e dos pagamentos aos deputados nos documentos examinados pela Folha e pelo Intercept.

O relato de Luz sobre a Neoway levou o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin a determinar a abertura de um processo no STF para tratar do caso em abril de 2019, segundo um despacho do magistrado que foi enviado a um grupo dos procuradores no Telegram.

Luz teve seu acordo de delação premiada homologado pelo STF. Ele havia sido condenado a dez anos de prisão pela prática dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro em um processo sobre o pagamento de propinas em contratos de navios-sonda da Petrobras, e agora está sob o regime de prisão domiciliar previsto no acordo de colaboração.

Apesar de o nome da empresa de tecnologia ter sido mencionado nos documentos da delação já em março de 2016, Deltan comemorou a realização da palestra para a companhia em uma mensagem enviada em um outro grupo de conversas dos procuradores dois anos depois, em março de 2018.

O coordenador da Lava Jato demonstrou entusiasmo por ter sido contratado pela empresa e mencionou o presidente executivo da firma, Jaime de Paula.

“Olhem que legal. Sexta vou dar palestra para a Neoway, do Jaime de Paula. Vejam a história dele: [link para texto sobre Jaime de Paula]. A neoway é empresa de soluções de big data que atende 500 grandes empresas, incluindo grandes bancos etc”, disse.

O procurador da República Júlio Noronha, também integrante da Lava Jato, sugeriu então que Deltan procurasse marcar uma reunião com o presidente executivo da Neoway para tratar da obtenção de produtos para um projeto da Procuradoria denominado LINA (Laboratório de Investigação Anticorrupção).

”Top Delta!!! De repente, se conseguir um espaço para conversarmos com ele e tentarmos algo para trazer uma solução para agregar ao LINA, seria massa tb!”, disse Noronha.

Deltan concordou e afirmou que iria procurar agradar o empresário. “Exatamente. Isso em que estava no meu plano. Vou até citar ele na palestra pra ver se sensibilizo kkkk”.

Quatro dias depois, Deltan realizou a palestra para a Neoway no evento intitulado Data Driven Business, no resort Costão do Santinho, em Florianópolis.

No fim da noite do mesmo dia, Deltan procurou os colegas no chat para marcar a reunião com os representantes da empresa. “Caros podem receber a Neoway de bigdata na segunda para apresentar os produtos???? Ou quarta?”.

O procurador afirmou que a companhia cogitava fornecer produtos gratuitamente. “Como fiz um contato bom aqui valeria estar junto. Eles estão considerando fazer de graça. O MP-MG está contratando com inexigibilidade.”

A inexigibilidade citada pelo procurador é a situação na qual órgãos públicos podem contratar serviços ou comprar produtos sem concorrência pública. Isso ocorre em hipóteses nas quais só há um fornecedor apto a atender às necessidades da administração pública, por exemplo.

Houve impasse quanto à data da reunião, e Deltan disse que eles deveriam ser rápidos para não perder a oportunidade de ganhar os produtos. “Minha única preocupação é perdermos o timing da boa vontade deles rs. Mas entendo. Marcamos dia 20 então?

Noronha concordou e emendou: “Kkkk a gente ganha eles de novo qdo encontrarmos!”.

Os diálogos e documentos analisados pela Folha e pelo Intercept indicam que a reunião foi realizada e a ideia de integrar a Neoway ao projeto de sistema de dados da Procuradoria ganhou força internamente.

Porém quatro meses depois, em julho de 2018, Deltan afirmou em um diálogo que havia percebido a citação à Neoway no acordo de delação de Jorge Luz.

“Qto isso é ruim? Legalmente não vejo qualquer problema, mas já estou sofrendo por antecipação com as críticas. Dando uma passada de olhos nos anexos do Luz, vejam o que achei. Empresa de TI que veio apresentar produtos de TI para LJ”, afirmou Deltan.

O procurador então passou a propor medidas para tratar do problema. “Quero conversar com Vcs na segunda para ver o que fazer, acho que é o caso de me declarar suspeito e não sei até que ponto isso afeta o trabalho de todos (prov tem que ser redistribuído para colega da PRPR e dai designar todos menos eu para assinar)”, disse.

Deltan também discutiu como proceder caso a situação viesse a público. “Pensando rapidamente o que provavelmente poderia fazer ou informar: -Não tinha conhecimento, não participei da negociação -assim que tomei, me declarei suspeito e me afastei -a palestra remunerada é autorizada pelo CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] e se deu em contexto de mercado (lançamento de produto de compliance) e por valor de mercado”.

“Já recusei palestra por conflito de interesses, mas nesse caso não foi identificado -como voltará à baila a questão das palestras, a maior parte das palestras é gratuita e grande parte do valor é doado”, completou Deltan sobre a estratégia ante eventual repercussão negativa.

No mês seguinte, agosto de 2018, os procuradores iniciaram conversa sobre quem iria trabalhar nos casos relativos a Jorge Luz, e o tema da Neoway voltou à tona.

Nesse diálogo, o procurador Paulo Roberto Galvão indagou: ”Vcs nao preferem ficar de fora do luz [processos de Jorge Luz]?”

A procuradora Laura Tessler sugeriu que todos os procuradores da equipe entrassem no caso, mas Galvão lembrou do episódio da palestra de Deltan. “Delta nao quer… problema da neoway, laurinha”, escreveu Galvão à colega.

Em seguida, Deltan mostrou estar incomodado com a situação. “Quero distância rs Acho que Robito e Júlio tb não queriam”, afirmou.

Por fim, a procuradora Jerusa Viecili indicou os nomes de apenas sete procuradores para trabalhar nos processos de Luz e arrematou: “Melhor deixar fora quem teve contato com a neoway”.

A participação de Deltan no evento da Neoway em março de 2018 também rendeu a gravação de um vídeo no qual o procurador discorreu sobre a importância do uso de ferramentas de dados em investigações.

“A tecnologia é essencial para nós podermos avançar contra a corrupção em investigações como a Lava Jato, por exemplo. Hoje nós lidamos com uma imensa massa de dados, uma imensa massa de dados em investigações, uma imensa massa de dados que podem ser usados para avaliar potenciais fornecedores ou clientes, e fazer due diligence. Isso nos faz precisar, se nós queremos investigar melhor, tanto no âmbito público como no privado, a usar sistemas de big data”, disse Deltan no vídeo.

Na semana seguinte ao evento, o procurador recebeu o arquivo com o registro audiovisual e pediu que um assessor da Procuradoria avaliasse a fala dele. Deltan disse estar preocupado em parecer um garoto-propaganda da Neoway, apesar de não ter citado a empresa expressamente no vídeo.

“Fiquei um pouco preocupado porque ficou parecendo que estou vendendo os produtos deles rsrsrs, mas não foi proposital. Dei respostas sinceras às perguntas, mas encaixa perfeitamente com o que eles vendem, que é sistemas de big data rs”, disse Deltan.

O assessor da Procuradoria não fez críticas ao conteúdo do vídeo e ele foi publicado na internet. Até a publicação deste texto, a gravação ainda podia ser encontrada em sites como o YouTube.

OUTRO LADO

A empresa de tecnologia Neoway nega ter usado a firma do operador do MDB Jorge Luz para obter qualquer vantagem indevida em contratos com a BR Distribuidora.

Segundo a empresa, a contratação de Deltan e dos demais palestrantes “foi remunerada em valores compatíveis com o mercado para atividades dessa natureza, com total observância às leis”.

“A Neoway informa ainda que jamais prestou quaisquer serviços ou forneceu qualquer produto para o projeto LINA ou para o MP-MG, seja de forma gratuita ou onerosa, e desconhece a menção a seu nome em depoimentos de terceiros”, afirmou, em nota.

A defesa de Jorge Luz afirmou que seu cliente está à disposição das autoridades públicas para prestar todos os esclarecimentos, no momento oportuno e nos autos dos eventuais processos.

O ex-deputado Cândido Vaccarezza afirma que “nunca sugeriu, pediu, aceitou, recebeu ou autorizou quem quer que seja a receber em seu nome vantagem, pagamento, benefício ou dinheiro de forma ilícita”.

A defesa de Vaccarezza afirma que “já apresentou ao juízo elementos objetivos que esclarecem a verdade, e deixam inequívoco que o sr. Jorge Luz, por motivos ignotos, mente em relação a Cândido Vaccarezza”.

Sobre as mensagens nas quais é citado, o deputado Vander Loubet disse desconhecer seus termos.

A Raízen afirmou que a empresa possui os mais altos padrões de governança em relação às suas políticas comerciais, “razão pela qual confiamos que todas as condutas da Raízen e de seus empregados são absolutamente lícitas”, disse, em nota.

Da FSP