Hollywood responde a Moro e Bolsonaro

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Foto: Rodolfo Buhrer/La Imagem/Fotoarena/Folhapress

O ministro da Justiça, de forma reiterada, tem sugerido que o veículo de comunicação The Intercept agiu à margem da lei ao publicar diálogos em que ele tomou parte e que teriam sido obtidos ilegalmente por hackers. Na última quinta-feira, descoberta a autoria dos vazamentos, Sergio Moro colocou em dúvida a idoneidade daquele site noticioso, por supostamente ter se se valido de fontes que teriam um histórico criminal (e o fez com reticentes insinuações maliciosas, como parece ser de seu amargo estilo). Estes pronunciamentos ministeriais de duvidosa juridicidade parecem ter influenciado a opinião do presidente da República que, com a costumeira e atrabiliária falta de decoro, declarou que o editor Glenn Greenwald deve “pegar uma cana”.

Causa certa estranheza que o ministro Sergio Moro, um entusiasta do direito norte-americano e certamente conhecedor da jurisprudência constitucional dos EUA, ignore solenemente a decisão da Suprema Corte daquele país no caso New York Times Co. v. United States 403 U.S. 713 (1971), que tratava de hipótese idêntica e na qual considerou como constitucional a possibilidade de publicação, pela imprensa, de material sigiloso de interesse público trazido à luz de forma ilegal ou criminosa.

Relembremos os fatos, que aliás foram belissimamente retratos na laureada produção hollywoodiana “The Post” (de Steven Spielberg, com Tom Hanks e Meryl Streep). Por iniciativa de Robert McNamara, então Secretário de Defesa do Presidente Lyndon Johnson, o governo federal elaborou em 1967 um estudo sigiloso sobre o envolvimento militar dos EUA no Vietnã. O resultado foi um documento ultrasecreto denominado United States–Vietnam Relations, 1945–1967: A Study Prepared by the Department of Defense. O relatório – que passou a ser conhecido como “os papéis do Pentágono”, continha diversas informações comprometedoras para o Poder Executivo, como a de que determinadas ações militares no Sudeste Asiático fora do território vietnamita haviam sido tomadas após a promessa pública do presidente Lyndon Johnson de não expandir as fronteiras do conflito. Havia outras informações desabonadoras que poderiam constranger também os ex-presidentes Trumann, Eisenhower e Kennedy.

Daniel Ellsberg era um analista do Pentágono que participou da confecção do relatório, experiência que o transformou em um ferrenho opositor à intervenção dos EUA na Indochina. Ele decidiu vazar ilegalmente o relatório, repassando-o a um conceituado jornalista. Ellsberg levou dois anos para copiar o documento utrasecreto, pois ele tinha 14 mil páginas. O vazamento ocorreu já sob a administração Richard Nixon.

New York Times começou a publicar os documentos sigilosos em 13 de junho de 1971.

Nixon (do Partido Republicano) não pretendia, inicialmente, impugnar a publicação do material, pois aparentemente ele era prejudicial ao presidente anterior, o Democrata e adversário Johnson. Porém, percebeu que este precedente poderia levar à quebra de sigilo de seu próprio governo no futuro e assim orientou o Procurador-Geral John Mitchell a questionar judicialmente a publicação do material. A questão fundamental do processo era determinar se a cláusula de liberdade de expressão e de imprensa da Primeira Emenda era abrangente o suficiente para permitir que os jornais publicassem documentos públicos secretos e sigilosos – relevantes para a segurança nacional – subtraídos ilegalmente.

O governo invocou em seu favor o argumento de que a obtenção dos documentos se dera pela prática de um crime cometido por algum servidor, já que a Espionage Act de 1917, na sua seção 793, tipificava como delito a posse não autorizada e divulgação ou transmissão de qualquer documento público relativo à segurança nacional que pudesse prejudicar os Estados Unidos ou beneficiar uma nação estrangeira.

O Juiz Federal Murray Gurfein, em decisão liminar, proibiu o New York Times de dar seguimento à publicação, estabelecendo uma censura prévia judicial raramente encontrada na história judiciária americana. O jornal recorreu e a Suprema Corte, em face da urgência do caso, admitiu a avocação imediata do processo (hipótese rara no direito americano).

Por seis votos a três, o tribunal reverteu a decisão de primeiro grau. O acórdão foi redigido pelo Juiz Hugo Black, e passou a ser considerado um dos mais importantes da história da Suprema Corte e um marco jurisprudencial em defesa da liberdade de imprensa.

O célebre Juiz William Douglas, elaborou voto convergente no qual lembrou que o principal propósito da Primeira Emenda era evitar a prática, disseminada no século XVIII, da supressão, pelo governo, de informações embaraçosas. Douglas profetizou que o caso do Times entraria para a história “como a mais dramática ilustração daquele princípio”. Um dos trechos da decisão do Juiz Black acabaria por se tornar um verdadeiro mantra contra as tentativas do governo de censurar ou perseguir jornalistas: “A imprensa é destinada a servir aos governados, não aos governantes”.

Um dos pontos centrais dos votos é o de que as leis que criminalizavam o vazamento das informações em questões de segurança nacional não poderiam ser aplicadas à imprensa.

Em exercício de direito comparado, não cabe, de forma alguma, a alegação de que o caso brasileiro seria diferente, pelo fato de que os dados vazados estariam armazenados em instrumentos de comunicação privados (celulares e aplicativos de autoridades do judiciário e do MP), enquanto no caso americano os documentos sigilosos estavam depositados em repartição pública.

A partir do momento em que Sergio Moro e Deltan Dallagnol passaram a trocar informações oficiosas sobre autos judiciais e de inquéritos, incluindo estratégias processuais, o teor da comunicação deixou de ser privado, sendo, portanto, irrelevante que o meio de comunicação fosse igualmente privado, pois isso era em si uma impropriedade (de modo que os hackeados não poderiam alegar, em seu favor, a própria torpeza, conforme princípio jurídico que remonta ao direito romano).

Ou seja, duas autoridades graduadas trocavam informações afetadas de interesse público, em canal privado. Eram informações de interesse público porque envolviam os interesses jurídicos legítimos de réus da Lava Jato, cujo advogados, evidentemente, teriam todo o direito de conhecer, se os princípios do contraditório e da paridade de armas ainda estão em vigor em nosso país. E, além disso, havia também o inquestionável interesse do público geral sobre os processos, que tiveram enorme repercussão política e eleitoral.

Portanto, repita-se, eram informações de inegável interesse público e que deveriam estar sendo transmitidas em registro oficial e publicizado. É evidente que esse fato, por si só, não absolve o autor do hackeamento de violar o sigilo das comunicações telefônicas. Mas legitima completamente o interesse da imprensa em divulgar informações que deveriam ser públicas e estavam escondidas do público. Apenas um exemplo, revelado na última sexta-feira: parece-me que é do interesse público saber que ministros do STF ou procuradores da República dão palestras confidenciais a banqueiros, repassando-lhes informações a que tem acesso em razão dos cargos que ocupam, sendo por isso remunerados a peso de ouro.

O próprio ministro da Justiça demonstra ter consciência disso, embora de forma um tanto confusa e enviesada, como é comum ocorrer em sua tortuosa forma de raciocinar. Certa vez, quando confrontado sobre o vazamento ilegal que promoveu da conversa entre a presidente Dilma e o ex-presidente Lula, Moro defendeu-se com o seguinte argumento: “o problema não é a captação do diálogo ou a divulgação do diálogo. O problema é o diálogo em si”. Bom, isso valeria perfeitamente para a imprensa, isto é, um terceiro que não tem nada a ver com quem vazou a informação sigilosa.

Mas é claro que a afirmação não vale para a autoridade que tinha o dever legal de manter o sigilo e o violou (como ocorreu com o próprio Moro na condição de Juiz).

Não custa lembrar que Daniel Ellsberg foi processado criminalmente nos EUA, mas não os jornalistas que reproduziram o material por ele vazado.

Aliás, o conteúdo dos diálogos Dilma-Lula foi vazado ilegalmente por Moro e saiu instantes depois, “ao vivo”, no Jornal Nacional da TV Globo. Alguém cogitou à época de que a TV Globo estava cometendo ou participando de algum crime?

Por isso, no caso dos “papéis do Pentágono”, nenhuma autoridade do governo Nixon sequer cogitou acusar criminalmente jornalistas responsáveis pela publicação do material, seja no Post ou no NYT. Como bem mostra o filme de Spielberg, o máximo que ocorreu foi uma possível tentativa de acusação à editora do Washington Post, Katharine Graham, caso descumprisse uma liminar que proibira temporariamente a continuidade das reportagens (e que acabou derrubada pela Suprema Corte). Ou seja, ela teria incorrido no máximo em contempt of court (desobediência à ordem judicial na Common Law), mas de modo algum foi implicada no vazamento em si.

Portanto, a jurisprudência constitucional da Suprema Corte dos EUA é clara: jornalistas não podem ser responsabilizados quando o Estado e seus agentes são ineficientes em manter protegidos assuntos legalmente sigilosos.

A isso eu acrescentaria: e, muito menos, jamais poderiam veículos de imprensa ser atacados ou culpados por divulgar dados que autoridades mantêm como sigilosos, em canais privados, quando, por sua natureza, tais dados deveriam ser públicos em canais públicos.

Como lembrou o Juiz da Suprema Corte William Douglas, em seu voto convergente ao de Hugo Black no caso New York Times v. U.S., “o segredo em atos do governo é fundamentalmente antidemocrático, perpetuando os erros burocráticos. O debate aberto e a discussão de assuntos públicos são vitais para a saúde da nação. Em questões de interesse público, deve haver um debate aberto, robusto e livre de embaraços”.

Do Jota