José Graziano: “Retórica antiglobalização dificulta combate à fome”

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Foto: Li Muzi/Xinhua

Diretor-geral da FAO, braço da ONU para o combate à fome, o brasileiro José Graziano, 69, viu a quantidade de pessoas desnutridas no mundo cair durante boa parte de seu período no cargo, iniciado em 2012.

Mas também testemunhou esta curva ser interrompida no meio do caminho, em razão de conflitos, fenômenos climáticos e sobretudo da crise econômica mundial.

Prestes a deixar o cargo, no fim do mês, ele vê outra dificuldade na emergência de líderes com retórica antiglobalização em diversas partes do mundo. “O fato de um país submeter o combate à fome a uma visão ideológica é um erro”, diz ele, que foi ministro de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e criador do programa Fome Zero.

Seu sucessor, o chinês Qu Dongyu, terá como uma das missões enfrentar também a má nutrição, hoje um problema que, segundo Graziano, é até mais amplo do que a fome.

Nesta entrevista à Folha, feita por telefone da sede da FAO, em Roma, ele rebate a afirmação do presidente Jair Bolsonaro de que não há fome no Brasil e critica a política externa do atual governo.

Na semana passada, a FAO divulgou relatório apontando que, após anos de queda, o percentual de quem passa fome no mundo estabilizou-se, até com ligeira alta no número absoluto. Qual a razão para isso? São diversas razões. Desde 2015, conflitos graves irromperam, principalmente na Síria, Iraque e Iêmen. Em 2017 e 2018, houve o impacto da mudança climática. A parte leste da África, por exemplo, foi afetada sucessivamente pelo El Niño, por secas prolongadas e depois monções. Uma alternância de seca e inundação que é destrutiva para as lavouras. Tudo que a gente conseguiu avançar na África nos últimos 20 anos, a gente está perdendo nos últimos três. Em 2019, houve o impacto da crise econômica. Os países desenvolvidos conseguiram sair dela, mas os em desenvolvimento continuam tateando. Cresceram muito na última década, mas agora estagnaram. Estão crescendo no ritmo da população, menos de 2% ao ano.

Sobre o Brasil, o que o sr. achou da declaração do presidente Bolsonaro de que não há mais fome por aqui? Não sei por que o presidente Bolsonaro falou isso. Efetivamente, isso não corresponde à verdade. A fome está entre nós. Decaiu muito rapidamente até 2013, depois há uma estabilidade até 2015 e depois começa a aumentar paulatinamente.

É só em razão da crise que isso ocorre, ou algo a mais? Uma coisa é ser desempregado, outra coisa é passar fome. Na Europa, está cheio de desempregado, mas ninguém passa fome. Tem um programa de cobertura social muito forte. Uma das razões pelas quais o Brasil saiu da fome [em anos anteriores], e também outros países da América Latina, foi a introdução de politicas de proteção social, tipo Bolsa Família. No Brasil, houve duas coisas: uma crise econômica prolongada e a redução dos gastos sociais orientados para essa população mais pobre e desempregada.

Qual o cenário para os próximos anos no mundo? Podemos ter boas notícias? Depende muito da região. As boas notícias estão difíceis. Nós nos reunimos em Nova York [sede da ONU] para apresentar o relatório [anual sobre a fome]. Se você colocar os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável alinhados, o pior é o número 2, que é o da fome zero. A fome está circunscrita, nós sabemos onde tem e o que fazer para acabar com ela. O problema agora é má nutrição, comer mal. Isso vai da anemia entre as mulheres e o nanismo entre as crianças à obesidade generalizada.

A má nutrição é mais preocupante do que a fome? Para quem está com fome, nada é pior. Agora, em termos globais, o peso da má nutrição é maior. Está em todo lugar: país desenvolvido, país em desenvolvimento. Tem a ver com uma causa estrutural que é muito mais complicada. Os nossos sistemas alimentares não foram produzidos para ofertar dieta saudável. Temos mais facilidade em obter um cachorro-quente do que uma salada de frutas.

Há um debate muito intenso no Brasil e outros países sobre o uso de agrotóxicos nas lavouras, inclusive para aumentar a produtividade. Como o sr. vê isso? Não podemos prescindir dos defensivos agrícolas, especialmente em países tropicais, que têm muito inseto. A tendência é de redução do uso. O que recomendamos é o combate integrado contra pragas e doenças de forma muito mais ecológica, amigável com o meio ambiente. Usar inimigos naturais, por exemplo, rotação de culturas, tem uma cartilha imensa de recomendações da FAO. O que precisa evitar é o uso de defensivos que são muito tóxicos, porque isso acaba chegando no que comemos. O que se nota no Brasil é que os limites permitidos, ainda que estejam dentro dos recomendados pela FAO, são muito maiores do que os existentes na União Europeia. Vou dar um exemplo: o limite de resíduos do glifosato, que é um herbicida suspeito de ser cancerígeno, é 5.000 vezes maior na água potável no Brasil do que na Europa.

Qual o papel de acordos de livre comércio como o recém-assinado entre Mercosul e União Europeia para o combate à fome? Esse acordo facilita a entrada de alguns produtos, em determinadas condições. Isso vai beneficiar a população brasileira e muito mais os nossos agricultores. Não é um acordo de abertura indiscriminada, em que você zera a tarifa ou a reduz drasticamente, e os grandes prejudicados são os agricultores tradicionais. Isso não vai acontecer no Brasil. Mas nos países da África, que, com a intenção de combater a fome, abriram as suas barreiras, o que a gente tem visto é que importam comida mais barata, mas não a mais nutritiva. Os países mais importadores de comida são os que são mais obesos.

Estamos vendo em várias partes do mundo a emergência de líderes políticos com retórica antiglobalização. Isso afeta o combate à fome no mundo? Dificulta muito. O fato de um país submeter o combate à fome a uma visão ideológica é um erro. A questão da fome é um valor universal. Países que adotam posições defensivas diminuem muito a cooperação, porque acreditam que têm que olhar para dentro para resolver os seus problemas. É um grande erro pensar que um país isoladamente conseguirá erradicar a fome sem cooperação internacional, ajuda tecnológica, assistência técnica.

Qual a relação de fome e desigualdade com violência e conflitos? ​O tema da desigualdade explodiu quando subiram os preços dos alimentos em 2010 no mundo árabe, na Primavera Árabe. A relação entre conflito e fome é direta. Na FAO, nós vamos vila por vila, povoado por povoado, vendo quem tem fome. Esse mapa da fome nas áreas de conflito está sendo levado ao Conselho de Segurança. Hoje, todos os anos a gente apresenta esse relatório. A gente é capaz de mostrar onde os conflitos vão se intensificar, pela questão da fome. Dá para prever.

Por que o Brasil ainda ocupa relativamente poucos espaços de comando em órgãos multilaterais? Assumi a FAO num momento bom para o Brasil, e trouxemos uma série de programas que foram copiados em outras partes do mundo. Por exemplo, o programa da merenda escolar com compra de alimentos por agricultores locais, ou o programa de cisternas, hoje implantado no Saara e no Sahel. Esses espaços poderiam ser ocupados pelo Brasil se houvesse uma orientação do nosso Ministério das Relações Exteriores para isso. O meu sucessor vai ser um chinês, e não é por acaso. A China há anos tem um programa de treinamento e capacitação para formar chineses para trabalhar em órgãos internacionais.

Nesse sentido, como o sr. vê a nova gestão do Itamaraty e sua crítica ao globalismo? Eu nem sei o que dizer sobre isso. Eu não sou diplomata, não fiz o Rio Branco. Vim para uma posição da diplomacia, aprendi rapidamente as coisas básicas, mas eu confesso que fico desnorteado em relação a algumas declarações que tenho ouvido. Eu sinto um constrangimento muito grande dos diplomatas brasileiros com quem encontro, sobre a situação atual pela qual o Brasil está passando.

A imagem do Brasil piorou? Você quer um exemplo? Não poder usar a palavra gênero nas discussões e documentos é uma coisa difícil de explicar.

Da FSP