Juiz da operação Mãos Limpas critica Bolsonaro

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Foto: BASSON CANNARSA

Desde que se transformou num marco brasileiro, há cinco anos, a Lava Lavo tem sido frequentemente comparada a sua congênere italiana, a Mãos Limpas. Ambas as investigações provocaram um colapso no sistema político de seus países. O próprio Sérgio Moro, ex-juiz federal que virou político graças a seu sucesso na operação, hoje na berlinda no Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, escreveu um trabalho acadêmico que descreve os métodos do trabalho na Itália, colocando-o como sua principal inspiração.

Diversos outros textos fazem abertamente tal associação, o último sendo Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas (Penguin/Companhia das Letras), lançado no início deste ano, organizado pela economista Maria Cristina Pinotti. A Mãos Limpas e a Lava Jato são consideradas por estudiosos e especialistas as maiores operações contra a corrupção conhecidas na história dos países democráticos.

Apesar de algumas semelhanças, as diferenças entre elas são muitas e notáveis, conforme conta para a Quatro Cinco Um o ex-juiz italiano Gherardo Colombo, 73, o único a participar da apuração das Mãos Limpas desde a fase inicial, em 1992, até o seu último ato, treze anos depois. As diferenças se acentuam ainda mais à luz das mensagens privadas trocadas entre os procuradores da força tarefa da Lava Jato e seu principal juiz, que vêm sendo reveladas há mais de um mês pelo site The Intercept em parceria com jornais e revistas.

Em entrevista à Quatro Cinco Um, ainda antes das revelações das últimas semanas, numa conversa de pouco mais de uma hora, numa quarta-feira recente do abafado verão romano, Colombo pontuou que uma peculiaridade da investigação brasileira foi a súbita transição do ex-juiz Sergio Moro, que trocou a magistratura pelo bolsonarismo, no final do ano passado, enquanto ainda despachava nas ações da Lava Jato (além de ter beneficiado diretamente o atual chefe ao prender o ex-presidente Lula). “Isso é uma coisa que na Itália teria escandalizado muito”, afirmou.

Moro, ao aceitar o convite de Bolsonaro para assumir o Ministério da Justiça, apontou o juiz italiano Giovanni Falcone, que atuava no combate à máfia, como inspiração para deixar a toga e assumir o cargo. “Repetem-se coisas no Brasil que não são verdadeiras, como dizer que Falcone se dedicou à política, o que não é verdade. Falcone não foi ministro, ele atuou como técnico do Ministério da Justiça, se ocupando de questões técnicas e administrativas”, disse Colombo sobre o colega assassinado pela máfia na Sicília em maio de 1992, três meses depois do início das Mãos Limpas — da qual Falcone, aliás, não participou.

Outro aspecto relacionado a Moro é o caso de Antonio Di Pietro, magistrado das Mãos Limpas que também enveredou para a política. As diferenças, ressaltou Colombo, também são gritantes: Di Pietro deixou de exercer a atividade de juiz e, somente um ano e meio depois, virou ministro, assumindo a pasta de Obras Públicas — e não a da Justiça — do governo de Romano Prodi, um expoente histórico da Democracia Cristã, partido (já extinto) que era um dos alvos da investigação italiana. Hoje advogado, Di Pietro não teve uma carreira política bem-sucedida: ela terminou com suspeitas de má conduta.

“Uma coisa que me impressionou muito no Brasil é o número de juízes que foram fazer política. Isso na Itália é raro”, ressaltou Colombo. A principal diferença entre os dois casos está no ordenamento jurídico dos países: na Itália, um magistrado que instrui um processo e participa dos pedidos de busca e apreensão, por exemplo, não pode julgar o réu no final da ação — sob o risco, segundo Colombo, de o “juiz pegar paixão pelo caso”. No Brasil, não há essa proibição. As mensagens da Vaza Jato conhecidas até o momento mostram exatamente o contrário: um juiz apaixonado pelo caso.

Paralelos

Gherardo Colombo visitou o Brasil pela primeira vez em 1993, desembarcando no Rio de Janeiro dias depois da chacina da Candelária. Desde então, voltou inúmeras vezes para palestras e eventos. No livro organizado por Maria Cristina Pinotti, ele escreve sobre o caso italiano ao lado do amigo Piercamillo Davigo, outro integrante do pool histórico das Mãos Limpas e ainda ativo na magistratura — é integrante do tribunal equivalente ao Supremo Tribunal Federal.

Do lado brasileiro, além de Moro, foram convidados os procuradores da Lava Jato Deltan Dallagnol e Robson Pozzobon, integrantes da força tarefa em Curitiba e também protagonistas das mensagens divulgadas pelo site The Intercept. Os três fazem um resumo do que foi a investigação até meados de 2018 — antes, portanto, da eleição de Bolsonaro —, elencam alguns dos ataques direcionados à investigação (relacionando-os ao caso italiano) e discorrem sobre os desafios para o futuro, principalmente em relação à tentativa da classe política de abafar o caso (discurso que o bolsonarismo incorporou a partir da campanha eleitoral, antes do sumido assessor Fabrício Queiroz se tornar conhecido nacionalmente e implicar a família do presidente em negociatas ainda não investigadas).

O livro, sobretudo pelos textos dos italianos e da organizadora, ajuda a entender os paralelos entre o Brasil e a Itália de um quarto de século atrás, apesar das novidades brasileiras dos últimos meses deixá-lo com certo ar de produto  datado e parcial. “A Lava Jato teve mais impacto no Brasil do que a operação Mãos Limpas na Itália. É só ver o impacto do setor de compliance [termo do mundo corporativo para melhorar o cumprimento das normas e leis] nas empresas brasileiras”, afirmou a organizadora, Maria Cristina Pinotti, em entrevista por telefone.

No texto de abertura, ela foca na relação entre o ambiente permissivo às práticas de corrupção e a deterioração econômica: “A reação do sistema político italiano às investigações e punições ocorridas nos primeiros três anos da operação Mani Pulite, com o abrandamento das lei contra corrupção e lavagem de dinheiro e a forte campanha difamatória contra o Judiciário, explica muito dessa queda na qualidade da governança do pais, que prejudica sua produtividade e seu crescimento econômico”.

Conforme nota a economista, a produtividade da economia italiana vem diminuindo significativamente desde a década de 1990 em comparação com os demais países da União Europeia. Sobre os recentes episódios da Vaza Jato, que mereceriam um novo livro, Pinotti prefere não comentar. “Acho lamentável a forma perniciosa como esse assunto está sendo discutido”, disse, pedindo para deixar os “mitos de lado” e olhar para o que “realmente importa, o combate à corrupção, que vai muito além de Moro e Dallagnol”.

Cautela

Gherardo Colombo foi cauteloso ao falar sobre os desdobramentos no Brasil. Disse não estar suficientemente informado a respeito, tendo lido apenas o que foi publicado na imprensa italiana sobre o conluio entre juiz e Ministério Público Federal, prática vetada pela Constituição brasileira.

Ele lembrou que os responsáveis pelas Mãos Limpas foram alvos de dezenas de inspeções e procedimentos disciplinares na Itália e que nunca apareceu nada que manchasse a investigação ou evidenciasse manipulação política: “Nosso trabalho foi colocado num microscópio e não surgiu nada que tivéssemos feito fora da lei. O único caminho justo é o da verificação, do controle e da análise das provas. Remedia-se esse risco através da análise do comportamento”. O ex-juiz foi alvo de cinco processos, acusado, entre outras coisas, de forjar documentos e de beneficiar partidos da esquerda. Todas as acusações foram consideradas improcedentes.

No caso brasileiro, os processos nas corregedorias do Ministério Público e da Justiça Federal não andaram. Só agora Dallagnol será investigado (ao lado de Pozzobon) pela tentativa de lucrar com palestras sobre a Lava Jato. As conversas privadas mostram os dois discutindo a criação de uma empresa em nome das respetivas mulheres para gerenciar a atividade.

Sergio Moro, representado no Conselho Nacional de Justiça há mais de dois anos, também não foi julgado — os processos ainda não foram analisados, mas agora perderam efeito, já que ele deixou a magistratura. “Ocorre um desastre incrível quando a justiça é mal aplicada, mesmo se isso é feito por uma parte pequena da magistratura”, analisou o italiano. “Esses aspectos acabam tendo uma grande relevância.”

Na Itália, a operação  Mãos Limpas — também conhecida como “Tangentopoli”, ou “cidade da propina” — levou ao desaparecimento de cinco partidos (três deles tinham mais de cem anos): a Democracia Cristã, o mais importante no país desde o final da Segunda Guerra Mundial (1939-45), o Partido Socialista, o Social-democrático, o Republicano e o Liberal. A classe política reagiu aprovando uma série de medidas no Parlamento que dificultou a condenação e a prisão de políticos, e o resultado acabou sendo a eleição do empresário Silvio Berlusconi, citado lateralmente na investigação e que capitaneou as mudanças legislativas que emperraram a operação.

“Antes, aqui era como no Brasil. Di Pietro era um herói, todos nós éramos celebrados, havia uma pressão da opinião pública, mesmo que não muito correta. Depois, na medida em que a investigação foi à frente e chegamos a casos de corrupção miúda, de pessoas comuns, a operação começou a ser refutada”, disse. Como as principais provas geralmente surgiam de depoimentos, delações e documentos, as bocas se fecharam e os papeis desapareceram. Além dos partidos e seus integrantes, a investigação na Itália chegou a empresários, funcionários públicos e juízes – classe poupada no Brasil. Até desvios em cemitérios e entre comerciantes foram analisados.

Sobre as palestras e a tentativa dos procuradores de lucrar com a Lava Jato, Colombo conta que, na década de 90, com o sucesso das Mãos Limpas, eles começaram a receber convites para palestras sobre justiça e corrupção, mas que todas “eram gratuitas”. Dallagnol disse que suas caras palestras tinham o objetivo de “promover a cidadania”, mas quem realmente seguiu esse caminho foi Colombo. Angustiado por perceber que não conseguiria erradicar a corrupção, ele abandonou a magistratura em 2007, quando estava na Suprema Corte.

Desde então, Colombo se dedica a dar aulas e a debater corrupção e Justiça com crianças e adolescentes, além de atuar em organizações da sociedade civil, como a União Europeia das Cooperativas. Ele e Davigo são, de longe, os investigadores do pool das Mãos Limpas com melhor reputação perante a opinião pública italiana. Em 2016, publicaram o livro A tua Justiça não é a minha: Diálogos entre dois magistrados em discordância permanente, um instigante debate sobre a eficiência das leis.

Colombo acha que, sem mudar a cultura por meio da educação, não será possível reduzir a corrupção; enquanto Piercamillo Davigo acredita que só a aplicação de leis adequadas altera o comportamento humano, o que permitiria combater a corrupção e as demais injustiças. “No final das contas, a cultura desse país está mais próxima da corrupção do que ao respeito das leis. O único bem que a investigação fez à Itália, embora o país ainda não tenha se dado conta, foi mostrar que a corrupção é um fenômeno capilar, vasto e difuso que não pode ser afrontado com um processo penal”, comentou o ex-magistrado. “As Mãos Limpas acabaram e a corrupção continua.”

Da Quatro Cinco Um