Na ditadura, militares acobertavam tráfico de drogas

Todos os posts, Últimas notícias
Foto: Marco Eusébio/Entrelinhas da Notícia

O Opala preto com placas do Poder Legislativo Federal, cruzava tranquilamente a fronteira do Brasil com o Paraguai em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Afinal, em plena ditadura, nenhum policial cometeria o erro de parar o carro que era usado pelo então deputado federal Gandi Jamil Georges, aliado do governo militar. No porta-malas, inúmeras cargas de armas e drogas traficadas sem problemas país adentro, como revelam dossiês exclusivos obtidos pelo Intercept.

Os arquivos do Serviço Nacional de Informações, o todo poderoso SNI, esquecidos por 30 anos, ligam pela primeira vez políticos da ditadura ao tráfico de drogas. Eles mostram que políticos apoiados pelo regime eram amigos, aliados e até irmãos de traficantes e contrabandistas que atuavam no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul. O Opala da Câmara é o exemplo mais característico.

Classificados como confidenciais, os documentos foram tornados públicos em 2005 por conta do decreto 5.584 assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que determinou que todos os documentos produzidos pelo SNI e pelos extintos Conselho de Segurança Nacional e Comissão Geral de Investigações – órgãos responsáveis por vigiar os cidadãos durante a ditadura –, e que estavam em poder da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, fossem remetidos ao Arquivo Nacional. Os dossiês compilados pelo SNI e encontrados pela reportagem incluem cópias de investigações, relatos de policiais federais, descrições de prisões e apreensões, documentos e observações dos próprios agentes. Mas, curiosamente, ninguém deu bola para os papéis, e eles acabaram esquecidos nas gavetas do órgão, permanecendo inéditos – até agora.

Aliado do então governador do Mato Grosso do Sul, Pedro Pedrossian, também do PDS, partido de direita que sucedeu a antiga Arena, o deputado Gandi Georges fazia um serviço de família ao encher o porta-malas de drogas e contrabando. Ele é irmão do traficante Fahd Jamil Georges, conhecido em Ponta Porã como Rei da Fronteira.

Alvo de diversos relatórios do SNI, Fahd Jamil Georges desenvolveu seu império durante a ditadura. Ele só seria condenado em 2005, quando o juiz Odilon Oliveira o sentenciou a 20 anos de prisão por tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e sonegação. No ano seguinte, Fahd entrou em uma lista, elaborada pela Casa Branca, que aponta os maiores traficantes de drogas do mundo.

Nos anos 1980, o esquema coordenado por Fahd funcionava da seguinte forma: um primeiro motorista, identificado como Pretinho, era responsável por levar o Opala de Brasília até a capital do estado, Campo Grande, a cerca de 300 quilômetros da fronteira. De lá, Luiz Duim Neto, motorista do traficante, seguia até Ponta Porã e recebia o material encomendado pelo seu chefe – o relatório descreve cargas de cocaína, maconha, armas, munições e até nitroglicerina (ingrediente de explosivos). Ao voltar para Campo Grande, Duim Neto levava material do tráfico até São Paulo ou Rio de Janeiro, onde abastecia as ainda incipientes facções criminosas da região. Ele foi, de certa forma, um precursor da hoje famosa rota do Paraguai, por onde entra boa parte das drogas e armas contrabandeadas no país.

Antes de partir para o sudeste, as armas e as drogas eram guardadas em propriedades da família do deputado federal no estado. Em alguns casos, descreve o SNI, o material era mantido em Ponta Porã e depois colocado em caminhões cobertos com pedra britada, para passarem despercebidos pela fiscalização.

Raramente o tráfico era surpreendido. Por isso, o motorista Luiz Duim Neto se orgulhava do trabalho realizado. Segundo o SNI, o contrabandista costumava falar publicamente que suas “armas estavam fazendo sucesso” quando via notícias de tiroteios no Rio de Janeiro ou em São Paulo.

Não só a alta cúpula do governo militar sabia quem era Fahd Georges como o próprio presidente João Batista Figueiredo foi alertado sobre a atuação do traficante. Na primeira visita de Figueiredo ao Mato Grosso do Sul, em 21 de janeiro de 1981, o SNI preparou um dossiê que cita Fahd como alguém “desaconselhável” para o presidente se aproximar. Na época, a visita de Figueiredo serviria também para abafar as críticas da oposição no estado, que condenava a proximidade do governador Pedrossian com o traficante.

O presidente Figueiredo foi formalmente informado sobre o envolvimento entre políticos e traficantes no estado em sua visita ao Mato Grosso do Sul, em 1981.

“O relacionamento de amizade de Pedrossian com Fahd Jamil, o qual é conhecido como um dos maiores contrabandistas da área, explorador de cassino e do chamado jogo do bicho, é um aspecto altamente negativo”, diz trecho do documento. “Este relacionamento além de estar desgastando o PDS tem refletido também negativamente na área federal. Já por algumas vezes servidores do SNI foram indagados ‘se o Serviço Nacional de Informações não vê isso’”, conclui.

O prestígio de Fahd era tamanho que, ao ser preso pela primeira vez em 8 de julho de 1980, foi visitado pelo então senador José Benedito Canellas, outro político do PDS, e por Pedrossian. No mesmo documento de instruções ao presidente sobre a política no Mato Grosso do Sul, o SNI cita que havia uma espécie de “acordo” entre Canellas, Pedrossian e o Rei da Fronteira porque o traficante teria financiado a campanha eleitoral dos dois políticos – Canellas foi o primeiro senador eleito pelo Mato Grosso do Sul depois da divisão do estado, em 1977.

O “Rei da Fronteira” era tão bem relacionado que ao ser preso pela primeira vez foi visitado na cadeia pelo então governador do Mato Grosso do Sul e por um senador. Ele também foi apontado como motivo para uma suposta exoneração de Pedrossian.

O “Rei da Fronteira” era tão bem relacionado que ao ser preso pela primeira vez foi visitado na cadeia pelo então governador do Mato Grosso do Sul e por um senador. Ele também foi apontado como motivo para uma suposta exoneração de Pedrossian.

O governo militar sabia que o sucesso obtido pelos traficantes era resultado da negligência ou da participação direta de membros da Polícia Militar e da Polícia Civil do estado. Dezenas de agentes das duas polícias no Mato Grosso do Sul chegaram a ser investigados. Em um dos relatórios, os agentes do governo federal dizem que o grupo de Gandi e Fahd Jamil Georges contava com a ajuda de pelo menos três delegados.

“Para que o esquema possa funcionar foi montado um processo de corrupção de autoridades e funcionários dos mais variados níveis”, diz o relatório. “Todos os fatos são do conhecimento de autoridades e órgãos do governo estadual que, entretanto, não atuam devido às injunções políticas que giram em torno da questão, ou até mesmo de seu envolvimento direto no acobertamento de tais ilícitos”, diz outro trecho.

Ninguém no governo tinha desculpa para dizer que não sabia o que ocorria na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Todos os dossiês foram encaminhados ao presidente, aos militares, à Polícia Federal e às autoridades do estado.

Ninguém no governo tinha desculpa para dizer que não sabia o que ocorria na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Todos os dossiês foram encaminhados ao presidente, aos militares, à Polícia Federal e às autoridades do estado.

Das poucas vezes em que a Polícia Federal conseguiu interceptar a ação dos criminosos, um verdadeiro arsenal foi apreendido. Foi o que ocorreu em 21 de setembro de 1988 na Fazenda Córrego da Onça, no município de Pedro Gomes, interior do Mato Grosso do Sul, de propriedade da empresa Eximporã Exportadora Ponta Porã S/A, da família Jamil Georges.

Na ocasião, a Polícia Federal encontrou oito pistolas 9 milímetros, 10 metralhadoras de mão, 30 carabinas calibre 38 e oito fuzis 7,62 milímetros, além de outras armas menores e “farta e variada munição”. Segundo apontamentos do SNI, o armamento seguiria para um garimpo no município de Itiquira, no interior do Mato Grosso.

Procurado pelo Intercept, o ex-deputado Gandi Jamil Georges não respondeu sobre a citação ao seu nome. Luiz Duim Neto e Fahd Georges não foram localizados. Fahd vive até hoje em Ponta Porã. Ele foi condenado a 20 anos de prisão por tráfico no início de 2005 pelo juiz federal Odilon Oliveira e ficou foragido até ser absolvido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região em 2009.

A Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul informou, por meio de sua assessoria, que realiza “levantamentos manuais” para identificar os policiais citados nos relatórios. A assessoria também informou que tentaria encontrar processos administrativos abertos na época contra os policiais, mas nenhuma informação foi enviada até o fechamento desta reportagem.

Protegendo contrabandistas

O deputado Gandi, de acordo com os documentos do SNI, não era o único parlamentar a ter envolvimento com o tráfico na região. Há ao menos três situações nos relatos que escancaram as relações entre deputados e contrabandistas – e as táticas usadas pelos criminosos para se livrar das punições. A primeira delas ocorreu em maio de 1980, quando o deputado João Bosco da Silva, do Partido Progressista, também oriundo da antiga Arena como o PDS, procurou a Polícia Federal para “prestar assistência” a um homem preso com 433 peles de animais selvagens. Bosco foi à imprensa logo em seguida para acusar a PF de violentar o detento. Ouvido, o próprio prisioneiro teria negado as acusações de abuso policial, segundo os agentes da inteligência.

No ano seguinte, em maio de 1981, quatro supostos contrabandistas detidos pelos agentes federais declararam ter vendido whisky contrabandeado aos deputados Ricardo José Santa-Cecília Corrêa, do PDS, Oswaldo Roberto Sobrinho, do PP, e Aldo Ribeiro Borges, do PDS, este último já falecido. Segundo o relatório, os próprios deputados confirmaram, ao serem ouvidos no processo, que a compra foi feita sem documentação legal.

No mesmo ano, em 22 de junho, um suspeito foi preso em flagrante por contrabando de munição. Dois dias após a prisão, o deputado federal Júlio José de Campos, do PDS, líder da bancada do estado em Brasília, teria procurado a PF para pedir a liberação do acusado. Dessa vez, o pedido foi negado pelos agentes com a justificativa de que a decisão de soltura caberia ao juiz federal responsável pelo caso.

Questionado sobre o episódio, Júlio Campos afirmou que “deve ter” atendido a um político do interior do estado, quando foi pedir a liberação do preso. “Achei estranho citar meu nome, não lembro se conhecia aquele cidadão”, comentou. “Não conheço nada desse fato, acho até estranho, a maioria dos políticos de Mato Grosso citados já morreram há algum tempo”, concluiu. Júlio já foi governador do MT, durante a ditadura, e hoje é filiado ao Democratas. Osvaldo Sobrinho não respondeu a reportagem, e o ex-deputado João Bosco não foi localizado para comentar.

Ricardo Corrêa, que na época era vice-presidente da Assembleia do Mato Grosso, diz não se lembrar dos fatos citados no relatório. “Há 40 anos atrás, como eu vou lembrar disso? Eu nunca fiz campanha contra a Polícia Federal, nunca falei com nenhum desses caras”, afirmou.

Para o SNI, o “excesso de trabalho” do superintendente da PF na região provocou uma reação dos parlamentares para coibir a fiscalização dos crimes que ocorriam na faixa de fronteira do estado. “Existe movimentação no meio político mato-grossense, na tentativa de remover, daquele Estado, o Superintendente Regional do DPF, tendo em vista a sua não aquiescência em atender determinados ‘pedidos’ de parlamentares, em favor de pessoas envolvidas em ilícitos penais”, conclui o relatório ao citar os casos acima.

Toma lá, da cá

“Este tipo de documentação eu nunca tinha visto, nem em entrevista, reportagem, nem nos arquivos que estudei, podemos colocar este documento como inédito e desconhecido”, me disse o pesquisador Carlos Benjoino, mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso. Ele estudou o tráfico de drogas na América do Sul no início dos anos 1980.

“Nem para mim, que estudei o tráfico nos anos 1980, e nem para aqueles que estudaram a ditadura conhecem estes documentos, mesmo porque tem muita documentação que ainda não foi revelada oficialmente e os documentos que foram revelados não foram totalmente explorados”, acrescentou. “Este documento é inédito de diversas formas para muita gente, ele revela que tem muita coisa na história do Brasil que ainda é um mistério para nós como um todo, tanto para os pesquisadores como para o público”, finalizou.

Ao contrário do que os saudosos do regime militar costumam dizer, os documentos do SNI mostram que o tráfico de drogas não era combatido com vigor durante a ditadura. Assim como hoje, diz o coordenador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ, Michel Misse, que estuda o tráfico e o contrabando no país há 40 anos, agentes públicos também usavam o estado para cometer crimes no período militar. Isso só não era noticiado.

“Na ditadura não houve uma repressão maior ao tráfico de drogas, pelo contrário, existiam atividades muito menos informadas porque a imprensa estava sob censura, sabe-se menos sobre o que aconteceu durante o regime militar do que se sabe sobre o que acontece hoje”, explica.

Misse aponta dois fatores que permitiram o crescimento destes crimes: a entrada da Colômbia na produção de cocaína nos anos 1980, que provocou a redução do preço e a popularização da droga e o fortalecimento do tráfico na fronteira, e o que chama de “mercadorias políticas” – o velho toma lá, da cá.

“Mercadoria política é aquela situação em que o sujeito usa o cargo, a posição de político ou de policial, para oferecer apoio, informação e proteção”, explica o pesquisador. Os documentos, para ele, deixam evidente que deputados e agentes públicos estavam envolvidos nessas situações. Um carro apenas passando drogas de um lado a outro da fronteira pode parecer pouco, mas foi este processo, diz Misse, que ajudou a estruturar o tráfico no seu início e continua ajudando até hoje.

Do The Intercept