Lei da Anistia completa 40 anos

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Imagem: Reprodução/Rubens Valente/Folhapress

A Lei da Anistia completa hoje 40 anos. A legislação marcou o processo de transição da ditadura militar (1964-1985) para a democracia e ainda serve de argumento para o Brasil não seguir decisões internacionais de punição a agentes de Estado denunciados por sequestros, torturas e assassinatos em regimes de exceção.

Há mais de nove anos, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que a Lei da Anistia absolveria todos os agentes públicos que cometeram crimes. Com isso, nenhuma das 40 ações penais sobre o tema chegaram a um julgamento.

Contudo, o Supremo ainda vai avaliar um recurso da ação e analisar outro pedido, este de 2014, que pede que seja cumprida sentença da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos), ligada à ONU (Organização das Nações Unidas), que condenou o Brasil em 24 de novembro de 2010 a adotar uma série de medidas, entre elas julgar quem cometeu crimes durante a ditadura.

A decisão rechaçou o uso da Lei da Anistia como forma de impunidade. Afirmou que “a jurisprudência, o costume e a doutrina internacionais consagram que nenhuma lei ou norma de direito interno, tais como as disposições acerca da anistia, as normas de prescrição e outras excludentes de punibilidade, deve impedir que um Estado cumpra a sua obrigação inalienável de punir os crimes de lesa-humanidade, por serem eles insuperáveis nas existências de um indivíduo agredido, nas memórias dos componentes de seu círculo social e nas transmissões por gerações de toda a humanidade”.

Ainda não há uma data para esse julgamento acontecer.

Denúncias e identificação de corpos

Com feridas escancaradas após a reabertura política, o Brasil demorou a agir na esfera judicial para buscar o paradeiro de pessoas sequestradas e investigar os responsáveis pelas violências cometidas pelo Estado.

Apenas em 1999 o MPF (Ministério Público Federal) iniciou sua atuação. Em setembro daquele ano, o órgão recebeu denúncia do grupo Tortura Nunca Mais quanto à demora na identificação dos restos mortais de presos políticos na vala clandestina de Perus, em São Paulo. Um primeiro Inquérito Civil Público foi aberto na Procuradoria da República em São Paulo.

No mesmo mês, o atual coordenador do Grupo de Trabalho Memória e Verdade, o procurador Marlon Weichert, recebeu uma representação de familiares de mortos e desaparecidos sobre a dificuldade em localizar restos mortais dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia.

A primeira ação judicial ocorreu apenas em agosto de 2001, quando o MPF requereu acesso a documentos produzidos pelas Forças Armadas sobre a repressão ao movimento, ocorrida principalmente nos anos 1970, deixando dezenas de desaparecidos. Pediu também que o Exército parasse de pressionar e ameaçar a população local.

Em setembro de 2005, houve a primeira identificação de restos mortais de um militante: Flávio Carvalho Molina, do Movimento de Libertação Popular (Molipo), assassinado sob tortura em 1971. A família pode, então, enterrá-lo.

Foi somente após a sentença da CIDH que o MPF “tomou a decisão de investigar, processar e sancionar os responsáveis”, afirma Marlon Weichert. Até então, tinha atuado apenas com casos cíveis, sem denunciar ninguém.

Para o procurador, existe um erro de entendimento de que a Lei da Anistia possa ser usada para não processar quem tenha praticado crimes contra a humanidade. “Os militares fizeram uma redação truncada da lei e, a meu ver inócua, mas que foi acolhida pelo STF. A lei funcionou como um guarda-chuva para a parte jurídica, mas também política dos militares”, afirma.

Segundo Weichert, desde o tribunal internacional de Nuremberg –que julgou os crimes cometidos pelos nazistas–, existe um entendimento de serem nulas normativas para manter a impunidade.

“O Brasil é o único país que teve uma ditadura e continua aplicando uma lei desse nível. Nosso Judiciário é o único que não respeita as normas de direito internacional nessa área”, diz.

Segundo o procurador, desde 1979, “todas as concessões foram feitas com essas premissas”. “O próprio MPF não tinha autonomia nem distância desse processo para fazer esse questionamento. Apenas uma nova geração, que entra depois da promulgação da Constituição, em 1988, é que tem uma visão diferenciada e vai começar a agir na esfera jurídica [contra esses crimes]”, conta.

Ações paradas

Apenas em março de 2012, o MPF no Pará ajuíza a primeira ação penal. O denunciado foi o coronel Sebastião Rodrigues de Moura, conhecido como major Curió, acusado por sequestro no Araguaia.

Até hoje, a Justiça de Transição fez 40 denúncias à Justiça Federal em Goiás, Pará, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins contra 60 agentes de Estado ou pessoas a serviço da União.

Entretanto, todas ações estão paradas à espera de uma decisão final do STF sobre a validação da Lei da Anistia. Weichert explica que isso ocorre por conta da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 153, impetrada pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Julgada pelo STF em abril de 2010, negou pedido para que militares fossem a julgamento.

Houve recursos que até hoje não foram apreciados pela Corte. Em maio de 2014, o PSOL entrou com outra ADPF com base na condenação, por unanimidade, da CIDH. As duas ADPFs tramitam conjuntamente.

Questionado pelo UOL, o STF respondeu apenas que as ADPFs “estão na fase de instrução processual e ainda não há previsão de julgamento”. Os processos (que agora tramitam juntos) estão conclusos ao relator desde outubro de 2018.

Para o procurador, a decisão do STF é “incompreensível”. “A Corte tem decidido somente casos de extradição e sempre trancam ações que estão andando em primeiro grau para que aguardem o julgamento”, diz. “Isso contribui, em boa parte, para explicar o cenário de uma violência de Estado tão exacerbado no país”, afirma.

Na ADPF 320, o posicionamento do MPF, dado pelo então procurador-geral da República Rodrigo Janot, é pelo cumprimento das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo julgamento dos crimes.

Nenhum país fez isso

Pesquisadora do tema, a cientista política Glenda Mezarobba afirma que o Brasil está na contramão dos países democráticos. “O que está claro é que os Estados não podem conceder anistias aos próprios agentes de crimes de tortura, sequestro, assassinatos. Isso está pacificado no direito internacional desde o final da Segunda Guerra”, diz.

Ela diz que os países que passaram por regimes de exceção têm quatro deveres. “Primeiro, o dever de justiça, para identificar, processar e punir os autores. Segundo, o de revelar a verdade. Terceiro, reparar o dano. E quarto, transformar as instituições para democracia, que é um direito da sociedade”, enumera.

A pesquisadora viu diferenças entre o que houve no Brasil e com o fim dos regimes ditatoriais na Argentina e Chile. Lá, os militares que praticaram crimes foram punidos.

“O Brasil tem algumas peculiaridades. Os perseguidos reivindicaram a anistia, que virou uma palavra de ordem. Havia na época um movimento forte que defendia a volta dos exilados, a libertação dos presos. A lei aprovada pelo Congresso em uma ditadura não contempla o movimento de direitos humanos”, diz.

De acordo com a estudiosa, a lei não é ampla e irrestrita como afirmam e foi feita aos moldes e termos que a ditadura queria à época. “Em nenhum momento a lei fala que os crimes dos militares devem ser deixados impunes. Além disso, precisamos lembrar que não era um Congresso democrático.”

Do UOL