“Mentir e colonizar”: autora denuncia governos neoliberais

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Foto: Leandro Teysseire

A psicanalista Nora Merlin pensou seu novo livro “Mentir e colonizar – Obediência inconsciente e subjetividade neoliberal” (Editorial Letra Viva), como uma continuação de sua anterior publicação “Colonização da subjetividade – Os meios massivos em épocas de biomercado”. Se o primeiro trabalho destacava a concentração do poder financeiro e das corporações e a imposição invisível através de nefastas estratégias, nesta nova obra, Merlin analisa um conceito mais adequado aos tempos atuais na Argentina da polarização: a obediência inconsciente da massa.

O dispositivo “massa”, segundo a psicanalista, consta de duas operações: idealização e identificação horizontal. “Muitos indivíduos põem o mesmo objeto no lugar do ideal. Agora, quem é o ideal nesta fase do capitalismo? São os meios de comunicação, que são a voz do poder. A característica mais importante desta fase do capitalismo é a grande concentração econômica, simbólica, comunicacional, onde não há pluralidade de vozes, não há democratização da palavra”, sustenta. “Então, pode-se dizer que há um discurso único, de tal forma que o neoliberalismo se transforma numa forma de totalitarismo”, afirma Merlin.

– Um totalitarismo silencioso? Já que não se mostra exatamente como é.

– Exato. Creio que se quebrou o pacto das democracias do pós-guerra, com aquilo dos Estados protetores. Quando havia guerra de inteligência, era uma coisa um pouco mais balanceada. Era necessário que o capitalismo não mostrasse sua verdadeira cara. Quando se termina esse limite do campo socialista, aparece um avanço do neoliberalismo em seu formato mais voraz, sem nenhum tipo de limite, porque se debilitam os Estados protetores, há uma queda do simbólico, desabam os diques morais, a vergonha. Então, surge um poder com ferocidade violência sem nenhum tipo de contenção. Tanto é assim que o neoliberalismo passa a ser como um vírus que, como você diz, vai tomando a cultura silenciosamente.

– Se o neoliberalismo é uma forma de totalitarismo e a massa é acrítica, onde se localiza a resistência a ele?

– É uma pergunta de alta complexidade. É preciso desenvolvê-la. Isso é uma imposição de um sistema de terror que não é conveniente à maioria, e que nos é imposto visivelmente. Ou seja, nós tivemos uma etapa na América Latina onde a Operação Condor se impôs visivelmente, através das Forças Armadas. Este novo avanço neoliberal vai por outro caminho. É um poder muito mais invisível, muito mais potente e muito mais eficaz, porque se entrelaça com todos os aspectos da cultura e vai colonizando a subjetividade.

– Você diz que o neoliberalismo é uma nova subjetividade…

– Sim, mas para impor um sistema que não seja adequado à maioria, é necessário um consenso obediente.

– Você usa o termo “obediência inconsciente”. Por que a relação entre submissão e poder não é voluntária?

– Temos que fazer um esclarecimento. Em meados do Século XVI, surgiu um personagem chamado Étienne de La Boétie, um filósofo francês que se perguntava sobre a relação entre subjetividade e poder. Por que muitos se submeteram ao poder de alguém, que supostamente possui todo o poder real? A explicação na época era teológica: o rei é o herdeiro de Deus e, então, deve-se servi-lo e deve-se obedecer. Foi uma obediência consciente e voluntária. Depois, vieram as revoluções democráticas, os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade. Muitos anos se passaram desde que De La Boétie se perguntou sobre a servidão voluntária, e estamos enfrentando o mesmo problema. Isto é, por que muitos se submetem a um, e não mais ao poder real do rei, mas ao poder real que as corporações têm hoje?  A servidão não é mais registrada como servidão porque estamos na presença de cidadãos que acreditam que são livres.

– Uma falsa autoconsciência?

– A tradição marxista fala de falsa consciência, que a consciência libertadora e emancipadora não é assumida, que é o tipo que, por natureza, tem que fazer a revolução. Nada disso foi cumprido. Eu não acredito que haja falsa consciência e verdadeira consciência. Toda construção ideológica é performativa. Isso significa que é um sistema de ideias que constrói a realidade. Não é que exista uma realidade e então é representada. Não, a construção ideológica é uma ação discursiva.

– Você acabou de mencionar, e também destaca no livro, a questão da servidão não forçada.

– Aparentemente ninguém a força, porque há uma imposição invisível.

– Como você analisa esse conceito no atual contexto argentino? Você acha que parte da sociedade está entorpecida, por exemplo?

– Há duas ideias centrais que organizam meus livros mais recentes. Uma é a colonização da subjetividade e outra é a obediência inconsciente. Com a colonização da subjetividade eu me refiro ao poder do qual estamos falando, invisível, especialmente a mídia, mas não apenas ela, mas também a educação, a saúde mental ou diferentes aspectos da cultura que operam nas mentes e corpos. E eles alcançam o que eu chamo de “os colonizados”. O colonizado não é uma categoria de classe social, é um critério transversal. O colonizado é formado por um núcleo de preconceitos, especialmente ódio, e por capas formais onde há identificações. E há tensões de classes e grupos sociais. O enredo varia de acordo com a inscrição social, mas o núcleo, a estrutura do colonizado é a mesma. Então, não pense nisso como uma falta de instrução, ou que eles são todos estúpidos. Não. Existe um trabalho muito bom sobre a subjetividade. Para impor um sistema que não seja adequado à maioria, um consenso obediente deve ser alcançado. E a massa é o melhor sistema para alcançar esse consenso obediente. Há afeições e paixões características na massa. Por exemplo, a paixão pela ignorância na massa. Não tem nada a ver com se eles foram ou não para a faculdade. Não tem nada a ver com isso. É um não querer saber de nada. Não é querer saber nada sobre o hétero, sobre o diferente, sobre a política, sobre o singular. Essa é uma das paixões que são estimuladas na massa. Não é o único. O ódio é outra paixão.

– Se o neoliberalismo instala o ódio nos setores populares, há uma obediência inconsciente que reproduz esse ódio?

– Primeiro, o melhor modo social de obediência é a massa, porque a estrutura da massa é hierárquica, em termos de poder e submissão. É necessário instalar esse sistema hierárquico, de poder e submissão, de liderança e obediência, de um sistema de uniformidade. Nesse sistema, todos eles dizem as mesmas frases, há um desejo de pertencer imaginário. Não é uma inscrição real, mas há um desejo de se inscrever nesse todo. Agora, o todo sempre produz seções. Aqueles que não se registram, que não aderem, acabam sendo rejeitados e odiados. Nesse setor estão a oposição e os líderes sociais para aquele local de segregação, rejeição e demonização.

– Que fator as crenças e religiões desempenham na percepção da realidade que certos setores sociais têm?

–Bem, você trabalha com crenças, estimula crenças. Essa frase de Walter Benjamin de que “o capitalismo é uma nova religião” é muito verdadeira. Uma religião, neste caso, construída a partir da mídia, que, como dizemos, é a voz do poder. Então, está produzindo uma nova subjetividade. E como o neoliberalismo é um sistema que se caracteriza por deixar os chamados “cidadãos”, os consumidores,  consumidos e indefesos. Os deixa em perigo de sofrer com o desamparo, a indefesa. Às vezes literalmente, em situação de rua, sem vestimentas e de direitos porque, simbolicamente, despem tudo e promovem uma situação de ameaça à cidadania. Eles começam com alguns setores mas, cedo ou tarde, afetam a todos.

– Isso está relacionado ao conceito de bullying social que você descreve em seu livro?

– Existem alguns conceitos que são desenvolvidos. A angústia é uma delas. O cidadão é despojado. Angústia e medo andam de mãos dadas. Daí para a obediência é um passo. Existe a instalação de crenças como as que falamos, e o poder age como uma concentração autoritária, onde não há implementação do império da lei, e o que existe é um bullying social. O neoliberalismo surgiu nos Anos 90, após a queda do muro dos estados socialistas. E eles começaram com uma mentira, dizendo que: “as ideologias acabaram”. As ideologias não podem ser finalizadas. Mas eles disseram isso e começaram a desenvolver uma nova ideologia que rejeita a política.

– Nesse sentido, pode-se dizer que este governo promove a desideologização dos sujeitos com base em uma ideologia do ódio?

– Exatamente. E o que eles chamam de gerenciamento (porque é o momento da administração e não da política) é a administração do terror. Que é administrado através de operações de inteligência, como as guerras judiciais, a instalação do ódio. O ódio tornou-se uma ferramenta muito eficaz.

– Como você consegue convencer alguém a votar contra os seus interesses?

– É o que está acontecendo. São democracias neoliberais que não atendem a maiorias, mas apenas a grupos financeiros. Então, a única maneira de conseguir essa imposição é colonizar a subjetividade e instalar uma obediência inconsciente, onde o cidadão pensa que é livre e não faz nada além de cumprir os imperativos do consumo e do mercado. Agora, esses governos rejeitam a política e o que eles usam em vez disso são as técnicas de gerenciamento e marketing. Assim como o populismo é a instalação e construção de demandas horizontais em uma vontade popular, aqui há demandas construídas a partir de cima. Observe a diferença entre marketing e política. Então, o cidadão compra. E ele compra coisas que não funcionam para ele, ideias que não funcionam para ele, e governos e personagens que não funcionam para ele. Como a mídia e a cibernética se desenvolveram, é muito fácil manipular a subjetividade.

– Como você acha que é possível equiparar uma denúncia a uma condenação, como é o caso da perseguição contra a ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner?

– Acredito que a mídia está estragando a cultura, as relações sociais. Eles são a voz do poder, mas às vezes se tornam juízes, estigmatizam uma pessoa, não cumprem o procedimento judicial normal, a demonizam sem evidência, ou sem que o princípio da inocência seja cumprido. A verdade é que funciona como se fosse um estado de exceção. Jornalistas de televisão são funcionários da corporação. O plano em toda a América Latina é o de demonizar os líderes políticos da oposição. Uma das estratégias foi a instalação do ódio. Portanto, eu digo que o campo popular também é colonizado. Não é que “eles” são os colonizados e “nós” somos vacinados contra isso. São diferentes colonizações, mas me parece que a instalação social da polarização foi muito eficaz, e para o mal, porque isso que estão fazendo com a ruptura do tecido social é um desastre, e também a ruptura dos laços familiares, dos laços de amizade. Isso é adequado para quem? Ao poder. Então,  campo popular passou a militar no ódio. E acho que foi uma colonização do campo popular porque uma coisa é conflito político como um conflito de interesses, como um debate, como uma sublimação do ódio, e outra é a promoção realizada pelo poder, especialmente alguns jornalistas não mencionáveis. E o campo popular também ficou com o ódio. Se falamos em batalha cultural, uma das primeiras missões nessa disputa é resolver esse ódio. Devemos resolvê-lo porque não é lá que vamos nos orientar em um caminho emancipatório. O neoliberalismo requer culturas sem política. O ódio é uma fantástica forma de promover uma cultura sem política, porque se lidarmos com o conflito político como o dos “bons” contra os “maus”, o dos “corruptos” contra os “decentes”, e isso se torna um conflito moral, e não político. Então quem se beneficia com a instalação do ódio? Só o poder, porque você obtém uma cultura com um tecido social totalmente dividido, e uma cultura despolitizada, porque a questão é o “bem” contra o “mal”. É assim que as ideologias totalitárias se impõem, com conceitos do nazismo e do neoliberalismo para processar o conflito político. É uma armadilha. Em vez de conflito, a estratégia do inimigo interno é produzida, como forma de defender o banimento do odiado.

Da Carta Maior