Em processo de reestruturação das UPPs, PM mata 10 no Rio

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Foto: Ricardo Borges – 9.nov.15/Folhapress

Como parte do projeto de reestruturação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) defendido pelo governador Wilson Witzel (PSC), a Polícia Militar transferiu e extinguiu bases das favelas do Jacarezinho e do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio.

No Jacarezinho, a PM matou quatro em operação realizada na segunda-feira (16), após a desmobilização da UPP local. No Alemão, seis morreram na quarta (18) em ação que realocou uma base na comunidade.

No dia 10 de setembro, todos os contêineres da UPP do Jacarezinho foram retirados e substituídos por uma cabine e duas torres blindadas no entorno da favela, formando uma espécie de cinturão. Oitenta policiais militares foram transferidos para o BPVE (Batalhão de Policiamento em Vias Expressas).

Na semana seguinte, a Polícia Militar realizou duas operações na comunidade. Moradores temem que seja constante a troca de tiros a partir da cabine e das torres, inseridas em locais estratégicos, onde é mais provável o confronto com a criminalidade.

O temor é compartilhado por especialistas consultados pela Folha, que acreditam que Witzel investirá na reestruturação física das UPPs com o objetivo de utilizar as bases para o confronto. Em nota, a Polícia Militar afirmou que os dados sobre a reorganização das bases são estratégicos e que não serão comentados.

Pesquisadores que acompanham o tema disseram à reportagem que as ações e o discurso belicoso do governador tornam difícil de acreditar que ele queira retomar o policiamento comunitário, que aposta na relação entre as forças de segurança e a população para prevenir a criminalidade. Em julho, as mortes por intervenção do Estado atingiram o maior patamar em 20 anos no Rio.

“A UPP é um projeto com uma doutrina de redução dos confrontos armados. Esse governo está apostando tudo para recrudescer os confrontos, então é uma absoluta contradição [Witzel defender a retomada do projeto]”, afirma o sociólogo Ignacio Cano, coordenador do LAV (Laboratório de Análise da Violência) da Uerj.

O especialista afirma que o governador não tem uma visão de polícia comunitária e de pacificação. Faz, ainda, um trocadilho ao dizer que a UPP pode acabar trocada pela UPB: Unidade de Polícia Belicista.

A socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) e ex-diretora do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio, diz que o que existe no governo Witzel é uma polícia com licença para matar, referendada pelo governador.

“É muito difícil que esse governador realmente acredite numa polícia que proteja as pessoas que moram nas favelas e que atue preventivamente. Além de utilizar os helicópteros como plataforma de tiro, vão acabar usando as antigas bases das UPPs”, afirma.

Um mês depois de defender a reestruturação do projeto das UPPs, cuja derrocada teve início há cinco anos, Witzel ainda não apresentou um plano de ação ou detalhes sobre como o programa será retomado.

Em agosto, ele disse que a UPP é importante e que precisa ser mantida. Até então, desde as eleições do ano passado, o governador vinha fazendo diversas críticas ao projeto. Witzel chegou a afirmar que as UPPs esparramaram a criminalidade pelo estado.

Os detalhes sobre os objetivos do governo se resumem a um artigo publicado no site da Polícia Militar. Nele, o coronel Rogério Figueredo Lacerda, secretário de estado da PM, afirma que está em curso, com o apoio do governador, a recuperação física das instalações das UPPs.

Segundo o secretário, essa recuperação passa pela substituição dos contêineres por construções fortificadas de alvenaria, recomposição e requalificação do efetivo e reposição das perdas materiais, como viaturas, armamentos e coletes.

O projeto das UPPs, criado em 2008, visava retomar territórios antes dominados por grupos criminosos, fazendo uso do policiamento de proximidade, e implantando projetos sociais para os moradores das comunidades.

Ainda em agosto, Witzel disse que faria operações de ocupação nas comunidades, mas também não deu detalhes sobre como isso ocorrerá. O sociólogo Ignacio Cano lembra que esse tipo de operação é antigo, anterior às UPPs, feito para prejudicar o tráfico durante um curto período.

“Entra, atira, mata três ou quatro, fica um tempinho lá para prejudicar o tráfico naquela região e depois sai. Seis meses depois volta e faz a mesma coisa. Foi a política tradicional. A mudança com a chegada das UPPs foi a permanência da polícia”, diz.

Para obter maiores detalhes sobre a reestruturação das UPPs, a reportagem entrou em contato com a assessoria do governador, que disse que a Polícia Militar deveria ser procurada. A assessoria da PM encaminhou como resposta apenas o artigo escrito pelo secretário da polícia, publicado no site da corporação, e afirmou que ele não tinha disponibilidade para conceder entrevista.

FALÊNCIA

O projeto das UPPs, implementado pelo então secretário de Segurança José Mariano Beltrame, foi o carro-chefe da política de segurança do governo de Sérgio Cabral (2007-2014). Atingiu bons resultados, com redução dos índices de criminalidade, até 2013. A partir de então, começou a dar sinais de falência.

A primeira fase do projeto representava a retomada dos territórios dominados pela criminalidade —no início do ano passado, o Rio tinha 38 comunidades ocupadas.

Especialistas avaliam que não houve prosseguimento às fases seguintes, com o desenvolvimento de um policiamento comunitário efetivo e investimentos na área social, o que seria uma das causas para a falência do programa.

Outro motivo para a derrocada do projeto teria sido a expansão mal pensada das UPPs, que privilegiou comunidades do centro, zona sul e Tijuca (bairro onde fica o Maracanã). Para especialistas que contestaram essa escolha, a ocupação dessas favelas coincidia com o objetivo de transformar o Rio de Janeiro em um polo comercial e turístico, em meio ao ciclo dos grandes eventos que chegaram à cidade.

Parte dos estudiosos defendiam que o critério fosse outro: as comunidades que apresentassem maiores índices de violência deveriam ser priorizadas. Assim, o governo mandaria para o crime a mensagem de que quem operasse com mais violência perderia o controle do território.

Os sinais da falência do projeto são observados na extinção de nove bases durante a intervenção federal no Rio, no aumento dos índices de criminalidade a partir de 2013 (em todo o estado e nas áreas das UPPs), na redução do efetivo policial e do investimento financeiro no programa e nos sucessivos relatos de violações de direitos humanos perpetrados por agentes que deveriam exercer um policiamento de proximidade.

Em 2011, foi criada uma rubrica no orçamento dedicada especialmente à manutenção da Polícia Pacificadora (a UPP também é mantida com recursos de outras rubricas). Desde 2014, nem um centavo do orçamento inicial anual referente à manutenção foi executado.

No início do projeto, mais de 9.000 policiais atuavam nas UPPs. Em agosto de 2017, a extinta secretaria de Segurança anunciou a retirada de 3.000 homens. Questionada pela Folha, a Polícia Militar disse que não divulgaria o efetivo atual por questões estratégicas.

As denúncias de violações de direitos humanos por policiais das UPPs, presentes desde o início do projeto, ganharam ainda mais força nos últimos anos. Em julho, a ouvidoria da Defensoria Pública do Estado enviou um ofício ao Ministério Público relatando essas denúncias e pedindo a atuação do órgão na promoção de encontros regulares com o comando do CPP (Coordenadoria de Polícia Pacificadora) para tratar das violações.

O documento traz relatos de moradores do morro do Salgueiro, do Fallet e do Complexo da Penha. Eles afirmam que houve aumento significativo no número de tiroteios, que as incursões ocorrem na hora de entrada e saída das crianças do colégio, que os policiais entram nas casas e confiscam celulares sem mandado judicial, que usam capuzes e não carregam identificação, e que ameaçam pessoas de todas as idades.

Da FSP